Flutuando no Rio Sucuri (MS) – Diário de Bordo



deixe-me ir, preciso andar
vou por aí a procurar
sorrir pra não chorar…

cartola
“preciso me encontrar

* * * * *

O Oráculo de Delfos ostentava dois estandartes, protótipos antiqüíssimos dos slogans de auto-ajuda e dos biscoitinhos-da-sorte: “nada em demasia!” e “conhece-te a ti mesmo!”  A civilização grega aí desenhava sua tábua de valores onde a prudência, a temperança e a introspecção auto-descobrinte eram vistas como alguns dos melhores ingredientes da sabedoria, especiarias no caldo deleitoso do savoir-vivre.

Já o sambista-oráculo dos morros cariocas, Cartola, canta num velho samba sobre sua vontade de “se encontrar”, mas não concebe este encontro consigo como o efeito de um olhar para dentro de si, apolíneo e socrático, mas muito mais como uma abertura ao mundo: “quero ver o Sol nascer, ver as águas dos rios correr, ouvir os pássaros cantar… eu quero nascer, quero viver!”

Privilégio de poetas e almas cantantes: procurar-se lá fora e encontrar-se ao se perder… Estranha vontade de criaturas devaneantes: nascer depois de já ter nascido (“nascer é muito comprido”, frisa Murilo Mendes…), encontrar-se indo lançar-se em riachos e sinfonias de pássaros… Que entendam aqueles que não tem medo de poetas e paradoxos!

“Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras.” (Manoel de Barros)

Flutuar no rio Sucuri é mais uma experiência heraclítica do que platônica: é uma lição concreta, ministrada silentemente pela natureza, sobre o velho dito de Heráclito – “tudo flui… não se entra duas vezes no mesmo rio.” Nós, humanos, costumeiramente tão arrogantes diante da natureza, podemos enfim abandonarmo-nos a ela como folhas ao vento, sentir sua potência imensamente maior que a nossa, conduzindo-nos rumo a sabe-se-lá-que-mar…

Pra que nadar, bater perna, gastar energia? Basta o abandono. As águas fazem todo o trabalho. A correnteza nos conduz como se fôssemos barquinhos de carne, boiantes em seu ventre líquido e móvel… Os peixes, que eu, em minha expectativa, imaginava mais abundantes, formando vastos cardumes de seres gregários em espantosas marchas subquáticas, escasseavam. O guia explicou que é época de reprodução e que muitos se escondem para a desova. Ainda assim, pude, peeping tom de um elemento alheio, espiar estas vidas tão lisas e fluidas em estado… VIVO! E não como um cadáver no prato, um defunto no açougue, um pedaço de carne imóvel no mercado. Como não ganhar ainda mais convicção no vegetarianismo depois de uma experiência dessas?

A horinha e pouco que passei arrastado pelo rio Sucuri, lutando pra me familiarizar com o snorkel e a máscara, pasmo com o ineditismo da experiência, valeram por algo semelhante a uma experiência mística atéia.
Registrei alguns tecos da realidade fluvial que deslizava por baixo de minha carcaça flutuante com a máquina fotográfica à prova d’água que aluguei na Agência Ar (35 reais por um dia inteiro de uso). Um pouco da “entrega” à experiência fica arrefecida pela preocupação com o registro; mas, por outro lado, a vontade de levar para casa souvenirs de uma vivência tão única é agradavelmente suprida.

Eu descia o rio ciente (heracliticamente!) de que jamais entraria de novo no mesmo rio – se repetisse o passeio, eu já seria outro na segunda ocasião, enriquecido pela experiência ganha na primeira… – mas ao mesmo tempo a tecnologia me garantia que tudo aquilo que minhas retinas viam não estava peremptoriamente condenado à efemeridade de uma aparição fugaz. Trouxe comigo estilhaços, lembranças imagéticas, como que criando uma memória objetivada, fora de meu cérebro, inacessível às costumeiras podridões da carne…

No começo da tentativa de processo psicoterapêutico narrado pelo Anticristo, de Lars Von Trier, o maridão psicólogo interpretado por Willem Dafoe, após conduzir a esposa para uma cabana no meio da mata, enlutada com a trágica morte de seu primogênito, cria uma espécie de “experimento curativo”: ela deve pisar descalça na grama e caminhar nela, em meio a sei lá que formigas peçonhentas e minhocas asquerosas, vencendo assim alguma estranha fobia que ela parece ter contraído com o trauma de sua perda.

Em estado de stress pós-traumático, ainda incapaz de conviver com o sofrimento de ter-lhe sido arrancado seu bebê, a personagem de Charlotte Gainsbourg precisa reaprender o contato com o mundo concreto que tanto a feriu e do qual ela quis se desligar, tamanha a violência do golpe por ele infligido. Quanta neurose não se mistura às nossas noções habituais sobre a Natureza? Quanta cegueira psíquica é necessária para que frequentemos churrascarias sem nos lembrarmos dos matadouros, peixarias sem conectá-las com os genocídios animais que as possibilitam?

Talvez uma das heranças maiores destes dois milênios de cristianismo seja justamente uma certa tendência psicológica de considerar a Natureza como inimiga, como fonte do pecado, como antro de predadores, como lugar de doenças, como selvageria incontrolável, ou mesmo como algo que precisa ser inteiramente subjugado e domado pela soberania humana, já que o Homem é imaginado como filho predileto do Criador, feito à sua imagem e semelhança, o que daria imensos privilégios e direitos que nenhuma outra criatura animal ou vegetal teria…

Quando Platão inventou a idéia de que o corpo é apenas um invólucro desimportante protegendo uma alma imortal, criando as bases para a metafísica e a ética do cristianismo (religião que, segundo Nietzsche, não passa de “platonismo para o povo!”), assentou as bases para este grande mau-entendido sobre a Natureza que vive até hoje e nos habita em segredo – caso não tenhamos movimentado nossas forças críticas e nossa lucidez vigilante para fazer frente a ele. Parece-me perigoso e neurótico demais este desprezo do mundo típico do cristão ortodoxo, esta noção de que o “terreno” não tem valor perto dos deleites que os eleitos um dia poderão gozar nas campinas verdejantes do paraíso, onde corre lei e mel por rios de doçura e paz… Este ideal imaginário de futuro redentor, agindo retroativamente sobre o presente, faz com que o mundo concreto acabe sendo vilipendiado em nome de beatitudes imaginadas e ausentes…

O contrário de ser cristão é estar “em núpcias com o mundo”, para usar uma expressão de Albert Camus, que soube se fascinar e se mergulhar nas paisagens argelinas de Tipasa e Argel – que descreve com tanto lirismo e devoção em seu belo “Núpcias / O Verão” (livro de cabeceira!). Trata-se de restituir ao mundo sua inocência, conspurcada pelos dogmas que lançaram a culpa no mundo, que projetaram Satã da Natureza, que fizeram do ato de morder a maçã e sorver seu rico sumo… um crime punível pela eternidade afora!

Entregar-se à esta correnteza é, ao mesmo tempo, recusar o pecado original e morder o fruto, deleitar-se com seu sumo, deixar seu suco escorrer pelo corpo, sem neura de sujeira, sem paranóias punitivas, sem neuroses fóbicas. A natureza não é a inimiga; pode ser a aliada. Decerto que, se encontrássemos pelo percurso um jacaré ou uma jibóia, correríamos por nossas vidas: a Natureza também inclui a grotesquice escandalosa da Cadeia Alimentar; os peixões comem os peixinhos, as zebras são papadas pelos leões, os insetos são digeridos vivos pelas plantas carnívoras, os vírus invadem nossas células e nos põem em pane… Não adianta harmonizar e idealizar, como se a Natureza fosse puríssima harmonia. Mas também não se deve demonizá-la: ela também comporta a possibilidade do abraço, a vereda do deleite, a chance da contemplação eufórica, o transe místico da unificação temporária… A Natureza não está lá e nós aqui: estamos NELA; dela somos parte ao invés de dela estarmos apartados; ela nos carrega, barcos cósmicos na corrente…