EDUCAÇÃO EM DISCUSSÃO – Reflexões na companhia de Hannah Arendt, Montaigne, Tagore, Goblot etc.

“A essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo”, escrevia Hannah Arendt em “A Crise Na Educação” (artigo do livro “Entre o Passado e o Futuro”, p. 223). O nascimento de uma nova geração, tão destacado por Arendt, coloca de fato o problema perene da condição humana: educar os recém-chegados ao mundo e à vida.

“A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, que jamais permanece tal qual é, porém se renova continuamente através do nascimento, da vinda de novos seres humanos. Esses recém-chegados, além disso, não se acham acabados, mas em um estado de vir a ser. Assim, a criança, objeto da educação, possui para o educador um duplo aspecto: é nova em um mundo que lhe é estranho e se encontra em processo de formação-vital. (…) A criança só é nova em relação a um mundo que existia antes dela, que continuará após sua morte e no qual transcorrerá sua vida.” (ARENDT, p. 235, E.P.F.)

Porém, os recém-chegados não serão igualmente tratados neste mundo comum, ao qual ganharão acesso pelo nascimento e do qual partirão quando morrerem, pois a utopia democrática e igualitária, longe de ter sido concretizada, parece cada vez mais espezinhada em um contexto de ascenso das desigualdades e das imensas discrepâncias na concentração de renda e poder. Como Pierre Bourdieu ensina, a inexistência de uma sociedade de fato igualitária e democrática também decorre das discrepâncias imensas de capital cultural acumulados por certas classes/castas “distintas”.

O capital cultural, tratado como privilégio e não como direito, é posse exclusiva de uns poucos e não domínio público aberto à instrução geral. Aquilo que a educação pode fornecer de melhor é recusado à imensas frações de uma população mantida apartada do acesso à cultura e à formação integral pelos muros e fronteiras, historicamente constituídos e plenamente revolucionáveis, de nosso atual estado de apartheid social e injustiça institucionalizada.

Os acessos diferenciais à escola – uns com acesso fácil e garantido às áreas VIP do saber, outros escorraçados do ensino e empurrados para o trabalho precoce – estão essencialmente vinculados às fraturas de classe que esgarçam nosso tecido social, a ponto de destroçar o senso de comunidade e instaurar o pesadelo competitivo e cruel da “sociedade dos indivíduos”, tão propugnada pela economia-política do liberalismo e suas “neo”-encarnações.

Afirmando que o auto-interesse egoísta, perseguido sem freios no âmbito do “mercado livre”, é a essência da natureza humana, e não um habitus cultivado no âmbito de uma cultura específica (capitalista, economicamente liberal, industrialista, comercialista, individualista, “competitivista” etc.) e suas instâncias educativas e formativas (que podem, é claro, ser também deformativas), o liberalismo forjou uma doutrina que é uma verdadeira Medusa com a cabeça com mais de mil serpentes: a noção tóxica dos vícios privados, benefícios públicos. Seja um crápula egoísta que só corre atrás do próprio lucro e só visa o benefício privado, e assim estarás contribuindo para a prosperidade geral. Uma lorota monumental.

O século XX teria sido, segundo uma série de TV muito interessante, The Century of The Self, de Adam Curtis (BBC). Nós, no século XXI, seríamos os herdeiros disso, levando a novos extremos a noção de que somos pessoas isoladas, estanques, em competição no mercado, cujas concorrências agora se dão também em meio à presença oni-infiltrante das tecnologias digitais de comunicação – um mundo, para lembrar de outra série de TV definidora de época, tão conturbado e cheio de bizarrices comportamentais quanto aquele que nos foi apresentado por Black Mirror.

A escola também padece com o contágio deste individualismo todo, que parece lançar na lata de lixo da história os ideais iluministas, manifestos por exemplo na obra de Condorcet, onde celebravam-se o ensino público, universal, gratuito, de qualidade, não só poli-técnico (formando para o mercado de trabalho) mas plenamente “humanista” (eclético e próximo à paidéia dos gregos), que formasse para a cidadania, a participação, o convívio isonômico na pólis democrática e republicana…

Ora, é preciso concluir, diante do state-of-affairs neste nosso mundo, que seguimos sob o império daqueles que dizem, da boca pra fora, que todos nascemos humanos, mas da pele pra dentro continuam pensando e agindo de modo a construir, preservar e reproduzir as instituições e maquinarias sociais que tratam-nos como essencialmente desiguais e afirmam que alguns nascem mais humanos do que outros. George Orwell strikes again.

É sempre bom lembrar: “1984” não é um manual de instruções!

Os muros do apartheid também cercam as escolas. As fronteiras divisórias que segregam também estão construídas no próprio interior delas. O espaço idealmente concebido para a transmissão dos legados culturais do passado às novas geração encontra-se concretamente crivado de contradições e de antagonismos sociais. O acesso a certos cargos de prestígio no mundo empresarial, por exemplo, só se dá pela travessia prévia de um percurso educacional que passa necessariamente pelas instituições de ensino que a burguesia mantêm rigidamente controladas, em seus portões de entrada, erguendo barreiras contra a ralé.

Edmont Goblot (1858 – 1935), em seu “A Barreira e o Nível” (Ed. Papirus), achará para isso a expressão lapidar: na sociedade burguesa, mentem-nos sobre uma utópica liberdade de oportunidades, porém, na hora do vamos ver, não é verdade que “qualquer um pode tornar-se burguês”, caso trabalhe duro ou ganhe na loteria, por exemplo; para tornar-se um burguês, dirá Goblot, “primeiro é preciso tornar-se bacharel”. Na sociedade burguesa, argumenta Edmont Goblot (1858 – 1935), há duas escolas, distintas e segregadas: o liceu dos burgueses vs a escola do povo:

“Não é verdade que a burguesia só exista através de seus costumes e não através das leis. O liceu constitui sua instituição jurídica… O bacharelado, eis a barreira séria, a barreira oficial e garantida pelo Estado, que lhe serve de defesa contra a invasão. Sem dúvida, pode-se tornar burguês; mas, para tanto, é preciso antes tornar-se bacharel… Quando, ao invés de pensar em seus interesses individuais, o burguês pensa em seus interesses de classe, passa então a ter necessidade de uma cultura capaz de diferenciar uma elite, uma cultura que não seja puramente utilitária, uma cultura de luxo. Não fosse isto, poderia confundir-se rapidamente com uma parte das classes populares que consegue instruir-se às custas de trabalho e inteligência e que se apropria das profissões liberais… Deste modo, ainda que não tenham qualquer aplicação profissional, os estudos humanistas são úteis para manter de pé a barreira.” (GOBLOT, A Barreira e o Nível / La Barrière et le Niveau, Paris, Alcan, 1930, p. 126, apud Bourdieu, p. 220)

Quando falo em segregação escolar, apartheid na educação, não penso somente no passado, nos tempos idos da burguesia francesa de fin de siècle e que Engels, Marx, Thompson, Flora Tristan e Goblot, dentre outros, teriam descrito em obras de interesse apenas histórico e “arqueológico”, mas que já teria atingido o pó da história morta, enterrada e ineficaz. Não: seguimos no seio da cisão instaurada pela segregação; somos os quase-cidadãos de sociedades segregadas; convivemos não só uns com os outros, mas cada classe, grupo, partido e seita com a profusão de muros e cercas de arame farpado que nos separam, nos isolam, nos des-comungam. A Palestina é trash, mas não se iluda: a Palestina também é aqui.

Ainda hoje, a cisão entre escolas privadas e públicas, todo a intensa polêmica envolvendo este debate sobre a “privatização do ensino” proposta pelos neoliberais e contestada por várias das frentes da esquerda, permanece viva. A violenta desconstrução que está sendo imposta ao sistema de educação pública no Brasil, em especial após o golpe de 2016 e a aprovação serelepe da emenda constitucional que congela por 20 anos os investimentos públicos, explicita novamente uma velha verdade: as elites econômicas e políticas, entre nós, nunca quiseram a escola para todos, a escola igualitária, a escola de qualidade disseminando-se com seus sóis iluminadores por todos os bastiões de trevas que pululam ainda em nossas mais de 200 milhões de cavernas mentais.

Aquilo que os pobres têm dentro do crânio nunca foi de muito interesse para os burgueses, bacharéis e doutoros, com PHDs e currículos Lattes pimpões; o cérebro dos pobres podia ser tranquilamente sacrificado no altar das fábricas, ao pesadelo mecanizado das linhas de montagem. O que estamos vivendo com esta pavorosa avalanche de retrocessos, patrocinada pelas forças políticas, juríticas, midiáticas e empresariais responsáveis pelo golpeachment e seu séquito tenebroso de reformas (previdência, trabalhista, ensino médio etc.), é nada menos que a depredação da Constituição de 1988, como argumenta este excelente artigo em Outras Palavras:

“O processo a que estamos assistindo é a elaboração, sob as nossas barbas, de uma nova constituição, que joga a Constituição Cidadã no lixo. A Constituição de 1988, que tinha a missão de eliminar de vez o entulho autoritário e estabelecer bases democráticas para a nação, foi elaborada com intensa participação de cidadãos e cidadãs, durante mais de dois anos. Foi elaborada em amplo processo de negociação em que tomaram parte todos os setores da sociedade, parlamentares, partidos políticos, organizações da sociedade civil, movimentos sociais, indivíduos. Foram apresentadas 120 propostas de emendas populares, reunindo 12 milhões de assinaturas e, não custa lembrar, não havia internet nem celular.

A nova Constituição está sendo elaborada por encomenda de um governo ilegítimo e eivado de corruptos, inaugurado a partir do impedimento de uma presidente eleita pelo voto popular — impedimento, diga-se com todas as letras, sem crime de responsabilidade. Um governo ilegítimo que é aprovado por menos de 10% da população. Está sendo aprovada a toque de caixa por um Congresso onde mais da metade dos parlamentares está sob suspeita de corrupção, improbidade administrativa, recebimento de propinas ou caixa 2. Mais da metade dos parlamentares foi eleita com recursos de empresas (bancos, empreiteiras ou outras empresas, inclusive do agronegócio): tais políticos não representam os interesses de seus eleitores e, sim, os interesses de seus “compradores” (os financiadores de suas campanhas).

O governo tem enviado ao Congresso projetos de lei que revogam os direitos presentes na Constituição de 1988, o direito ao trabalho, o direito à proteção social, o direito à saúde, o direito à educação. (…) O governo tem enviado ao Congresso projetos de lei que revogam os direitos presentes na Constituição de 1988, o direito ao trabalho, o direito à proteção social, o direito à saúde, o direito à educação. (…) Nenhum destes direitos ficará de pé com a entrada em vigor da PEC 55, a PEC do Teto dos Gastos (também conhecida como “PEC do Fim do Mundo” ou de “PEC da Morte”) ou com a lei da “terceirização universal”recentemente aprovada, com a reforma trabalhista que o governo pretende fazer votar. Os direitos sociais promulgados em 1988 estão sendo simplesmente descartados, supostamente para enfrentar a grave crise econômica por que estamos passando. Mas esta retirada de direitos não resolverá a crise econômica, apenas transferirá uma boa parte dos salários, aposentadorias e pensões da maioria da sociedade, dos trabalhadores, da classe média e dos mais pobres, para os mais ricos, para a elite. Para a maioria, a crise só vai aumentar.”


 

O passado pode sempre ser muito elucidador para pensar os dilemas do presente e de nossas atuais segregações sociais: por exemplo, no Sul dos EUA, por voltas de meados do século XIX, a segregação racial era tamanha que as escolas de qualidade – que poderiam tranquilamente ser chamadas escolas “de elite” – eram totalmente “off limits” para a população afroamericana. O filme de Martin Ritt, “Conrack”, estrelado por Jon Voight, baseado no livro de memórias de Pat Conroy (The Water is Wide), é uma expressões cinematográficas mais tocantes e impressionantes disso: no fim dos anos 1960, a ilha onde o filme se passa ainda tem uma única escola onde os alunos negros haviam sido tratados, até então, com o quase completo abandono ou somente tratados como bestinhas enfurecidas a domar com a palmatória.

Quando recém-chegado professor conhece sua turma – que ele, de brincadeira, chamará de “gangue” – é lastimável o estado de desmazelo intelectual que reina ali no seio daqueles que nunca tiveram a oportunidade de vivenciarem um contexto institucional onde cotidianamente o intelecto é convocado a exercer-se e desenvolver-se. Quando o novo professor, apelidado pela gangue como Conrack,  recebe a responsabilidade de educar os pequenos, ele expõe à diretora da escola suas primeiras experiências ao sondar a ignorância abissal à que foram largadas aquelas crianças:

– Sete de meus alunos não conhecem o alfabeto, três crianças não sabem escrever o nome, dezoito crianças não sabem que estamos em guerra no sudeste da Ásia. Nunca ouviram falar em Ásia. Uma criança pensa que a terra é chata e dezoito concordam com ela. Cinco crianças não sabem a data de nascimento. Quatro não sabem contar até dez, os quatro mais velhos pensam que a Guerra Civil foi entre os alemães e japoneses. Nenhum deles sabe quem foi George Washington ou Sidney Poitier! Nenhum jamais foi ao cinema, nem subiu no morro, nem andou de ônibus – esses meninos não sabem de nada.

No filme, que se passa em 1969, em plena Guerra do Vietnã, o professor age sobre a turma como um guru da contracultura – eram tantos naquela época! Nada ortodoxo, Conrack fala palavrão, berra no futebol americano, fala sobre sexo abertamente (as autoridades começam a persegui-lo, buscando sua pronta demissão, quando descobrem que ele desenhou uma vagina na lousa em uma aula de anatomia humana…). Sem sentir-se aprisionado à cela-de-aula, Conrack é um professor que vai ao mundo, explorando uma pedagogia on the move, que inclui um alto componente lúdico – ou seja, leva a sério a importância do aprender-brincando.

Segundo Fabris (2001):

Outras experiências foram oportunizadas por Pat Conroy em outros espaços pedagógicos além dos escolares, ampliando assim o conceito de pedagogia. Quando ensinava na praia, na floresta, no chão da escola, na festa de Halloween, na viagem de barco, nas ruas de Beaufort, esse professor fazia deslocamentos no tempo e espaço, e sua tentativa era de inclusão dessas crianças na vida americana. Quando leva seus alunos e alunas a participar da festa de Halloween, ensina a nadar, convive com os habitantes da ilha e ensina a seus alunos e alunas a convivência na ilha, Pat Conroy produz deslocamentos de tempos e espaços escolares. A pedagogia do herói se caracteriza por esse desbravamento, por essa conquista de novos lugares, desse ultrapassar fronteiras, dessa luta e competição.

Martin Ritt, cineasta de uma sensibilidade humana e empatia com seus personagens que manifesta-se em extraordinárias obras como “Norma Rae”, transforma em travessia existencial memorável as interações de Conrack com as crianças. É um filme que inaugura uma espécie de sub-gênero, aquele dos professores-inspiradores que, mesmo que entrem em clash contra um establishment demasiado duro, rígido, ortodoxo, no rigor mortis de suas ações disciplinares e burocráticas mofadas, propondo pedagogias inovadoras, ou pelo menos instaurando relações humanas transformadoras e iluminantes, como ocorre em obras posteriores como Sociedade dos Poetas Mortos, de Peter Weir; Detachment – O Substituto, de Tony Kaye; Capitão Fantástico (2016) etc.

No presente, disfarçamos as desigualdades e injustiças de nosso estado social de segregação e esgarçamento da solidariedade com a máscara cômoda da “meritocracia”. Arendt já havia percebido o quanto a meritocracia é anti-democrática, pois instaura uma espécie de neo-aristocracia, ou seja, “governo dos melhores”, ou dos que são distinguidos assim pelos poderes instituídos. “A meritocracia contradiz, tanto quanto qualquer outra oligarquia, o princípio da igualdade que rege uma democracia igualitária.” (Arendt, op cit, p. 229)

A educação que não forma para o senso crítico e a participação cidadã é cúmplice das atrocidades e da “banalidade do mal”: hoje sabemos o preço altíssimo que pagamos, como humanidade, por termos ensinado as novas gerações a obedecer, aquiescer, respeitar – ao invés de termos fomentando a capacidade de auto-determinação, reflexão, autonomia. Como diz o professor encarnado por Adrien Brody em Detachment, filme de Tony Kaye, vivemos uma época onde o marketing realiza uma verdadeiro holocausto mental com as mentes trituradas no moedor de miolos da sociedade de massas e seus espetáculos.

A “assimilação ubíqua” – ser uma esponja que, passiva e receptiva, deixa-se “penetrar” por conhecimentos que os mestres-maiorais transmitem – está longe de ser um ideal pedagógico louvável: o aluno não deve ser convidado a ser esponja, assimilando apenas, mas sim sujeito trans-individual crítico e autônomo, capaz de dar expressão a seus pontos de vista e de criar suas próprias obras e conhecimentos no seio das interações educativas.

A evocação do “duplipensar” (doublethink) de George Orwell, na distopia totalitária de 1984, destaca que a educação não pode passar sem heroísmo, pois tem como adversários – e são fortíssimos – a ilusão, a doutrinação ideológica, a estreiteza mental, o obscurantismo, o fanatismo, as dicotomias rasas, os maniqueísmos simplistas, as enganações canalhas de toda sorte e estirpe, enfim todos os convites à falsa consciência e à alienação de que nossa sociedade está repleta.


MONTAIGNE, TAGORE, NUSSBAUM: Por uma educação renovada

Neste semestre [1/2017], estou com a responsa de lecionar, lá no IFG – Anápolis, sobre “Filosofia da Educação” para a turma de Ciências Sociais. Estou em busca de filósofos relevantes, através da história, que forneceram contribuições importantes à pedagogia, em especial aquela voltada à emancipação/libertação (como sugerido pelos colegas, ando pesquisando Jacques Rancière, Martha Nussbaum, Henri Marrou, Henry Giroux, Stuart Mill, W. Jaeger etc.).

Agradeço quaisquer dicas extras e também sou grato a todas as indicações que rolaram no fórum facebookiano. Encontrei o fascinante trecho abaixo, escrito pela pena inspirada do mestre Montaigne, durante esta recém-iniciada empreitada de mais intensas pesquisas sobre as confluências entre filosofia e educação:

“Os professores não param de gritar em nossos ouvidos, como quem entornasse o conhecimento num funil: nossa tarefa seria apenas repetir o que nos disseram. Gostaria que eles corrigissem essa prática e que desde o início, segundo a capacidade do espírito que tem em mãos, começassem a pô-lo na raia, fazendo-o provar, escolher e discernir as coisas por si mesmo. Ora abrindo-lhe o caminho, ora deixando-o abrir.

Não quero que só o preceptor invente e fale: quero que, quando chegar a vez de seu discípulo, o escute falar. Sócrates e mais tarde Arcesilau mandavam primeiramente seus discípulos falarem, e só depois lhes falavam. É bom que o faça trotar à sua frente para julgar sua andadura e avaliar até que ponto deve se pôr em seu nível para adaptá-lo à sua força. Se não respeitamos esse equilíbrio, estragamos tudo.

(…) As abelhas libam as flores aqui e ali mas depois fazem o mel, que é todo delas; não é mais tomilho nem manjerona. Assim, o aluno transformará os elementos emprestados de outros e os fundirá para fazer uma obra toda sua. O ganho de nosso estudo é termo-nos tornado melhores e mais sábios. Mas decerto nós tornamos a inteligência servil e covarde não lhe deixando a liberdade de fazer algo por si só.”

MICHEL DE MONTAIGNE, Sobre a Educação das Crianças, “Ensaios” (Penguin, p. 91, 92, 94)

A crítica do processo educativo como “funil” – unilateral e anti-dialógico – parece-me aí um prenúncio da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire e sua crítica da “concepção bancária” da educação. Também floresce em Montaigne a valorização da autonomia do aluno, que deve ser incentivado a andar com as próprias pernas e realizar, como uma abelha, a fabricação de um mel próprio a partir dos contatos que fará com inúmeras flores-do-conhecimento. Imagem poética e inspiradora. Terá Paulo Freire retirado um bocadinho de sua imensa sabedoria também nesta fonte inesgotável de sophia que foi Montaigne?

Próxima etapa: tentar contrastar 2 pensadores franceses iluministas importantes sobre o tema da educação, Rousseau e seu “Emílio” (defenestrado, ao meu ver com inteira razão, no tratado inaugural do feminismo, o de Mary Wollstonecraft) e Condorcet e suas iluminadas “Memórias Sobre o Ensino Público”.

Quem tiver bibliografia sobre Filosofia da Educação pra sugerir, não hesite em comunicar! (educarlidemoraes@gmail.com)

Mais do que nunca, pulsa no peito a certeza: ser professor exige que a gente continue aluno. Mais que isso: professor é um bicho que precisa aprender mais que ninguém… É um ofício que exige pôr em ação aquela ética que, na canção imortal de Gonzaguinha, resume-se na fórmula: “eterno aprendiz”.

Encontro também algo neste espírito na pena inspirada de um mestre eclético da poiésis e uma das encarnações orientais mais radiantes da sophia: Rabindranath Tagore (1861 – 1941):

“Um professor jamais pode realmente ensinar se ele não estiver ainda aprendendo. Uma lâmpada não pode jamais acender uma outra lâmpada se não continuar a queimar sua própria chama. O professor que chegou ao fim de seu assunto, que não tem mais intercâmbio vivo com seu conhecimento mas meramente repete sua lição aos seus estudantes, consegue apenas empanturrar suas mentes, mas não pode torná-las mais agéis.” (R. TAGORE; Tradução – Eduardo Carli de Moraes)

Poeta, escritor, músico, educador, filósofo, pintor, coréografo, dentre outras coisas, Tagore foi o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1913. Ele possui toda uma reflexão sobre a educação que não são apenas belas palavras, pois ele botou em prática todos os seus ideais fundando a Universidade Visna-Bharati. Sobre ele, conta Martha Nussbaum, em seu livro Sem Fins Lucrativos (Ed. Martins Fontes), que “Tagore odiava todas as escolas que havia frequentado e as abandonou assim que pôde. O que ele odiava era a aprendizagem repetitiva e o tratamento do aluno como um depósito passivo dos valores culturais consagrados. Os romances, as histórias e os dramas de Tagore são obcecados pela necessidade de desafiar o passado, de permanecer sensível a um amplo conjunto de possibilidades.”

Em uma de suas histórias, The Parrot’s Training, Tagore relata como um papagaio de um poderoso rajá é educado: preso em uma gaiola dourada, encarcerado na cela-de-aula, recebe lições de professores que têm as duas mãos ocupadas: uma com a vara para a punição, outra com o livro didático… O papagaio, privado da liberdade de voar, obrigado a apenas repetir decorebas, sempre sob ameaça de tomar um cascudo dos seus instrutores, é um emblema de tudo o que há de errado na educação “bancária” de que fala Paulo Freire, aquela que enxerga alunos como papagaios a serem mantidos quietos e passivos, nos quais depositar e transferir aquilo que depois devem apenas reproduzir e repetir. “Os alunos da escola de Tagore em Santiniketan”, garante Nussbaum, “não tiveram essa triste sina”: 


“Toda a educação que recebiam servia para alimentar a capacidade de pensar por si próprios e de se tornar participantes dinâmicos das escolhas culturais e políticas, em vez de simplesmente seguir a tradição. Além disso, Tagore era especialmente sensível ao ônus injusto que os costumes ultrapassados impunham às mulheres (…). O socratismo de Tagore, como sua coreografia, é moldado pela defesa apaixonada da emancipação das mulheres, assim como por sua própria experiência infeliz nas escolas antiquadas.

A escola fundada por Tagore era, sob vários aspectos, extremamente não convencional. Quase todas as aulas eram dadas ao ar livre. As ciências humanas permeavam todo o currículo, e artistas e escritores talentosos acorreram para a escola a fim de participar da experiência. (…) Outro artifício que Tagore utilizava para estimular o questionamento socrático era o role-playing (RPG, ou jogo de interpretações), no qual se pedia que as crianças trocassem seu ponto de vista pelo de outra pessoa. Isso lhes permitia experimentar outras posições intelectuais e compreendê-las de dentro. Começamos a perceber a ligação estreita que Tagore forjou entre o questionamento socrático e a empatia criadora…” (NUSSBAUM, p. 72)

Também é minha convicção que uma aula de filosofia pode ser espaço aberto para a criatividade artística, a empatia criadora e a encenação teatral, atividades em suma que estimulam a nossa capacidade de nos pormos na pele dos outros, de adotarmos uma outra perspectiva existencial, multiplicando assim a nossa compreensão sobre a complexidade do real. Quando proponho aos alunos que realizem teatros filosóficos, estou estendendo um convite para que inventem diálogos sobre temas que eles sentem como existencialmente problemáticos. Do fundo deles mesmos, da vivência encarnada deles, deve vir à tona um tema para o teatro, ou seja, para a interação humana transformada em espetáculo público, debatível em grupo.

Segundo o relato que Martha Nussbaum faz da didática anti-convencional e altamente poética de Tagore, não havia limites ou fronteiras separando a auto-poiésis do devir-outro, muito pelo contrário: a auto-criação e a auto-recriação constantes, que fazem de nós seres inconclusos, metamorfoses ambulantes (como diz nosso filósofo-cantor-heraclitiano Raul Seixas), é favorecida e catalisada por nossas interações com a alteridade e com o ascenso de nossa capacidade de adotar o contexto e a perspectiva do outro como um método para a compreensão empática.

“Tagore utilizava a interpretação de papéis durante todo o dia escolar, enquanto os pontos de vista intelectuais eram explorados pedindo-se às crianças que assumissem posturas conceituais desconhecidas…. Não era uma simples brincadeira lógida, e sim uma forma de estimular a compaixão ao mesmo tempo que se desenvolviam capacidades lógicas. Ele também usava a interpretação de papéis para explorar a difícil esfera da diferença religiosa, estimulando os alunos a celebrar os rituais e as cerimônias de religiões diferentes das suas e a compreender o desconhecido por meio de uma participação criativa.

Tagore utilizava acima de tudo produções teatrais elaboradas, misturando dramaturgia, música e dança para fazer com que as crianças explorassem diversos papéis com uma participação plena do corpo, assumindo posturas e gestos desconhecidos. A dança era um elemento fundamental da escola, tanto para meninos como para meninas, já que Tagore acreditava que para explorar o desconhecido é preciso deixar de lado a rigidez corporal e a vergonha de assumir um papel.” (Nussbaum, p. 104)

LEIA TAMBÉM EM BRAIN PICKINGS: Quando Einstein encontrou TagoreTagore troca cartas com Gandhi

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Eduardo Carli de Moraes
Maio de 2017


BIBLIOGRAFIA
ARENDT, Entre o Passado e o Futuro, Ed. Perspectiva, 2011, 7ª ed.
BOURDIEU, A Economia das Trocas Simbólicas, Ed. Perspectiva.
FABRIS, Elí Terezinha Henn. As marcas culturais da Pedagogia do herói. In: 24ª Reunião Anual da Associação de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd): intelectuais, conhecimento e espaço público, 2001, Caxambu (MG).
GOBLOT, A Barreira e o Nível (La Barrière et le Niveau), Paris, Alcan, 1930, p. 126, apud Bourdieu, p. 220. Publicado no Brasil pela Ed. Papirus.
MONTAIGNE, Sobre a Educação das Crianças, “Ensaios”, Livro I, Penguin Classics.
NUSSBAUM, Martha. Sem Fins Lucrativos. Ed. Martins Fontes.

FILMOGRAFIA

Conrack, de Martin Ritt. Da obra de Pat Conroy. Estrelado por Jon Voigt.
Detachment, de Tony Kaye. Estrelado por Adrien Brody.
Pink Floyd – The Wall, de Alan Parker.