ANTÍDOTOS CONTRA O MAL DE ALZHEIMER NACIONAL – Sobre o romance “K. – Relato de Uma Busca”, de Bernardo Kucinski (Cia das Letras, 2016, 176 pgs)

O MAL DE ALZHEIMER NACIONAL
E UMA TERAPIA LITERÁRIA
CONTRA A MURALHA DE SILÊNCIO

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

Logo no primeiro capítulo de “K. – Relato de Uma Busca” (Cia das Letras, 2016, 176 pgs, compre já)Kucinski evoca o espectro de um certo “mal de Alzheimer nacional”. Escapando de ser apenas um romance autobiográfico, onde um sujeito elaboraria apenas seus traumas individuais, K. é um livro salutar por exumar os ossos de nosso passado coletivo. Um romance que se alça ao nível de retrato de uma época, mas que também visa ir além da descrição e agir como um antídoto contra o tal Alzheimer. A literatura como remédio. Nisto, seus efeitos e intenções parecem-me em sintonia com a Comissão Nacional da Verdade (2012 -2014), instituída durante a presidência de Dilma Rousseff, ou com iniciativas como o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, um dos locais mais imprescindíveis de se conhecer em Santiago do Chile.

Neste diagnóstico médico-sociológico que o livro veicula, o Brasil estaria adoentado devido a uma disseminada tendência ao esquecimento de seu passado, em especial devido ao recalque e ao pacto de silêncio que recobre boa parte do que ocorreu de terrível e atroz nos anos da ditadura militar (1964 – 1985) no trato truculento do regime com os opositores políticos (sobretudo aqueles que aderiram à resistência armada). Ainda que já estejamos carecas de saber que “um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la” (frase atribuída a figuras tão díspares quanto Che Guevara, Edmund Burke e George Santayana), parecemos agir muito pouco, e muito mal, em prol de um autêntico trabalho de acerto-de-contas com o passado. A Lei da Anistia de 1979 sacramentou a impunidade dos perpetradores fardados de torturas e homicídios, tendo feito pouco pela tão propalada “reconciliação nacional”.

A esperança infrutífera pode ser uma tortura. E os torturadores que agiam nas ditaduras militares latino-americanas o sabiam bem. Adicionaram ao seu arsenal de maldades aquilo que veio a ser chamado, por eufemismo, de “desaparecimentos” de adversários políticos. Dar um chá-de-sumiço em alguém significa condenar os amigos e familiares do desaparecido ao tormento infindável de uma esperança angustiosa e quase sempre vã. É roubá-los do direito ao luto.

Todos aqueles que tinham vínculos afetivos com o morto sofrerão, às vezes por anos, em uma busca dolorosa pelo sumido, sem nunca poderem ter a satisfação mínima de seu desejo de justiça contra os perpetradores ditatoriais do sumiço. Sumiço que é sintoma de terrorismo de Estado: agentes públicos das forças de segurança praticando, contra cidadãos-ativistas, sequestros seguidos de tortura, assassinato e ocultação de cadáveres. É no epicentro de uma dessas tragédias que nos coloca o romance de Bernardo Kucinski, assim apresentado pela editora:

Ana Rosa Kucinski, assassinada e desaparecida pela ditadura militar brasileira em 1974, aos 32 anos de idade. Professora da USP, Ana Rosa era formada em Química, doutora em Filosofia e militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN)

“Em 1974, a irmã de Bernardo Kucinski, Ana Rosa Kucinski (1942 – 1974), professora de Química na Universidade de São Paulo, é presa pelos militares ao lado do marido e desaparece sem deixar rastros. O pai dela, dono de uma loja no Bom Retiro e judeu imigrante que na juventude fora preso por suas atividades políticas, inicia então uma busca incansável pela filha e depara com a muralha de silêncio em torno do desaparecimento dos presos políticos.

K. narra a história dessa busca. Lançado originalmente em 2011 pela editora Expressão Popular, em 2013 ganhou nova edição pela Cosac Naify, e finalmente, em 2016, chegou à Companhia das Letras. Ao longo desses anos, K. se firmou como um clássico contemporâneo da literatura brasileira.”

A importância história desta obra literária está muito além de uma investigação sobre o “caso Ana Rosa” e das peripécias do pai dela –  Meier Kucinski – em busca de seu paradeiro. A empatia do leitor é a todo momento instigada pelo texto em que narram-se as tentativas de K. em desvelar a verdade sobre Ana Rosa, que quase sempre bate com a cabeça em uma espessa muralha de silêncio e desinformação, e através deste processo todo um continente de memória coletiva soterrada começa a vir a toda. Não só Ana Rosa, mas centenas de vítimas do regime ressurgem das ruínas e pedem-nos que lhe concedamos a acolhida de nossa atenção, nossa compaixão, nossa indignação.

A sensação de desnorteio em que nos lança o romance é kafkiana e a inicial K., além da óbvia referência a Kucinski, também evoca a influência de Kafka guiando a pena de Bernardo. Vítima tanto do antisemitismo reinante na Praga de seu época quanto do totalitarismo familiar encabeçado por seu pai, Franz Kafka é talvez o escritor que mais marque com sua influência a escritura de Kucinski em K. Descendentes de poloneses, muitos deles mortos no Holocausto, os Kucinski estão em posição que os capacita a realizar paralelos entre os procedimentos da ditadura militar no Brasil e a do III Reich alemão em seus genocídios na Polônia. É o que dá o tom em vários trechos do livro – como nas reflexões finais do capítulo “Sorvedouro de Pessoas”:

“Até os nazistas que reduziam suas vítimas a cinzas registravam os mortos. Cada um tinha um número, tatuado no braço. A cada morte, davam baixa num livro. É verdade que nos primeiros dias da invasão houve chacinas e depois também. Enfileiravam todos os judeus de uma aldeia ao lado de uma vala, fuzilavam, jogavam cal em cima, depois terra e pronto. Mas os goim de cada lugar sabiam que os seus judeus estavam enterrados naquele buraco, sabiam quantos eram e quem era cada um. Não havia a agonia da incerteza; eram execuções em massa, não era um sumidouro de pessoas.” (p. 25 – P.S.: contestado por este trecho por alguém que trabalha no Museu do Holocausto, Kucinski sentiu-se na necessidade de escrever Os Visitantes, sequência de K., também publicado pela Cia das Letras).

O sumidouro de pessoas, sintoma de uma espécie de fascismo tupiniquim, era um dos modos forjados pela ditadura para lidar com as pessoas que aderiram à luta armada que a contestava. A repressão contra os guerrilheiros e militantes da esquerda teve por parte da repressão militar alguns episódios de genocídio (como no Araguaia), de pseudo-suicídios (como o de Vladimir Herzog), de assassinatos explícitos (como o de Carlos Marighella). Ana Rosa e seu marido Wilson Silva encarnam duas figuras que servem de ícone para centenas de outros brasileiros cujas vidas sumiram, tragadas pela máquina assassina instaurada a partir do Dia da Mentira de 1964.

Negando aos familiares os restos mortais do adversário político assassinado, a ditadura negava não só possibilidade de enterrar um ente amado com dignidade, lápides e epitáfios celebrando o falecido. A ditadura fazia algo pior: impunha a tortura psicológica a todos aqueles que conviveram com os assassinados. Além disso, o desaparecimento manifesta a prudência de facínoras que desejam permanecer impunes: sem o cadáver como prova inconteste do crime, dificilmente pode-se condenar os perpetradores. Ao impedir a despedida e o luto dos familiares pela vítima, como requinte de crueldade imposto pelos ditadores e seus funcionários, o regime militar também escondia suas atrocidades – não só aquela dos manda-chuvas, dos Fleurys, mas também a dos reles soldados e PMs obedientes, funcionários na maquinaria desumanizadora e que banaliza o mal.

Em seu trabalho Relampejos do Passado – Memória e Luto dos Familiares de Desaparecidos Políticos da Ditadura Civil-Militar Brasileira (Ed. Unifesp, 2017), Amanda Brandão Ribeiro relembra o Caso Kucinski em seu pungente capítulo “O Caminho dos Ossos”, destacando que

“o jornalista e escritor Bernardo Kucinski expressou insatisfação quanto à reparação conduzida pela USP em relação à irmã, Ana Rosa, professora de Química da universidade. Militantes da ALN, Ana Rosa e o marido Wilson Silva desapareceram em abril de 1974 no centro da cidade de São Paulo e nunca mais foram vistos. Segundo depoimento do ex-delegado Cláudio Guerra, o casal foi levado para a Casa da Morte, onde sofreu diversos tipos de sevícias, inclusive sexuais, sendo posteriormente incinerados nos fornos da usina Cambahyba. Fazia anos que a família da Ana Rosa solicitava que a USP retificasse sua demissão por “abandono” de emprego, decidida pela Congregação do Instituto de Química um ano após o desaparecimento da professora. Somente em 1995, com a lei dos mortos e desaparecidos, o reitor anulou o documento. Entretanto, em audiência pública organizada pela Comissão da Verdade – SP com intuito de debater as condições da demissão de Ana Rosa e de pressionar o Instituto a pedir desculpas oficialmente pelo ato, Bernardo expôs  suas críticas quanto à execução da reparação:

— O que me aborreceu muito aqui na USP foi que quando eu pedi a anulação da demissão da minhã irmã, a assessoria jurídica da Reitoria teve a ousadia de produzir um parecer, em linguagem jurídica, de quase 100 páginas, em que afinal concedia a anulação da demissão, mas justificava a posição anterior. Ou seja, não seja, não há autocrítica, não há reconhecimento da conivência. Não se avança em cima dos erros cometidos! Esse é o grande problema: a universidade não reconhece o grau de colaboração que seus agentes e muitos professores tiveram com o regime militar.

Na data em que se completaram 40 anos do desaparecimento de Ana Rosa, o Instituto de Química da USP pediu desculpas publicamente pela demissão da professora e inaugurou uma escultura em sua homenagem [veja reportagem do Estadão]. Contudo, o reconhecimento por parte da universidade de sua colaboração com os órgãos de repressão da ditadura não foi feito.” (RIBEIRO, Amanda Brandão: Sp, Unifesp, 2017, p. 132-133)

No país da impunidade para as elites rapinadoras, convivendo com o Estado Penal mais truculento para as chamadas “ralés”, a imensa maioria dos torturadores a serviço do regime militar jamais serão punidos: “todos eles morrerão de morte natural, rodeados de filhos, netos e amigos, homenageados seus nomes em placas de rua.” (KUCINSKI, K., p. 29 – ver também o capítulo “As ruas e os nomes”, p. 149 a 153) Sobre este tema, Vladimir Safatle escreveu contundes palavras em seu livro mais recente, Só Mais Um Esforço: 

“Nenhum outro país protegeu tanto seus torturadores, permitiu tanto que as Forças Armadas conservassem seu discurso de salvação através do porrete, integrou tanto o núcleo civil da ditadura aos novos tempos de redemocratização quanto o Brasil. Há de se lembrar que o Brasil é o único país da América Latina onde os casos de tortura aumentaram em relação à ditadura militar. Por isso, nenhum outro país latino-americano teve um colapso tão brutal de sua ‘democracia’ como o nosso, com uma polícia militar que age como manada solta de porcos contra a própria população que paga seus salários. Nenhum outro país latino-americano precisa conviver com um setor proto-fascista da classe média a clamar nas ruas por ‘intervenção militar’, a ponto de invadir o plenário do Congresso Nacional com suas bandeiras. Tudo isso demonstra algo claro: a ditadura brasileira venceu. Como um corpo latente sob um corpo manifesto, ela se conservou e a qualquer momento pode novamente emergir.” (SAFATLE, 2017. p. 65)

Por isso, como Safatle e Edson Teles vêm defendendo, a tarefa da memória é urgente para a nossa renovação política, é algo que devemos encarar sem tardar, sob o risco de na repetição de tragédias soçobrar e voltar a soçobrar. O desinteresse pela nossa história, inclusive em seus aspectos mais grotescos e horrendos, só pode gerar ao esvaziamento de nossa experiência cidadã. Sem a memória do passado e as lições que isso pode nos ensinar, somos engolfados na monstruosidade de um presente desenraizado, esvaziado de sentido, não alimentado pela sabedoria que a experiência e a sofrência de gerações pregressas nos comunica. Amnésicos de nossas tragédias coletivas, estaríamos por isso mesmo condenados a repeti-las.

É o que indicam os graves sintomas recentes: a fratura exposta no esqueleto da democracia que foi o golpe de 2016, que têm como uma de suas cenas emblemáticas o deputado Bolsonaz, por ocasião da votação do impeachment de Dilma, em Abril de 2016, fazendo o elogio do coronel Ultra, chefe do DOI-Codi entre 1970 e 1974  – o que lhe rendeu poucos dissabores além de uma cusparada na cara que lhe concedeu, em momento à la Angeli’s Bob Cuspe, o deputado Jean Wyllys (PSOL). Que o mesmo Bolsonazi esteja, ao raiar de 2018, em segunda posição nas intenções de voto para a presidência da República, é mais um triste lembrete do Alzheimer nacional de que fala Kucinski e que é nossa tarefa urgente medicar e operar.

O imediatismo reinante na sociedade de consumo capitalista talvez conspire, com poderio avassalador, contra a lentidão do trabalho de recordação. Isto não o faz menos necessário e salutar. Kucinski, recriando na ficção a tragédia de sua irmã Ana Rosa e da busca aflita de seu pai, Meir Kucinski (1904-1976), pelo paradeiro da assassinada, legou-nos o que Eric Nepomuceno descreveu como “uma narrativa de vertigem, escrita de forma pungente e avassaladora. Mais que um grito de dor e revolta, mais que um uivo inconformado, é um lento, sossegado, estonteante lamento.”

Nepomuceno & Galeano, guerrilheiros da memória

Na Argentina, a ditadura tinha por costume sumir com os corpos “atirando-os de um avião ao mar bem longe da costa” (p. 58), sepultando anonimamente e sem pompas fúnebres os inimigos do regime. No Chile, após o golpe de 11 de Setembro de 1973 que instaurou o regime fascista-liberal Pinochetista, além das chacinas sumárias do Estádio Nacional, começaram a ser vistos em Santiago os cadáveres boiando nas águas, tornadas assim mais rubras que de costume, do rio Mapocho. Sobre a situação chilena durante a conturbada derrubada de Allende e instauração da ditadura, Alfredo Sirkis deixou-nos um belo livro, Roleta Chilena, que soma-se ao seu já clássico relato em primeira mão de algumas peripécias da guerrilha brasileira em Os Carbonários.

Sobre o proceder carniceiro dos algozes brasileiros, Kucinski nos fornece detalhes assustadores, como naquele capítulo brilhante, “A Terapia” (p. 113 a 124), de teor altamente hardcore, onde dá voz à faxineira Jesuína, a serviço de Fleury. Ela relembra seu serviço em um casarão em Petrópolis, rodeado por muros altos, em bairro de gente grã-fina. Jesuína relembra:

“Quando os carros chegavam, o portão abria, automático, os carros entravam com o preso e logo levavam ele para baixo, onde estavam as celas… Lá no andar de baixo, além das celas, também tinha uma parte fechada, onde interrogavam os presos, era coisa ruim os gritos, até hoje escuto os gritos, tem muito grito nos meus pesadelos. (…) Eu servia os presos, limpava as celas, tentava me fazer de boazinha. A cara deles era de apavorar, os olhos esbugalhados; tremiam, alguns ficavam falando sozinhos, outros pareciam que já estavam mortos, ficavam assim meio desmaiados…

Lá em baixo tinha uma garagem virara para os fundos, parecendo um depósito de ferramentas; levavam os presos para lá e umas horas depois saíam com uns sacos de lona bem amarrados, colocavam os sacos numa caminhonete estacionada de frente pro portão da rua, pronta para sair, e iam embora. Acho que levavam esses sacos para muito longe, porque essa caminhonete demorava sempre um dia inteiro para voltar. Aí eles lavavam tudo lá embaixo com uma mangueira, esfregavam, esparramavam cândida. Atiravam umas roupas e outras coisas no tambor e punham fogo.

Os presos eram levados para lá, sempre um só de cada vez, e nunca mais eu via eles. Lá em cima eu via pela janela eles serem levados para dentro da tal garagem, nunca vi nenhum deles sair. Nunca vi nenhum preso sair. Nunca… Uma vez eu fiquei sozinha quase a manhã inteira, os PMs mineiros saíram bem cedo de caminhonete dizendo que tinham acabado os sacos de lona, o lugar onde compravam era longe, iam demorar. O Fleury tinha voltado para São Paulo de madrugada. Eu sozinha tomando conta. Então desci até lá embaixo, fui ver. A garagem não tinha janela, e a porta estava trancada com chave e cadeado. Uma porta de madeira. Mas eu olhei por um buraco que eles tinham feito para passar a mangueira de água. Vi uns ganchos de pendurar carne igual nos açougues, vi uma mesa grande e facas igual de açougueiro, serrotes, martelo. É com isso que tenho pesadelos, vejo esse buraco, pedaços de gente. Braços, pernas cortadas. Sangue, muito sangue.” (KUCINSKI, p. 120-123)

Este capítulo notável do livro de Kucinski focaliza uma sessão de psicoterapia em que Jesuína, elaborando seus traumas, trazendo de volta à luz suas lembranças assombradas, traz à tona também fragmentos da tragédia coletiva que interessa ao autor de K. desenterrar. O pai de Ana Rosa, assim, fica mesmo solitário no palco do romance, que divide com outros narradores, em um livro polifônico, que evoca múltiplas perspectivas em seu modo de construção fragmentário e labiríntico.

Sobre o processo de escrita dos traumas – não apenas enquanto catarse, mas também como maneira de expor feridas que dizem respeito não só ao indivíduo ferido, mas também às tragédias vivenciadas pela comunidade que ele integra – a psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da Comissão Nacional da Verdade, em seu prefácio ao livro de contos de Kucinski Você Vai Voltar Para Mim, faz pertinentes reflexões sobre este tema:

“Passado um tempo subjetivo em que o silêncio e o estupor são as únicas reações possíveis ante o evento traumático, as vítimas e as testemunhas se põe a falar. Ou a escrever. Não é um capricho: é uma necessidade. É preciso compartilhar o acontecido com o outro, os outros. O pesadelo recorrente de Primo Levi, de que ao voltar para casa ninguém acreditaria no seu testemunho, não pode se realizar. As vítimas de todas as experiências de terror sentem a necessidade de incluir cada terrível fragmento do Real no campo coletivo da linguagem, como forma de diluir a dor individual na cadeia de sentido que recobre a vida social.” (KEHL, p. 16)

A situação aflitiva descrita em K. também dá as caras no conto “Joana”, uma das 28 narrativas curtas que integra Você Vai Voltar Para Mim. A protagonista Joana é uma senhora que costuma vagar pelas cidade conversando com moradores de rua e que, como o narrador revela, carrega o fardo de uma perda similar à de K:

“Seu marido foi preso em 1969. Era metalúrgico e se chamava Raimundo. Católico praticante como ela. Vieram do Nordeste em busca de uma vida um pouco melhor em São Paulo. Já tinham então dois filhos. Aqui Raimundo se ligou a um grupo da Ação Popular que organizava operários nas fábricas.

Um dia, bem cedo, a polícia foi à casa deles e levou Raimundo. Sem mandado de prisão, sem nada. Soube-se depois que ele foi espancado de modo tão brutal que morreu no mesmo dia. Seus gritos eram ouvidos em outras celas. Para ocultar o homicídio, no caso doloso e qualificado, pois acompanhado do crime acessório de abuso de autoridade, a polícia cometeu outro crime, o de ocultamento de cadáver. Sumiram com o corpo de Raimundo.

Tudo isso foi comprovado, depois que acabou a ditadura, por documentos e depoimentos em várias comissões. Só não se sabe, nunca se soube, para onde levaram o corpo e como se desfizeram dele. Se foi enterrado como indigente ou incinerado, ou disposto de outra forma… Embora o próprio cardeal tenha assegurado a Joana que o marido foi espancado até não restar nele sopro de vida, ela não aceitou que ele tivesse morrido. Cadê o corpo?, ela perguntou. E sempre pergunta. Diz que só vai se considerar viúva no dia em que trouxerem o atestado de óbito de Raimundo e mostrarem sua sepultura…” (KUCINSKI, 2014, Cosac Naif, p. 58-59)

O impacto emocional de K. provêm também da autenticidade com que Kucinski pinta o retrato das metamorfoses afetivas do pai, Meier, em sua epopéia em busca da verdade sobre Ana Rosa, desde os primeiros dias de seu sumiço até chegar à uma espécie de desalentada exaustão. Quando Ana Rosa desaparece, ele  “tateia como um cego o labirinto inesperado da desaparição”; “depois, quando se passaram muitos dias sem respostas, esse pai ergue a voz; angustiado, já não sussurra, aborda sem pudor os amigos, os amigos dos amigos e até desconhecidos; assim vai mapeando, ainda como um cego com sua bengala, a extensa e insuspeita muralha de silêncio que o impedirá de saber a verdade. Descobre a muralha sem descobrir a filha”; “quando as emanas viram meses, é tomado pelo cansaço e arrefece, mas não desiste. O pai que procura a filha desaparecida nunca desiste. Esperanças já não tem, mas não desiste. Agora quer saber como aconteceu. Onde? Quando exatamente? Precisa saber, para medir sua própria culpa.” (p. 83-85)

Um dos tormentos de K., depois do desaparecimento da filha, está em sentir-se culpado por estar demasiado submerso em seus estudos de íidiche e seus debates intelectuais, a ponto de ter prestado pouca atenção às atitudes da filha, sua escolha pela luta armada via ALN, seu relacionamento com Wilson (retratado de modo divertido no capítulo “Livros e Expropriação”, p. 49 a 52). K. sente o peso de uma culpa que não é estranha aos sobreviventes de pogroms, genocídios, holocaustos – a culpa por ter sobrevivido. Em um dos capítulos mais reflexivos e filosóficos da obra, Kucinski tecerá uma rica meditação que evoca as obras de Milan Kundera e Franz Kafka – dois mestres em retratar na literatura as densas vidas de tchecos em meio às tempestades históricas – além de um debate pertinente sobre o filme A Escolha de Sofia, de Alan J. Pakula (já dissecado em A Casa de Vidro neste artigo):

Meir Kucinski (1904-1976), o pai de Ana Rosa e Bernardo, inspiração para o personagem K. Foto via Ateliê.

“Embora cada história de vida seja única, todo sobrevivente sofre em algum grau o mal da melancolia. Por isso, não fala de suas perdas a filhos e netos; quer evitar que contraiam esse mal antes mesmo de começarem a construir suas vidas. Também aos amigos não gosta de mencionar suas perdas e, se são eles que as lembram, a reação é de desconforto. K. nunca revelou a seus filhos a perda de suas duas irmãs na Polônia, assim como sua mulher evitava falar aos filhos da perda da família inteira no Holocausto.

O sobrevivente só vive o presente por algum tempo; vencido o espanto de ter sobrevivido, superada a tarefa da retomada da vida normal, ressurgem com força inaudita os demônios do passado. Por que eu sobrevivi e eles não? É comum esse transtorno tardio do sobrevivente, décadas depois dos fatos.

No filme A Escolha de Sofia, uma polonesa é obrigada pelo ocupante nazista a escolher qual dos seus dois filhos ela prefere que sobreviva: o menino ou a menina? Se fosse judia não teria escolha, iriam os dois para o crematório; sendo polaca o guarda inventa um novo jogo, que a mãe faça a escolha, caso contrário as duas crianças serão mortas. A Escolha de Sofia tornou-se expressão de uma escolha impossível, na qual todas as opções são igualmente dolorosas.

Mas a pergunta a ser feita é: por que o soldado alemão decidiu submeter a mão ao tormento da escolha quando era mais simples matar logo as duas crianças e também a mãe, ou ele próprio decidir qual delas matar e qual poupar? Sadismo? Talvez. Mas um sadismo funcional, porque através desse mecanismo o criminoso transferiu à mãe a culpa pelo filho morto. Não foi ela quem escolheu? Esse sentimento de culpa vai se apossando da alma da mãe no decorrer dos anos até que já anciã, sobrevivente de guerra vivendo na América, Sofia se suicida, não suportando mais a carga de uma culpa que nunca foi dela.

A culpa. Sempre a culpa. A culpa de não ter percebido o medo em certo olhar. De ter agido de uma forma e não de outra. De não ter feito mais. A culpa de ter herdado sozinho os parcos bens do espólio dos pais, de ter ficado com os livros que eram do outro. De ter recebido a miserável indenização do governo, mesmo sem a ter pedido. No fundo a culpa de ter sobrevivido.

Milan Kundera diz que Kafka não se inspirou nos regimes totalitários, embora seja essa a interpretação usual, e sim na sua experiência familiar, no medo que tinha de ser julgado negativamente pelo seu pai. Em O Processo, Joseph K. examina seu passado até os ínfimos detalhes, em busca do erro escondido, da razão de estar sendo processado. No conto O Veredito, o pai acusa o filho e ordena-lhe que se afogue. O filho aceita a culpa fictícia e vai se atirar ao rio tão docilmente quanto mais tarde Joseph K. vai se deixar executar, acreditando que de fato errou, pois disso era acusado pelo sistema. Como Sofia, no fim se matou.

Também os sobreviventes daqui estão sempre a vasculhar o passado em busca daquele momento em que poderiam ter evitado a tragédia e por algum motivo falharam. Milan Kundera chamou de ‘totalitarismo familiar’ o conjunto de mecanismos de culpabilização desvendados por Kafka. Nós poderíamos chamar o nosso de ‘totalitarismo institucional’.

Porque é óbvio que o esclarecimento dos sequestros e execuções, de como e quando se deu cada crime, acabaria com a maior parte daquelas áreas sombrias que fazem crer que, se tivéssemos agido diferentemente do que agimos, a tragédia teria sido abortada.

Por isso, também as indenizações às famílias dos desaparecidos – embora mesquinhas – foram outorgadas rapidamente, sem que eles tivessem que demandar, na verdade antecipando-se a uma demanda, para enterrar logo cada caso. Enterrar os casos sem enterrar os mortos, sem abrir espaço para uma investigação. Manobra sutil que tenta fazer de cada família cúmplice involuntária de uma determinada forma de lidar com a história.

O ‘totalitarismo institucional’ exige que a culpa, alimentada pela dúvida e opacidade dos segredos, e reforçada pelo recebimento das indenizações, permaneça dentro de cada sobrevivente como drama pessoal e familiar e não como a tragédia coletiva que foi e continua sendo, meio século depois.” (BERNARDO KUCINSKI, p. 154-156)

A evocação da escolha impossível de Sofia (interpretada por Meryl Streep), no filme de Pakula, serve-nos também como alerta contra aqueles que, ainda hoje, tentam justificar as atrocidades da ditadura militar com a repetição do argumento vil: foram mortos pois eram guerrilheiros, ou seja, terroristas, ou seja, bandidos – e “bandido bom é bandido morto”.

Contra este acintoso argumento, que lança o estigma e a culpa sobre os assassinados, precisamos resgatar em minúcias as histórias de vida, e os exemplos de bravura e auto-sacrifício, de todos os que pereceram na luta contra o regime sanguinário e açougueiro instaurado pelo golpe de 1964. É preciso celebrar a memória de centenas de Anas Rosas e Herzogs. É preciso afrontar a muralha de silêncio que deseja-nos apartados da verdade sobre o que se passou com nosso povo. É preciso, agora e no futuro, afastar de nós este “cale-se” amargo, “de vinho tinto, de sangue”.

Kucinski legou-nos, através de sua terapia literária, de sua escrita impregnada de autenticidade, de sua busca pelo desvelamento do passado, um indispensável remédio contra o “mal de Alzheimer nacional”. Engulamos esta medicina em altas doses, antes que o tropel da ditadura volta a cavalgar sobre nós, fazendo de nós mera carne a ser estripada em seus açougues da desumanidade. Os esquecidiços, os amnésicos, os desenraizados, serão sempre os vetores da Banalidade do Mal desvendada por Arendt, os servis funcionários do “totalitarismo institucional” que ainda está longe de ter sido aposentado da História.

E.C.M., Goiânia, Dezembro de 2017

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O escritor no interior da ampulheta do tempo

ampulheta

por Eduardo Carli de Moraes @ A Casa de Vidro.com

Uma ampliação da consciência das interconexões que constituem o tecido da realidade parece-me um caminho recompensador para qualquer dentre nós que sente-se como um peregrino buscador de sabedoria. É claro que, como Zaratustra não tardou a descobrir (assim como seu criador, Nietzsche), também há muita solidão e incompreensão na estrada daquele que tenta ficar sábio. Ao seu redor ele tromba com muita frequência com a tolice, a estupidez, a trivialidade, para não falar na perfídia e na crueldade – sabedoria é não pagar na mesma moeda, e responder com razão à desrazão, com doçura à bruteza, com amizade à hostilidade, com fraternidade ao sectarismo, e por aí vai.

Às vezes é mais fácil encontrar sábios entre os mortos do que entre os vivos – muitos “seekers”, para lembrar a canção fodástica do The Who, acabam preferindo a leitura à conversação e preferem a biblioteca ao bar. Eu penso que nada impede aprender sabedoria tanto em bares quanto em bibliotecas – em papos e livros, em filmes e discos, em peças-de-teatro e em palhaçadas – quem é aprendiz aprende até com a sarjeta (todos estamos nela, dizia Oscar Wilde, mas alguns olham para as estrelas ao invés de manter o focinho no vômito…). Gosto da idéia de Simone Weil sobre a atenção, esta virtude subestimada e subpraticada, sem a qual não tem jeito de ficar sábio: prestar atenção, às sinfonias do Schubert e aos pássaros que cantam lá fora,  aos filmes do Bergman e aos cardumes que nadam nos oceanos, aos sonetos de Shakespeare e às palavras de amor que às vezes brotam de lábios humanos como suculentas e nutritivas frutas.

Sabedoria é também saber ouvir os outros, vivos ou mortos, atentando às palavras que escrevem e às palavras que falam, mas também à língua muda, e tão expressiva, da expressão facial e dos trejeitos corporais: às vezes, em silêncio, basta atentar nos olhos de alguém e sabe-se mais do que se poderia após a troca de muitas palavras – o afeto “tá na cara”. Tenho concebido a sabedoria como esforço de ampliação de limites, de busca por melhoria na aposta de que somos perpetuamente perfectíveis e nunca perfeitos. Rompendo a gaiola da verbalidade, percebemos que há muito de expressável que está para além da escrita – que também comunicam, e como, abraços, sorrisos, melodias, batuques, cores, mímicas.

Não há escassez de linguagens a aprender e treinar nesta vida que pode ser vista como campo-de-experimentação onde nós, que vivemos em teia, ontologicamente conectados, superemos a falácia ilusória da separação, percebendo-nos cada um e todos como “parte de nós”, para citar um dos achados poéticos do álbum do Diego de Moraes e o Sindicato. Viver até corre o risco de ter sentido se a gente corre atrás de adquirir os meios de expressão que construam pontes e permitam somatórias de forças: aí o túmulo engole a nossa carne, mas não vivemos em vão pois em algo melhoramos o mundo comum, a Hannah Arendtiana “esfera pública”.

Ultimamente, tenho me sentido movido e influenciado principalmente por autores-ativistas, que li com voracidade e imensos proveitos: penso principalmente em Naomi Klein, Raj Patel e Arundhati Roy. Os três são figuras públicas de impacto, ultra-requisitados para palestras e depoimentos a documentários, muito alertas aos acontecimentos contemporâneos, cultos e conhecedores da História, desejosos de fazer uma diferença para melhor e contribuir para um outro mundo possível.

Pra citar o célebre discurso de Arundhati Roy em Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial 2003: “another world is not only possible, she’s on her way. On a quiet day, I can hear her breathing.” Lendo autores assim, já tão queridos pra mim, como Klein, Patel e Roy, sinto-me preenchido com um grau mínimo de esperança que impede meu naufrágio no iceberg do desespero supremo – como se neles a alternativa sã aos rumos ecocidas e genocidas do capitalismo global já respirasse e nos ensinasse um rumo – mais sábio, decerto, mas difícil. Pois ninguém disse que é fácil.

Ler um romance como The God Of Small Things (O Deus Das Pequenas Coisas) foi para mim um deleite indizível, um banquete verbal delicioso, mas também é sofrido, para alguém com sonhos de um dia vir a escrever algo que preste, testemunhar a senhorita Roy em toda sua genialidade e graça, esmagando auto-estimas de escritores quem piores do que ela e que jamais conseguiriam tecer uma tapeçaria narrativa tão brilhante. Foi, no entanto, inspirador ao extremo: preencheu-me com os mistérios da Índia, com os fascínios pela linguagem, com as indignações fecundas, e posso dizer que sem dúvida nunca mais serei a mesma pessoa que fui antes de devorar, na sequência, todos os livros dela – e aqueles de “não-ficção” são líveis com um grau de prazer equivalente ao que sentimos com os mais gostosos dos poetas (Manoelzin de Barros, Alberto Caeiro, Mário Quintana…).

Peguei-me perguntando-me o que é que torna tão raro um talento literário como este que se manifesta no Deus Das Pequenas Coisas. No meu caso, sinto que ainda há muito chão pela frente até que eu atinja tais poderes de expressão. Percebo que existe dentro de mim uma aporrinhante censura interna, ativa mesmo quando escrevo para mim mesmo, em um caderninho que pretendo conservar secreto  e engavetado. Há confissões que não faríamos em um texto a ser tornado público; mas há também confissões que é difícil de articular até mesmo na solidão de um texto privado. Senti muitas vezes que eu me utilizava da escrita como uma escola de autenticidade, como experimento de sinceridade, como treino na arte de ser verídico. Isso só exacerbou minha suspeita de que somos em geral bem pouco inclinados a admitir toda a verdade sobre nós mesmos (supondo que a conheçamos, o que é supor demais); somos cheios de máscaras e poses; queremos aparecer bem na foto e preferimos a maquiagem ao nu-e-cru.

Call Me Burroughs

Um texto também funciona como uma espécie de selfie em que procuramos excluir da percepção do Outro – o leitor – aquilo que consideramos um chulé psíquico, um cabelo desgranhado na nossa constituição moral ou estética, um sentimento cancerígeno, um desejo feio feito pústula. O escritor “seleciona-se” e silencia muito de si – tudo aquilo que considera que iria chocar, desagradar ou gerar chacota nos leitores. Um pouco do charme punk das obras de Céline ou William S. Burroughs é que eles não estão a fim de mentirem que são melhor do que são, não tem pudores de vomitarem no papel suas nóias, seus ódios, seus vícios, seus pensamentos secretos mais inconfessáveis. Sem dúvida, por mais que me desagrade o anti-semitismo célineano ou uma certa glamourização da junkidade em Burroughs, lê-los representou para mim experiência libertária. Aprendi que havia uma escrita que queria revelar os lados sujos e sanguinolentos de nossa existência cheia de som, fúria e hostilidades – que recusavam-se ao kitsch, descrito por Milan Kundera como aquela tendência de varrer a sujeira para baixo do tapete. 

Também andei matutando que os textos podem ser diferenciados, distinguidos, a partir do seu endereçamento: para quem se escreve, e em que “tom-de-voz”? Há quem escreva como quem fala do alto de uma torre de marfim, pontificando da cátedra ou do púlpito; há quem escreva como quem acabou de encontrar um amigo na fila da padaria e quer só “jogar conversa fora”; há quem escreva para lidar com a ameaça da loucura, para pôr ordem no caos interior, realizar pela linguagem alguma catártica terapia; e a panóplia de múltiplas escritas poderia seguir sendo enumerada sem fim em vista. Um texto pode ser mercadoria ou pode recusar-se a ser monetarizado; pode ser um convite ou um tabefe; talvez convoque à ação (como um panfleto anarquista) ou seduza à preguiça (como um anúncio de poltrona); entre os efeitos que podem ser gerados por um texto também reina grande diversidade – inclusive há a chance, terrível, do texto sem efeito. Inútil. Aquele que a ninguém toca e a nada muda. Que é engolido pelo esquecimento, apagado pelas imensas borrachas do tempo. Que leitor algum julga digno de lembrança. E às vezes não é garantido que basta a gente se esforçar para conseguir criar algo digno de sobreviva na posteridade: tem muito texto que os vermes engolem inteiro.

De todo modo, acho que ainda vale ouvir a dica de Newton, que só foi quem foi pois subiu nos ombros de gigantes. Ninguém vê longe sem auxílio – de gênios e poetas, de músicas e filmes, de papos e porres, de telescópios e microscópios. Às vezes, bem raramente, um mortal consegue, depois de muito escalar os corpos dos gigantes para observar mais longe lá das alturas, atingir aquela sabedoria que eu evoquei no primeiro parágrafo deste texto aqui… que lanço agora como um pergaminho de bits, numa cybergarrafa, ao oceano da Internet. A que destinos o levarão as marés das vias informativas digitais? De todo modo, não sei existir senão no ímpeto de buscar sabedoria comunicável – e fico replenificado de vida e esperança quando encontro palavras preciosas como estas próximas, que só não grafitei nas paredes do meu quarto pois moro de aluguel e também porque já estão pixadas nas paredes do coração:

“If there is any hope for the world at all, it does not live in climate-change conference rooms or in cities with tall buildings. It lives low down on the ground, with its arms around the people who go to battle every day to protect their forests, their mountains and their rivers because they know that the forests, the mountains and the rivers protect them. The first step towards reimagining a world gone terribly wrong would be to stop the annihilation of those who have a different imagination—an imagination that is outside of capitalism as well as communism. An imagination which has an altogether different understanding of what constitutes happiness and fulfillment. To gain this philosophical space, it is necessary to concede some physical space for the survival of those who may look like the keepers of our past, but who may really be the guides to our future.” —Arundhati Roy

Sabedoria é isso.

RoyLeia também: In Praise of Arundhati Roy’s “The God Of Small Things”

:: O Filho Eterno ::

“O inesgotável poder da mentira se sustenta sobre o invencível desejo de aceitá-la como verdade.”

Um livro muito interessante pra meditar sobre “questões da escrita” é “O Filho Eterno”, de Cristovão Tezza, um dos romances brasileiros mais premiados desta década (levou o Jabuti de Melhor Romance em 2008, por exemplo). Eis um livro que transpira autenticidade: o autor não teme revelar sentimentos “sórdidos”, ainda que correndo o risco de ser chamado de “cruel e perturbador”, como quando narra seu intenso desejo de que o filho recém-nascido com síndrome de Down morresse na maternidade ou não atingisse a idade adulta.

Está aí uma confissão que soa até um tanto “brutal”; uma revelação que a maioria de nós seria incapaz de fazer, muito menos de escrever num livro que circulará em milhares de mãos. Quase todo mundo, quando deseja a morte ou o mal de alguém, esconde bem escondidinho este desejo, sem querer revelá-lo por suspeitar que o outro nos julgaria uns monstros, uns sanguinários. E há sempre algo de chocante, e até de comovedor, quando uma pessoa tem a coragem de fazer uma confidência que não é nada lisonjeira para si mesma, ou seja, quando “revela um podre” que qualquer um desejaria ocultar com forte escudagem.

Minha sensação, aliás, é a de que “O Filho Eterno” é um livro tão marcante, apesar da crueza com que é escrito, pois ficamos com a impressão de estarmos ouvindo um homem que se preocupa pouco com a beleza e muito mais com a verdade. Ele prefere a revelação crua e sem floreios de uma verdade feia à invenção de uma beleza ilusória. A literatura de Tezza, que neste caso se confunde com a auto-biografia e o livro-de-memórias, parece querer compartilhar uma experiência-de-vida verdadeira, com tudo o que ela inclui de obsceno, de trágico, de feio e de deprimente, sendo que a preocupação em “agradar” ou consolar o leitor praticamente inexiste.

Este é um livro tão forte pois ele não tem piedade de nós, não tem pudor de nos fazer sofrer e não teme lançar em nossa cara verdades que talvez nos soem um tanto intragáveis, mas que chegam ao nosso paladar com um gosto verídico inegável. “O Filho Eterno” não tem uma gota de melodrama ou de pieguice e se desenrola numa “atmosfera narrativa” que é o exato oposto do kitsch. É literatura radicalmente anti-kitsch, e que leva este procedimento mais longe, talvez, do que Milan Kundera jamais conseguiu fazer.”O kitsch exclui de seu campo visual tudo que a existência humana tem de essencialmente inaceitável”, escreveu o grande autor tcheco no clássico “A Insustentável Leveza do Ser”. Tezza, em levante contra esta exclusão, leva a extremos vertiginosos o processo de inclusão no campo de consciência do leitor de tudo aquilo que o kitsch rejeita.

Se, lendo romances idealistas e água-com-açúcar, nos dizemos à toda hora  que “isso é bom demais pra ser verdade!” (ecoando um sábio dito popular), lendo Tezza podemos nos pegar dizendo o oposto: “isso é horrível demais para ser mentira…”.

Entra em nossa consciência, ao lermos palavras tão saturadas de veracidade sem condescendência, a certeza de estarmos lidando com fatos crus, ainda que desagradáveis, que exigem muita coragem para serem revelados. Como esta: existem crianças que nascem deficientes e existem pais que desejam a morte dos próprios filhos ao serem apresentados à criança, talvez um pouco pelo choque de terem esperado um anjinho e terem recebido um monstrinho… O descompasso que há entre as expectativas do pai, antes do nascimento de seu primogênito, quando desejava ser um “excelente” paizão, e a realidade com a qual se choca, que o obriga a confrontar-se com o lado pior de si mesmo, dá o tom de uma obra marcada por uma certa vertigem, mas uma vertigem enfrentada com uma audácia e uma lucidez incríveis.

Caso o leitor se aproxime destas páginas com a expectativa de se edificar com belas lições sobre a beleza da paternidade e sobre o amor incondicional dos pais pelos filhos, certamente se desiludirá — ou mesmo ficará chocado. Tezza não faz o mínimo esforço de auto-celebração ou marketing em causa própria. Jamais tenta nos convencer de que é um excelente pai repleto de nobres sentimentos. Pelo contrário: em vários momentos, é a VERGONHA o que lhe domina o coração e é sobre ela que ele reflete de modo bem incisivo. “A vergonha é uma das mais poderosas máquinas de enquadramento social que existem”, escreve Tezza, e “regula do catador de lixo ao presidente da República” (94).

Não faltam descrições de ocasiões em que Tezza confessa que teve vergonha de contar pros amigos e conhecidos que possuía um filho “mongolóide”; e é curioso notar que seu romance só foi escrito e publicado depois do filho ter atingido 20 anos de idade. É como a irrupção nas páginas de uma longuíssima vergonha secreta, de uma história que foi proibida no universo interior por décadas, de uma experiência vivida que por muito tempo ele teve vergonha de compartilhar, que manteve recoberta pelo silêncio e pela repressão, e que finalmente ganha direito à expressão. Para sorte do escritor e de todos os seus leitores.

* * * * *

Óbvio que há uma certa audácia em “revelar os próprios podres”. O procedimento padrão, é evidente, é escondê-los. Cada um de nós procede de modo kitsch em relação a si mesmo, mantendo em armários escuros seus crimes de pensamento e seus vícios inconfessáveis, oferecendo ao outro, para usar um termo de Pessoa, só “um jardim” de si mesmo, todo florido e podado.

Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.

Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim com lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.

Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és –
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês…


FERNANDO PESSOA

Tezza, realizando na arte o que no mundo seria considerado como um “comportamento anti-social”, rasga o véu da polidez, puxa todos os tapetes que escondem suas próprias sujeiras e vêm para frente do palco para nos mostrar a nudez de sua verdade. Ler “O Filho Eterno” nos permite conhecê-lo muito bem pois nos dá a chance de vê-lo também em seus piores defeitos, que ele não só não procura esconder, como expõe de modo explícito.

No final, pelo menos no meu caso, não senti “admiração moral” pelas atitudes de Tezza como pai (o que o próprio autor talvez julgaria uma reação absurda) ou como esposo (o romance, aliás, peca gravemente por omitir quase completamente a figura da mãe, sendo que o relacionamento de Cristóvão e sua esposa fica completamente nas sombras…). Poderia ter sido tão frutífero que este livro fosse não somente o relato da experiência de um pai, mas também de um casal tendo que lidar com a difícil vivência de criar um filho deficiente e com as inevitáveis modificações que isso certamente causou no relacionamento deles.

A admiração que senti foi não “ética” ou “literária”, mas sim uma admiração pela amplidão da franqueza que Tezza teve a ousadia de adotar. Este é um livro de muita boa-fé. E boa-fé significa, muitas vezes, saber contar aos outros as verdades sobre nós mesmos que nos desagradam. Tezzar demonstra em vários momentos tendências auto-depreciativas; por vezes sente-se quase que suas palavras são cilícios com os quais ele se auto-flagela, purgando sua culpa por ter sentido coisas tão “feias”. Não há muito “narcisismo” para ser encontrado na personalidade de Tezza além do narcisismo ferido, em frangalhos. E fico com a impressão de que o livro demonstra como o “narcisismo” pode ser superado através da confissão — quando esta é de uma franqueza que vai até os limites do obsceno.

Não ficaria mal dizer, pois, que Tezza é um “terrorista lírico” — nome de um dos romances anteriores do autor curitibano. Mas ele não explode prédios com dinamite; explode pudores com palavras. Seu alvo é sempre a mentira, o disfarce, a omissão, a pose de que se é melhor do que se realmente é.

As “conclusões filosóficas” que ele tira de uma experiência tão dolorosa também não são nada consoladoras e certamente ferem as convicções dos panglossianos, otimistas, crentes na Bondade de Deus e na Beleza da Criação. “O Filho Eterno” é um livro visceralmente anti-religioso, o que se escancara nas seguintes palavras, claras como um punhal: “Não gosto de padres, pastores, profetas, rabinos, milagreiros; sofro de anticlericalismo atávico” (pg. 51); “sou alguém completamente desprovido de sentimento religioso” (pg. 16). Ter um filho com deficiência mental já é um forte argumento contra a idéia de uma “criação divina”, e este pai não é diferente. O fato do “determinismo cromossômico” é somente “mais um passo no processo de desdemonização do mundo” por revelar a “natureza arbitrária, absurda, lotérica, errática dos fatos” (49).

A lucidez impiedosa do olhar de Tezza faz com que ele veja como tapeação e auto-engano a tentativa de “procurar sempre uma justiça secreta em todas as coisas para fugir do peso terrível do acaso que nos define” (pg. 43). Ele tem que admitir pra si mesmo que seu filho não é  nem obra divina,  o que é pra lá de evidente, nem uma “punição” que lhe enviam os céus por algum suposto pecado cometido.  Olhando para o filho Felipe, em seu “fechamento misterioso em si mesmo”, separado do mundo por “aquela barreira intransponível diante da alma alheia” (pg. 117), só lhe resta admitir que esta criança “jamais terá cérebro suficiente para inventar um deus que a ampare” (pg. 57). Mas no pai o processo de aceitação deste “universo desencantado” e regido pelo acaso é difícil e dura, mas não desprovida de vitórias e superações que, no meio de tanta desolação, nos comovem mais que qualquer pieguice.