Poemas de Manoel de Barros [1916 – 2014]

Manoel de Barros [1916 – 2014] 

Compre “Poesia Completa” (Leya, 2010) na Livraria A Casa de Vidro

RETRATO DO ARTISTA QUANDO COISA

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.

* * *

TRATADO GERAL DAS GRANDEZAS DO ÍNFIMO

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

* * *

A DISFUNÇÃO

Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso de
a menos
Sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso
trocado do que a menos.
A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa
disfunção lírica.
Nomearei abaixo 7 sintomas dessa disfunção lírica.
1 – A aceitação da inércia para dar movimento às
palavras.
2 – Vocação para explorar os mistérios irracionais.
3 – Percepção de contigüidades anômalas entre
verbos e substantivos.
4 – Gostar de fazer casamentos incestuosos entre
palavras.
5 – Amor por seres desimportantes tanto como pelas
coisas desimportantes.
6 – Mania de dar formato de canto às asperezas de
uma pedra.
7 – Mania de comparecer aos próprios desencontros.
Essas disfunções líricas acabam por dar mais
importância aos passarinhos do que aos senadores.

* * *

Leia mais em Revista Bula: http://www.revistabula.com/2680-os-10-melhores-poemas-de-manoel-de-barros/

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Assista: Só 10% É Mentira (2008, doc)

manoelCompre “Poesia Completa” (Leya, 2010) na Livraria A Casa de Vidro
Raríssimo livro publicado pela LeYa Brasil, 2010, já esgotado. Reunião de 17 livros de poesia e 4 livros infantis escritos por Manoel de Barros entre 1937 e 2010. Sem grifos nem machucados. Perfeitas condições de leitura. Se desejar, solicite fotos.

[Encontro de Culturas Txt 16] Sabenças da Infância: as ensinanças lúdicas da oficina de Thâmile Vidiz no XVI ECTCV

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A X Aldeia Multiétnica e o XVI Encontro de Culturas também são espaço de congregação lúdica e união cirandeira no entrelaçamento das culturas. Foto: Santiago Asef.

INFÂNCIA QUE REVIVE

Como parte integrante do XVI ECTCV, a oficina “Sabenças da Infância” de Thâmile Vidiz explorou o universo do lúdico, suas práticas e saberes, suas graças e charmes, numa jornada de reconexão com as raízes

por Eduardo Carli de Moraes para o XVI Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros

A oficina “Sabenças da Infância”, com Thâmile Vidiz, animou o Espaço Petrobrás na quarta-feira, 27 de julho, como parte da programação do XVI Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros. O projeto tem como um de seus objetivos possibilitar que a diversidade das tradições e culturas de infância se revelem na criação e recriação de brincadeiras, num espaço lúdico onde os jeitos-de-jogar se entremesclam. Por que não misturar os modos de brincar tão conhecidos dos brasileiros (como as cobras-cegas ou os jogos de “o que é, o que é?”) com jogos vindos de outras civilizações (como a confecção artesanal das bonequinhas quitapenas da Guatemala)?

Brincadeiras, mímicas, canções, narrativas, trava-línguas, cabras-cegas, unidunitês, jogos de adivinhar, dentre outros elementos, deram o tom desta vivência que foi destinada a todas as idades, inclusive as que desejam uma reconexão com o frescor perdido da infância. Durante a oficina, uma maioria de adultos e adolescentes, acompanhados por três crianças, buscaram reencontrar-se com uma espontaneidade e uma graça que o correr dos anos às vezes trata de aniquilar. Como disse Carl Gustav Jung, infelizmente temos a tendência a “nascer como originais e morrer como cópias”.

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Apesar do clima de leveza e descontração, de jovialidade e muitos risos, a oficina de Thâmile Vidiz deu muito o que pensar sobre o valor do lúdico no processo de aprendizado: um trava-língua é excelente instrumento para desenvolver habilidades linguísticas, virtuosismo no trato com o verbo falado, podendo servir como primeiros passos no processo de desenvolvimento de futuros rappers, repentistas, radialistas, rapsodos.

Os jogos-de-adivinhar também tem a serventia de aguçar a curiosidade e botar os miolos para funcionar. Diante de um “o que é, o que é”, a mente sai em busca da resposta para o mistério de decifrar e nisto se exercita alegremente, desenvolvendo aptidões novas e colocando em movimento uma espécie de divertida vasculhação do mundo e seus mistérios: “Quem é que vive com os pés na cabeça? É o piolho! Quem é que dá muitas voltas e não sai do lugar? É o relógio! Quem é que cai de pé e corre deitado? É a chuva! Quem é que tem mais de 10 cabeças e não sabe pensar? A caixa de fósforos! Quem é que corre a casa e vai dormir no canto? A vassoura!”.

Quitapenas pelos pequenos e crescidos no Vilarejo de São Jorge, Chapada dos Veadeiros, em um encontro do Sabenças da Infância... Bonequinhas que surgiram na Guatemala, por mães indígenas para acalentar coração de crianças com medo...  SAIBA MAIS

Quitapenas criadas pelos pequenos e crescidos no Vilarejo de São Jorge, Chapada dos Veadeiros, em um encontro do Sabenças da Infância. Bonequinhas que surgiram na Guatemala, por mães indígenas para acalentar coração de crianças com medo… SAIBA MAIS!

Um dos auges da oficina de Thâmile Vidiz foi a confecção das quitapenas, pequeninas bonecas de origem nos povos indígenas da Guatemala. De fácil fabricação artesanal – você não precisa de muito mais do que palitos de fósforo, linhas para costura e muita criatividade para enfeites –, as pequenuchas quitapenas são brinquedos que cabem na palma da mão.

Como explicou Thâmile, o folclore conta que quando você não consegue pegar no sono, pois está aflito com preocupações, pode contar os teus problemas para a quitapena, depois guardá-la debaixo do travesseiro, e pronto: a pena se mandou. Segundo as lendas muito populares na cultura guatemalteca, a insônia será enxotada e as angústias serão aliviadas pelo simples fato de narrarmos nossos males para a microboneca. Eis um ótimo substituto – e muito econômico! – para o divã do psicanalista e os dispendiosos ouvidos de aluguel que são os praticantes do ofício psicanalítico.

Vivenciar a oficina “Sabenças da Infância” leva a pensar que, apesar da leveza e da graça com que faz e acontece, o lúdico é coisa séria na história. Em um estudo muito interessante, publicado em 1938, Johan Huizinga propôs que seria mais adequado que mudássemos o nome da espécie de homo sapiens para homo ludens. Afinal de contas, nada no percurso pregresso da humanidade, nem nada no nosso presente, referenda a avaliação de que sejamos sábios (sapiens). E tudo no nosso passado e no nosso presente indica que em toda parte, em qualquer latitude onde haja gente, culturas jogam, brincam, cantam, dançam. Em suma, congregam as pessoas com os cimentos invisíveis do lúdico.

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Em seu livro (acesse o ebook em PDF), Huizinga argumenta, de modo bem convincente, que o jogo é algo comum a todas as culturas, o traço de união que as congrega, uma espécie de universal concreto. Há quem jogue capoeira, há quem prefira o futebol; há quem toque violão, há quem prefira ficar no faz-de-conta ou no air guitar; tem quem prefira correrias e atletismos, e há os que são mais de um xadrez cerebral. De todo modo, não existe povo sem jogo, todo tipo de gente inventa sua ludicidade. E as artes, em sua raiz, também estão conectadas ao jogar, a ponto de Huizinga diagnosticar que a cultura, num sentido amplo, tem no lúdico, no “jogo”, um de seus nascedouros e uma de suas fontes mais importantes.

“O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da ‘vida cotidiana'” (Huizinga, “Homo Ludens”, 1980, p.33).

Vale notar que seria difícil quantificar a magnitude da riqueza cultural brasileira que emerge do âmbito do lúdico: não faltam artistas brincalhões e geniais por meio da história de nossas artes: lembremos somente, de modo sumário, d’Os Mutantes, de Tom Zé, do Patu Fu, de Oswald de Andrade, Manoel de Barros, Stanislaw Ponte Preta, de Henfil, Millôr Fernandes, Laerte, Angeli etc.

Quem acha que sabedoria é coisa de velhos e só existe em gente de cabelos brancos, pôde repensar este dogma a partir da oficina de Thâmile Vidiz. Ela nos revelou a amplidão das “sabenças da infância”, práticas e jogos que servem para congregar, transpondo os abismos da alteridade numa ciranda onde o eu transcende seu isolamento rumo a ser parte-de-nós. E o melhor: através do lúdico, empreendemos este processo de construção de pontes na companhia de risos e sorrisos. É também a sabença de Cartola: “A sorrir eu pretendo levar a vida / Pois chorando eu vi a mocidade… perdida.”

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Fotos: Pedro Henriques no XVI ECTCV

“O Poeta tem mania de comparecer aos próprios desencontros…” (Manoel de Barros) – Veja documentário completo

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MANOEL DE BARROS – Poesia Completa (Ed. Leya – 496 pgs.)
TRATADO GERAL DAS GRANDEZAS DO ÍNFIMO
PARTE I – A DISFUNÇÃO

Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso de a menos

Sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso trocado do que a menos.

A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa disfunção lírica.

Nomearei abaixo 7 sintomas dessa disfunção lírica:

1 – Aceitação da inércia para dar movimento às palavras.

2 – Vocação para explorar os mistérios irracionais.

3 – Percepção de contiguidades anômalas entre verbos e substantivos.

4 – Gostar de fazer casamentos incestuosos entre palavras.

5 – Amor por seres desimportantes tanto como pelas coisas desimportantes.

6 – Mania de dar formato de canto às asperezas de uma pedra.

7 – Mania de comparecer aos próprios desencontros.

Essas disfunções líricas acabam por dar mais importância aos passarinhos do que aos senadores.


Documentário completo: “Só 10% é Mentira”

Siga viagem: Livro de entrevistas com o poeta (série Encontros)
Poesia Completa (Ed. Leya – 496 pgs.)

O Narcisismo dos Povos Patriotários (Clastres & Todorov contra o Etnocentrismo)

“Narciso” de Caravaggio

“Será que é possível amar realmente alguém ignorando sua identidade? Vendo, em lugar dessa identidade, uma projeção de si mesmo ou de seu ideal? Sabemos que isso é possível e até frequente nas relações interpessoais, mas como fica no encontro das culturas? Não se corre o risco de querer transformar o outro em si mesmo e, consequentemente, de submetê-lo? De que vale então esse amor?”

TZVETAN TODOROV,
“Escravismo, Colonialismo e Comunicação”
in: A Conquista da América
(Ed. Martins Fontes, pg. 245)

O mito grego de Narciso, que narra a trágica morte por definhamento do gabarola que enamora-se com sua própria imagem, ao vê-la refletida nas águas, não é certamente um exemplo a ser seguido, mas muito mais arapuca a ser evitada. Os ingleses chamam isso de cautionary tale: tenham cautela para não serem tolos como Narciso, meus caros, caso contrário… “glub, glub, glub!” Nêmesis não perdoa.

Apesar das 3 grandes feridas que, segundo Freud, foram infligidas à nosso Narcisismo de espécie (nosso “especismo”, diria Peter Singer), ainda prosseguimos enganchados por ideários perigosamente narcísicos, em especial quando eles são tão disseminados e massivos que equivalem a verdadeiras epidemias psíquicas. Pois não são somente os indivíduos, afinal de contas, que têm tendências narcisistas: “sem dúvida o etnocentrismo, como frisa muito justamente Lapierre, é a coisa melhor distribuída do mundo: toda cultura é, poder-se-ia dizer, por definição etnocêntrica em sua relação narcisista consigo mesma” (CLASTRES, S.C.E., p. 35).

Morto precocemente aos 43 anos, num acidente de carro, Pierre Clastres foi uma inteligência dotada de uma audácia fora-de-série: filósofo francês, discípulo de Lévi-Strauss, mergulhou na vida de civilizações bem diferentes da européia, tendo convivido ampla e abertamente com  índios Guayaki, Guarani e Yanomami (dentre outros), tornando-se grande conhecedor das sociedades ditas “primitivas”, em especial as da América do Sul. Sua antropologia, longe de meramente descritiva ou factual, é apaixonadamente argumentativa e investigativa, parece carregar a marca de um engajamento existencial que transborda para seu texto vigoroso, de uma concretude impressionante, desestabilizador de dogmas e “abridor de horizontes” (para usar um termo poético de Manoel de Barros).

Um dos méritos mais evidentes do trabalho de Clastres, e que torna sua leitura recomendável para qualquer um de nós, e não somente para filósofos ou antropólogos, é que ele combate preconceitos tenazes que contaminam as relações humanas. Ele expõe as chagas de Narciso, mostra-nos o quão “viciados” e prejudicados (prejudiced!) são muitos dos olhares direcionados àqueles chamados de “selvagens”. Procura reconhecer e vencer “o adversário sempre vivaz, o obstáculo permanentemente presente na pesquisa antropológica, o etnocentrismo” (SCE, p. 35).

 Uma “velha convicção ocidental” , toda impregnada de narcisismo etnocêntrico, é a “de que a história tem um sentido único, de que as sociedades sem poder são a imagem daquilo que não somos mais e de que a nossa cultura é para elas a imagem do que é necessário ser” (SCE, p. 37). Como diz Viveiros de Castro, trata-se da miopia de julgar que índio ainda é índio e que o ideal para ele é… tornar-se como nós, civilizados. “Se nos obstinamos em refletir sobre o poder a partir da certeza de que a sua forma verdadeira se encontra realizada em nossa cultura, se persistimos em fazer dessa forma a medida de todas as outras, até mesmo o seu télos, então seguramente renunciamos à coerência do discurso e deixamos a ciência degradar-se em opinião.” (SCE, p. 40)

 O pensamento verdadeiramente livre sabe libertar-se de seu particularismo, de sua tendência narcísica a preferir o familiar, a entronar a si mesmo e aos valores de sua própria cultura. Clastres reivindica a necessidade da realização de uma “revolução copernicana” na Antropologia:  “Até o presente, e sob alguns aspectos, a etnologia deixou as culturas primitivas girarem em torno da civilização ocidental”, comenta Clastres. “Para escapar à atração de sua terra natal e se elevar à verdadeira liberdade de pensamento, a reflexão sobre o poder deve operar a conversão ‘heliocêntrica’” (SCE, p. 44). Se deixamos de crer na Terra como centro do cosmos, por que muitos povos ainda não abandonaram a crença de serem “a melhor civilização da Terra”?

 Pensar contra si mesmo é pensar com verdadeira liberdade. Decerto que é mais fácil abandonar-se ao pendor narcísico e às seduções do patriotismo, acomodando-se na crença de que pertencemos à melhor das civilizações possíveis. Mas o livre-pensar nada tem a ver com comodismo, facilidade ou covarde obediência a patriotadas. Desfazermo-nos da “miopia do ufanismo” e deixarmos de sermos “patriotários”, para usar as expressões do poeta José Paulo Paes, equivale a abrir-mo-nos para uma compreensão mais ampla do Outro. “O caminho desta conversão é indicado por um pensamento da nossa época que soube levar a sério o dos selvagens: a obra de Claude Lévi-Strauss… É tempo de buscarmos outro sol e de nos pormos em movimento. (…) Se é menos fatigante descer que subir, o pensamento no entanto não pensa lealmente senão contra a corrente?”

Uma das principais visões míopes do Narcisinho Etnocêntrico consiste em presumir que “as sociedades arcaicas não vivem, mas sobrevivem”. Em outras palavras: “sua existência é um combate interminável contra a fome, pois elas são incapazes de produzir excedentes, por carência tecnológica e cultural. Nada de mais tenaz que essa visão da sociedade primitiva – e ao mesmo tempo nada de mais falso.” (S.C.E., p. 32) Clastres procura “enfatizar a vaidade ‘científica’ do conceito de economia de subsistência, que traduz muito mais as atitudes e hábitos dos observadores ocidentais diante das sociedades primitivas que a realidade econômica sobre a qual repousam essas culturas. (…) É antes o proletariado europeu do século XIX, iletrado e subalimentado, que se deveria qualificar de arcaico”. De modo que a etnologia (ocidental, naturalmente…) é “vítima de uma mistificação tão grosseira e tanto mais temível quanto contribuiu para orientar a estratégia das nações industriais com relação ao mundo dito subdesenvolvido” (p. 33).

A Conquista da América possibilitou que se defrontassem duas sociedades radicalmente diversas, em que o problema do político foi resolvido de modos extremadamente antagônicos: de um lado, os brancos da Europa Ocidental, servidores de uma Monarquia Absoluta, tão acostumados ao despotismo que o julgavam coisa natural. De outro lado, os habitantes originais da América, dentre os quais “somente uma minoria ultrapassou a anarquia primordial” (p. 46). Os conquistadores, servos de Vossas Majestades, contrastavam de modo notório com os índios cujos chefes não tinham um pingo de autoritarismo ou despotismo. “Os primeiros descobridores do Brasil diziam a respeito dos índios Tupinambá: ‘gentes sem fé, sem lei, sem rei’. Seus chefes não possuíam com efeito nenhum ‘poder’. O que haveria de mais estranho, para pessoas saídas de sociedades onde a autoridade culminava nas monarquias absolutas da França, de Portugal ou da Espanha?” (p. 33)

 Com grande eloquência nos contrastes que estebelece, Pierre Clastres pinta um retrato da diferença extrema que existe entre as Sociedades Sem Estado (como eram quase todas as sociedades ameríndias pré-colombianas, inclusive as brasileiras) e as Sociedades Com Estado (aquelas dos invasores europeus, habitantes de regimes monárquicos e ainda feudais). “Nossa cultura ocidental, desde as suas origens, pensa o poder político em termos de relações hierarquizadas e autoritárias de comando-obediência”, escreve Clastres sobre as nações-Estado do Ocidente. “Considerando-se sua organização política, é essencialmente pelo sentido da democracia e pelo gosto da igualdade que se distingue a maioria das sociedades indígenas da América. Os primeiros viajantes do Brasil e os etnógrafos que os seguiram muitas vezes sublinharam: a propriedade mais notável do chefe indígena consiste na ausência quase completa de autoridade. (…) É a falta de estratificação social e de autoridade do poder que se deve reter como traço pertinente da organização política da maioria das sociedades indígenas.” (S.C.E., 47)

A Conquista da América deixaria um saldo obsceno de tão trágico: um dos maiores morticínios da história humana. “Só podemos afirmar nossa total concordância com Pierre Channu: ‘É preciso supor na América pré-colombiana 80 milhões, talvez 100 milhões de almas. A catástrofe da Conquista […] foi tão grande quanto o denunciou Las Casas’. Conclusão que estarrece: ‘Foi um quarto da humanidade, grosso modo, que foi aniquilada pelos choques microbianos do século XVI.” (CLASTRES, S.C.E., p. 117)

Pierre Clastres (à direita) junto com o cacique mbya-guaraní Ángelo Garay

O CHEFE INDÍGENA: PARADOXO DO PODER IMPOTENTE

 Robert Lowie, em um texto de 1948, definiu “três propriedades essenciais do líder índio, cuja recorrência ao longo das duas Américas permite apreender como condição necessária do poder nessas regiões” (p. 48):

1) APAZIGUADOR/PACIFISTA: o chefe é um “fazedor da paz”, um “árbitro que procura reconciliar”; ele tem a “tarefa da manutenção da harmonia no grupo”, “deve apaziguar as disputas e regular as divergências” (p. 49).

2) GENEROSO/DADIVOSO: o chefe deve ser “generoso com seus bens”, ou seja, têm “obrigação de dar tudo o que lhe pedem”, o que gera esta extravagante realidade de um “chefe que possui menos que os outros e traz os ornamentos mais miseráveis”.

3) DONS ORATÓRIOS/ELOQUÊNCIA: O chefe deve ser necessariamente um bom orador: o talento oratório é exigido desta figura e “numerosas são as tribos onde o chefe deve todos os dias, na aurora ou no crepúsculo, recompensar com um discurso edificante as pessoas do seu grupo” (p. 50). Seus discursos, quase sempre, “exortam a viver segundo a tradição” dos antepassados, em obediência às leis ancestrais (p. 50).

Tantos encargos são recompensados com alguns poucos privilégios: quase todas essas sociedades reconhecem o direito exclusivo do chefe à poligamia. “É então por 4 traços que na América do Sul se distingue o chefe: ele é um apaziguador profissional; deve ser generoso e bom orador; possui, enfim, o privilégio da poliginia” (p. 55).

 Longe de ser um déspota, um tirano, um “concentrador” de poder ou capital, o chefe indígena é decerto “humilde” em comparação com os chefes politicos do Ocidente dito “civilizado”. As sociedades indígenas são organizadas de modo a coibir e impedir as desigualdades gritantes, de modo que “nenhum indivíduo, mesmo que seja chefe, pode concentrar nas mãos muitas riquezas materiais”. “O líder não possui qualquer poder decisório”, “suas funções são controladas pela opinião pública” e ele vive na “fragilidade permanente de um poder sempre contestado” (p. 56).

Ao invés de reinar num palácio, sentado em seu trono, servido por serviçais, o “líder deve cultivar sua mandioca e matar sua caça” (p. 59). “A maioria dos líderes indígenas está longe de oferecer a imagem de um rei ocioso: bem ao contrário, o chefe, obrigado a responder à generosidade que dele se espera, deve incessantemente preocupar-se em encontrar presentes para oferecer à sua gente. (…) De modo que, curiosamente, o líder é quem, na América do Sul, trabalha mais arduamente.” (60)

 Bem distantes estamos dos tenazes preconceitos que julgam estas sociedades sempre sob o viés da falta, da ausência, do subdesenvolvimento: as sociedades indígenas, sustenta Clastres, não devem ser vistas como não tendo ainda podido desenvolver estas preciosas glórias ocidentais: o déspota, o tirano, a monarquia absoluta, a cisão radical entre os que comandam e os que obedecem, o trabalho alineado, a mais-valia, acumulação privada de lucros. Na verdade, como Clastres nos convida a perceber, as sociedades indígenas são caracterizadas por imenso apreço pelo igualitarismo e uma “recusa radical da autoridade” (63). Nascida de uma “intuição de que o poder é, em sua essência, coerção”, a escolha destas sociedades pela limitação da esfera da autoridade política manifestaria seu gosto visceral pela liberdade. “Venerado em sua impotência”, o líder indígena será abandonado ou morto em praça pública pelos membros da aldeia sempre que quiser abusar de seu poder, bancando o Poderoso Chefão.

* * * * * *

A SOCIEDADE CONTRA O ESTADO

A obra de Clastres dedica-se, com uma perspicácia e lucidez ímpares, a mostrar como não tem fundamento o argumento de que “essas sociedades estariam condenadas à economia de subsistência em razão da inferioridade tecnológica” (p. 204). Um “preconceito tenaz” leva muitos a insistir na “afirmação de que essa sociedade mobiliza permanentemente a totalidade de suas forças produtivas para fornecer a seus membros o mínimo necessário à subsistência”. A isto soma-se a ideia, também muito difundida, “de que o selvagem é um preguiçoso” (p. 205). Já se vê que há aí uma contradição entre estas duas “noções” de índio – pois das duas uma: ou os índios são uns “preguiçosos ociosos” ou são uns “trabalhadores infatigáveis e esfomeados”!

“Se em nossa linguagem popular diz-se ‘trabalhar como um negro’, na América do Sul, por outro lado, diz-se ‘vagabundo como um índio’. Então, das duas uma: ou o homem das sociedades primitivas vive em economia de subsistência e passa quase todo o seu tempo à procura de alimento, ou não vive em economia de subsistência e pode portanto se proporcionar lazeres prolongados fumando em sua rede. Isso chocou claramente os primeiros observadores europeus dos índios do Brasil. Grande era a sua reprovação ao constatarem que latagões cheios de saúde preferiam se empetecar, como mulheres, de pinturas e plumas em vez de regarem com suor as suas áreas cultivadas” (Clastres).

É que, vocês se lembram, foi o Deus bíblico, aquele celebrado pelos monarcas dos Absolutismos europeus, quem supostamente condenou Adão à labuta dura, punição pelo pecado originário: os índios, que não conhecem dessas mitologias de culpa e expiação através de labutas suarentas e exaustivas, eram bem mais lúdicos e celebrativos (artistas, enfim!) do que workaholics. Preferem fazer apenas o trabalho necessário (3 ou 4 horas por dia, no máximo!), ao invés de “se matarem de trabalhar” em turnos extenuantes, e tudo em prol da “produção de excedentes” (isto é, lucros para os patrões; mais especificamente, no caso de hoje, em prol da elefantíase das grandes multi-nacionais e seus acionistas em Wall Street). 

“Tratava-se portanto de povos [indígenas/autóctones] que ignoravam deliberadamente que é preciso ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Isso era demais, e não durou muito: rapidamente se puseram os índios para trabalhar, e eles começaram a morrer. Dois axiomas, com efeito, parecem guiar a marcha da civilização ocidental, desde a sua aurora: o primeiro estabelece que a verdadeira sociedade se desenvolve sob a sombra protetora do Estado; o segundo enuncia um imperativo categórico: é necessário trabalhar.” (p. 205)

Um contraste radical se desenha, pois, entre os workaholics das sociedades industriais que se auto-denominam “avançadas”, em seu frenético produtivismo-e-consumismo, e as sociedades indígenas, que seriam muito mais “civilizações do lazer”, da poesia, do misticismo – e da guerra, é claro, infortúnio que ao menos preserva as autarquias e impede a formação de impérios, como argumenta Clastres em Arqueologia da Violência.  “Os índios, efetivamente, só dedicavam pouco tempo àquilo a que damos o nome de trabalho. E apesar disso não morriam de fome. As crônicas da época são unânimes em descrever a bela aparência dos adultos, a boa saúde das numerosas crianças, a abundância e variedade dos recursos alimentares. Por conseguinte, a economia de subsistência das tribos indígenas não implicava de forma alguma a angustiosa busca, em tempo integral, de alimento.” (p. 206)

Dois exemplos concretos da quantidade ínfima de trabalho praticado pelos índios, em comparação com as jornadas de trabalho estafantes e mal-pagas, às vezes de mais de 10 horas diárias, que fez o proletariado e o funcionalismo “civilizados” padecerem por tantos séculos: “Jacques Lizot, que vive há muitos anos entre os índios Yanomami da Amazônia venezuelana, estabeleceu cronometricamente que a duração média do tempo que os adultos dedicam todos os dias ao trabalho, incluídas todas as atividades, mal ultrapassa 3 horas” (p. 207). Clastres soma a este exemplo sua própria experiência de quem viveu junto aos Guayaki da floresta paraguaia, garantindo que eles “passavam pelo menos a metade do dia em quase completa ociosidade” (p. 207).

Clastres comenta que o etnocentrismo ocidental também “invoca o subequipamento técnico, a inferioridade tecnológica”, para explicar a inferioridade dos pré-modernos. O único porém, evidentemente, está no fato desta tecnologia avançada de que tanto se gabam os civilizados estar em larga medida “baseada no insano projeto cartesiano cujas consequências ecológicas mal começamos a medir” (p. 203). A bomba atômica, a usina nuclear (com seus potenciais vazamentos…), o avião drone e os mísseis teleguiados também são gloriosas invenções técnicas ocidentais… A tecnologia posta à serviço da barbárie.

É adequado, portanto, falar das sociedades ditas “primitivas” como animadas por um ímpeto anti-estatal, por um desejo de evitar a cisão social e a emergência de uma classe de dominantes, senhores, imperadores, déspotas. A sociedade primitiva recusa o Estado pois deseja manter-se indivisa, sem uma fratura interna entre os que mandam e os que obedecem, entre os que trampam e os que exploram, entre os que vivem na miséria e os que vivem no fausto e no luxo (soa familiar, caro ocidental?). Ao falarmos em “sociedades sem Estado”, alega Clastres, fica sub-entendido uma certa “privação”, como se estas sociedades estivessem amputadas de algo crucial; por isso, Clastres prefere fazer em sociedades contra (e não meramente sem) o Estado. Quando se diz “sem Estado”, isto “na verdade dissimula uma opinião, um juízo de valor. O que de fato se enuncia é que as sociedades primitivas estão privadas de alguma coisa… são, portanto, incompletas. (…) Descobre-se nessa abordagem uma fixação etnocentrista… Cada um de nós traz efetivamente em si, interiorizada como a fé do crente, essa certeza de que a sociedade existe para o Estado. (…) Quase sempre, as sociedades arcaicas são determinadas de maneira negativa, sob o critério da falta: sociedades sem Estado, sem escrita, sem história.” (CLASTRES: 201-201)

  Lizot, falando dos Yanomami, destaca que são “sociedades de recusa do trabalho”; Marshall Sahlins, por sua vez, fala em “sociedades de lazer” e “sociedades de abundância” (p. 209). Essas sociedades não teriam ainda sido “contaminadas” pelo gosto da acumulação; nelas teria sido impedido o surgimento do poder político como “potência de sujeitar, capacidade de coerção”; ainda não havia nascido a peste do trabalho alienado, em que sujeitos esgotam-se em padecimentos terríveis no trabalho, e somente para que os frutos desses duros trabalhos sejam concentrados e acumulados nas mãos de patrões, acionistas, banqueiros – figuras de poder capazes de prosseguir coagindo a sociedade a prosseguir na trilha, salpicada de suor e lágrimas, do trabalho desumano e mal-pago.

“Estamos portanto bem longe da miserabilidade que envolve a ideia de economia de subsistência. (…) As sociedades primitivas dispõem, se assim o desejarem, de todo o tempo necessário para aumentar a produção dos bens materiais. O bom senso questiona: por que razão as pessoas dessas sociedades quereriam trabalhar e produzir mais, quando três ou quatro horas diárias de atividade são suficientes para garantir as necessidades do grupo? De que lhes serviria isso? Qual seria a utilidade dos excedentes assim acumulados? É sempre pela força que os homens trabalham além das necessidades. E exatamente essa força está ausente do mundo primitivo: a ausência dessa força externa define inclusive a natureza das sociedades primitivas. Podemos admitir a partir de agora, para qualificar a organização econômica dessas sociedades… no sentido de recusa de um excesso inútil, da vontade de restringir a atividade produtiva à satisfação das necessidades.” (p. 208)

 “A verdadeira revolução, na proto-história da humanidade, é a revolução política, é essa aparição misteriosa, irreversível, mortal para as sociedades primitivas, do que conhecemos sob o nome de Estado.” (p. 215) As consequências são conhecidas: a divisão da sociedade entre ricos e pobres, exploradores e explorados, proprietários e proletários… Essa hierarquização social vêm acompanhada por uma opressão política, uma violência externa que obriga a “trabalhar e produzir mais para satisfazer as necessidades dos novos senhores do poder.” (p. 216) Conhece-se a célebre definição marxista do “Estado como instrumento que permite à classe dominante exercer sua dominação violenta sobre as classes dominadas”; Clastres sugere, porém, que “convém inverter firmemente a teoria marxista da origem do Estado”, afirmando que “é o Estado que engendra as classes” (p. 235).

  “Nada existe, no funcionamento econômico de uma sociedade primitiva, de uma sociedade sem Estado, que permita a introdução da diferença entre mais ricos e mais pobres, pois aí ninguém tem o estranho desejo de fazer, possuir, parecer mais que seu vizinho. A capacidade, igual entre todos, de satisfazer as necessidades materiais, e a troca de bens e serviços, que impede constantemente o acúmulo privado de bens, tornam simplesmente impossível a eclosão de um tal desejo, desejo de posse que é de fato desejo de poder. A sociedade primitiva, primeira sociedade da abundância, não deixa nenhum espaço para a superabundância.” (…) “O selvagem é um sujeito que não saqueia. Ele tira da natureza aquilo de que necessita. Quando suas necessidades estão satisfeitas, ele se detém. (…) Portanto, não irá cortar inutilmente galhos de árvores, nem caçar por nada um animal. Nunca fará isso. Por isso, as sociedades primitivas seguramente não corriam o risco de destruir o ambiente.” (p. 217) Já a Civilização Ocidental-Industrial-Capitalista… talvez seja a mais ecocida de todas as civilizações que já houveram. O Ártico ela já conseguiu derreter: e a Amazônia, já tão amputada, será a próxima a “sumir do mapa”, para dar lugar a novos bancos e shopping centers? Ah! Quando não houver mais água limpa para beber, quando não houver mais oxigênio para respirar, quando não houver nem mesmo pios de pássaros nas matas, vocês vão descobrir, meus caros, que dinheiro não se pode comer…

Flutuando no Rio Sucuri (MS) – Diário de Bordo



deixe-me ir, preciso andar
vou por aí a procurar
sorrir pra não chorar…

cartola
“preciso me encontrar

* * * * *

O Oráculo de Delfos ostentava dois estandartes, protótipos antiqüíssimos dos slogans de auto-ajuda e dos biscoitinhos-da-sorte: “nada em demasia!” e “conhece-te a ti mesmo!”  A civilização grega aí desenhava sua tábua de valores onde a prudência, a temperança e a introspecção auto-descobrinte eram vistas como alguns dos melhores ingredientes da sabedoria, especiarias no caldo deleitoso do savoir-vivre.

Já o sambista-oráculo dos morros cariocas, Cartola, canta num velho samba sobre sua vontade de “se encontrar”, mas não concebe este encontro consigo como o efeito de um olhar para dentro de si, apolíneo e socrático, mas muito mais como uma abertura ao mundo: “quero ver o Sol nascer, ver as águas dos rios correr, ouvir os pássaros cantar… eu quero nascer, quero viver!”

Privilégio de poetas e almas cantantes: procurar-se lá fora e encontrar-se ao se perder… Estranha vontade de criaturas devaneantes: nascer depois de já ter nascido (“nascer é muito comprido”, frisa Murilo Mendes…), encontrar-se indo lançar-se em riachos e sinfonias de pássaros… Que entendam aqueles que não tem medo de poetas e paradoxos!

“Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras.” (Manoel de Barros)

Flutuar no rio Sucuri é mais uma experiência heraclítica do que platônica: é uma lição concreta, ministrada silentemente pela natureza, sobre o velho dito de Heráclito – “tudo flui… não se entra duas vezes no mesmo rio.” Nós, humanos, costumeiramente tão arrogantes diante da natureza, podemos enfim abandonarmo-nos a ela como folhas ao vento, sentir sua potência imensamente maior que a nossa, conduzindo-nos rumo a sabe-se-lá-que-mar…

Pra que nadar, bater perna, gastar energia? Basta o abandono. As águas fazem todo o trabalho. A correnteza nos conduz como se fôssemos barquinhos de carne, boiantes em seu ventre líquido e móvel… Os peixes, que eu, em minha expectativa, imaginava mais abundantes, formando vastos cardumes de seres gregários em espantosas marchas subquáticas, escasseavam. O guia explicou que é época de reprodução e que muitos se escondem para a desova. Ainda assim, pude, peeping tom de um elemento alheio, espiar estas vidas tão lisas e fluidas em estado… VIVO! E não como um cadáver no prato, um defunto no açougue, um pedaço de carne imóvel no mercado. Como não ganhar ainda mais convicção no vegetarianismo depois de uma experiência dessas?

A horinha e pouco que passei arrastado pelo rio Sucuri, lutando pra me familiarizar com o snorkel e a máscara, pasmo com o ineditismo da experiência, valeram por algo semelhante a uma experiência mística atéia.
Registrei alguns tecos da realidade fluvial que deslizava por baixo de minha carcaça flutuante com a máquina fotográfica à prova d’água que aluguei na Agência Ar (35 reais por um dia inteiro de uso). Um pouco da “entrega” à experiência fica arrefecida pela preocupação com o registro; mas, por outro lado, a vontade de levar para casa souvenirs de uma vivência tão única é agradavelmente suprida.

Eu descia o rio ciente (heracliticamente!) de que jamais entraria de novo no mesmo rio – se repetisse o passeio, eu já seria outro na segunda ocasião, enriquecido pela experiência ganha na primeira… – mas ao mesmo tempo a tecnologia me garantia que tudo aquilo que minhas retinas viam não estava peremptoriamente condenado à efemeridade de uma aparição fugaz. Trouxe comigo estilhaços, lembranças imagéticas, como que criando uma memória objetivada, fora de meu cérebro, inacessível às costumeiras podridões da carne…

No começo da tentativa de processo psicoterapêutico narrado pelo Anticristo, de Lars Von Trier, o maridão psicólogo interpretado por Willem Dafoe, após conduzir a esposa para uma cabana no meio da mata, enlutada com a trágica morte de seu primogênito, cria uma espécie de “experimento curativo”: ela deve pisar descalça na grama e caminhar nela, em meio a sei lá que formigas peçonhentas e minhocas asquerosas, vencendo assim alguma estranha fobia que ela parece ter contraído com o trauma de sua perda.

Em estado de stress pós-traumático, ainda incapaz de conviver com o sofrimento de ter-lhe sido arrancado seu bebê, a personagem de Charlotte Gainsbourg precisa reaprender o contato com o mundo concreto que tanto a feriu e do qual ela quis se desligar, tamanha a violência do golpe por ele infligido. Quanta neurose não se mistura às nossas noções habituais sobre a Natureza? Quanta cegueira psíquica é necessária para que frequentemos churrascarias sem nos lembrarmos dos matadouros, peixarias sem conectá-las com os genocídios animais que as possibilitam?

Talvez uma das heranças maiores destes dois milênios de cristianismo seja justamente uma certa tendência psicológica de considerar a Natureza como inimiga, como fonte do pecado, como antro de predadores, como lugar de doenças, como selvageria incontrolável, ou mesmo como algo que precisa ser inteiramente subjugado e domado pela soberania humana, já que o Homem é imaginado como filho predileto do Criador, feito à sua imagem e semelhança, o que daria imensos privilégios e direitos que nenhuma outra criatura animal ou vegetal teria…

Quando Platão inventou a idéia de que o corpo é apenas um invólucro desimportante protegendo uma alma imortal, criando as bases para a metafísica e a ética do cristianismo (religião que, segundo Nietzsche, não passa de “platonismo para o povo!”), assentou as bases para este grande mau-entendido sobre a Natureza que vive até hoje e nos habita em segredo – caso não tenhamos movimentado nossas forças críticas e nossa lucidez vigilante para fazer frente a ele. Parece-me perigoso e neurótico demais este desprezo do mundo típico do cristão ortodoxo, esta noção de que o “terreno” não tem valor perto dos deleites que os eleitos um dia poderão gozar nas campinas verdejantes do paraíso, onde corre lei e mel por rios de doçura e paz… Este ideal imaginário de futuro redentor, agindo retroativamente sobre o presente, faz com que o mundo concreto acabe sendo vilipendiado em nome de beatitudes imaginadas e ausentes…

O contrário de ser cristão é estar “em núpcias com o mundo”, para usar uma expressão de Albert Camus, que soube se fascinar e se mergulhar nas paisagens argelinas de Tipasa e Argel – que descreve com tanto lirismo e devoção em seu belo “Núpcias / O Verão” (livro de cabeceira!). Trata-se de restituir ao mundo sua inocência, conspurcada pelos dogmas que lançaram a culpa no mundo, que projetaram Satã da Natureza, que fizeram do ato de morder a maçã e sorver seu rico sumo… um crime punível pela eternidade afora!

Entregar-se à esta correnteza é, ao mesmo tempo, recusar o pecado original e morder o fruto, deleitar-se com seu sumo, deixar seu suco escorrer pelo corpo, sem neura de sujeira, sem paranóias punitivas, sem neuroses fóbicas. A natureza não é a inimiga; pode ser a aliada. Decerto que, se encontrássemos pelo percurso um jacaré ou uma jibóia, correríamos por nossas vidas: a Natureza também inclui a grotesquice escandalosa da Cadeia Alimentar; os peixões comem os peixinhos, as zebras são papadas pelos leões, os insetos são digeridos vivos pelas plantas carnívoras, os vírus invadem nossas células e nos põem em pane… Não adianta harmonizar e idealizar, como se a Natureza fosse puríssima harmonia. Mas também não se deve demonizá-la: ela também comporta a possibilidade do abraço, a vereda do deleite, a chance da contemplação eufórica, o transe místico da unificação temporária… A Natureza não está lá e nós aqui: estamos NELA; dela somos parte ao invés de dela estarmos apartados; ela nos carrega, barcos cósmicos na corrente…

OS GIRASSÓIS DE VAN GOGH

hoje eu vi
soldados cantando por estradas de sangue
frescura de manhãs em olhos de crianças
mulheres mastigando as esperanças mortas

hoje eu vi homens ao crepúsculo
recebendo o amor no peito.
hoje eu vi homens recebendo a guerra
recebendo o pranto como balas no peito.

e, como a dor me abaixasse a cabeça,
eu vi os girassóis de Van Gogh.

(MANOEL DE BARROS,
Poesia Completa, p. 36, Ed. Leya).