“A Confissão da Leoa”, de Mia Couto – por Gisele Toassa

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MIA COUTO E O SER-LEOA

IMAGINE uma ínfima aldeia de um país muito pobre, chamada Kulumani.

IMAGINE uma mulher que passou sua vida toda nessa aldeia, Mariamar.

IMAGINE que ataques de leões estão matando apenas – e tão-somente – as mulheres nessa aldeia, fazendo da irmã de Mariamar, Silência, uma das suas vítimas.

E você terá o cenário da “A confissão da leoa”, do moçambicano Mia Couto, nosso compadre nos infortúnios da colonização portuguesa – autor único na fragrância animista do seu português. Para quem nunca teve o hábito de ler folclore, mas ama a mistura popular-erudito, esse livro é uma sólida introdução para o modo-de-vida, o modo-de-fala – e, mais do que tudo – para o cruzamento (fascinante, perigoso?) entre religião e costumes de uma nação escravizada até muito pouco tempo. Somos irmãos na opressão. Também somos irmãos na desigualdade e na linhagem da nossa América Latina que, como a África, soa para mim mais feminina do que a Europa.

“Deus já foi mulher. Antes de se exilar para longe da sua criação e quando ainda não se chamava Nungu, o atual Senhor do Universo parecia-se com todas as mães deste mundo. Nesse outro tempo, falávamos a mesma língua dos mares, da terra e dos céus. O meu avô diz que esse reinado há muito que morreu. Mas resta, algures dentro de nós, memória dessa época longínqua. Sobrevivem ilusões e certezas que, na nossa aldeia de Kulumani, são passadas de geração em geração. Todos sabemos, por exemplo, que o céu ainda não está acabado. São as mulheres que, desde há milénios, vão tecendo esse infinito véu. Quando os seus ventres se arredondam, uma porção de céu fica acrescentada.Ao inverso,quando perdem um filho, esse pedaço de firmamento volta a definhar.” (p.15)

Das mulheres nascidas e finadas em Kulumani sobra pouco rastro, habituadas que eram ao silêncio e às sombras. “Pobre Kulumani que nunca desejou ser aldeia. Pobre de mim que nunca desejei ser nada” (p.50). Nascida em uma aldeia do interior de São Paulo que, por acaso, hoje tem 300,000 habitantes, senti em Mariamar uma verdadeira irmã espiritual. Como eu sonhava com o Príncipe Encantando, ela sonha com o caçador que, trouxera, com um olhar, a vida ao seu corpo de sombras (dei de cismar que a opressão não é preta nem branca – é apenas uma sombra que inunda nosso espírito com uma antecipação do irremovível Nada). Seu silêncio é uma percepção do feminino como infantilidade adiada, feita de esperas: espera por um homem, pelo Salvador ou por um outro ser vivo que lhe agitará o ventre, vindo por certo tempo se abrigar na sua (inviolável) sombra; três esperas tão silenciosas quanto necessárias para que a renovação dos capítulos dessa nossa trágica Comédia Humana.

Eu só faço admirar a destreza na escolha dos personagens (parece a mecânica perfeita de Ibsen); os seus nomes que rompem a fronteira do hábito para nos transportar a esse universo onde não veremos a pobreza (como falta), a doença (como atraso) ou a violência (como mal do caráter). A África de Couto é a África vivida e padecida como dores universais. Quando Arcanjo Baleiro, o caçador, junta-se ao escritor e ao administrador para matar leões em Kulumani, entra em cena também Naftalinda [!], a gorda mulher do administrador, a única que faz ouvir sua voz – tal como a Lua no céu, oprimida por astros mais significativos, mas ainda viva. Agora que aprendi a necessidade do feminismo como luta contra as pequenas e grandes guerras (desde a depilação até a ocupação da Ucrânia), posso admirar essa mulher que tenta falar pelas suas companheiras. Mia Couto é um grande feminista, por se ocupar da história dos vencidos, sejam as mulheres ou os leões: “Até que os leões inventem as suas próprias histórias,os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça.” Provérbio africano – MIA COUTO, A confissão da leoa (epígrafe) – p.11.

Paralisia, mudez completa, são alguns dos sofrimentos com que a pequena Mariamar defronta-se. É um jeito de amurar-se a si mesma; sem andar ou sem falar, ela deixa de realizar atos que pouco importavam a alguém. Debaixo de sua imobilidade, há lembranças de um avô amoroso e de uma guerra sangrenta, onde os africanos foram as presas.

“Aconteceu o mesmo no tempo colonial. Os leões fazem-me lembrar os soldados do exército português. Esses portugueses tanto foram imaginados por nós que se tornaram poderosos. Os portugueses não tinham força para nos vencer. Por isso,fizeram com que as suas vítimas se matassem a si mesmas. E nós, pretos, aprendemos a nos odiar a nós mesmos.” (p.120)

Esse é um livro sobre morte-em-vida, vida Severina, mas também sobre um encarceramento sem paredes, o de ser-Colônia e não se governar. Os majestosos leões vão ficando à mercê dos homens, e os homens, presa dos outros homens, ficando as mulheres na última ponta da cadeia alimentar, onde viram comida – literal e metaforicamente – recebendo na cabeça e no corpo uma dominação multiplicada. Seus mortos nunca foram realmente enterrados. Sua revolta não tem espaço para crescer, pois se acostumou ao silêncio e à força: se não dão, lhes tomam. Mas os livros são aventura certa para além desse mundo restrito onde a tarefa vital é abrir as pernas e fechar os olhos, ou apenas levar água no balde, do poço à casa:

“Kulumani e eu estávamos enfermos. E quando, há dezasseis anos, me encantei pelo caçador, essa paixão não era mais que uma súplica. Eu apenas pedia socorro, em silêncio rogava que ele me salvasse dessa doença. Como antes a escrita me tinha salvado da loucura. Os livros entregavam-me vozes como se fossem sombras em pleno deserto.” (p.95)

Tal como nós e os moçambicanos, Mariamar mostra que silêncio e loucura não são estranhos, mas parentes próximos. É por isso que vou colocando Mia Couto na minha prateleira de autores queridos, destes que são curativo para a alma, e instrumento para a luta.

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