“O inesgotável poder da mentira se sustenta sobre o invencível desejo de aceitá-la como verdade.”
Um livro muito interessante pra meditar sobre “questões da escrita” é “O Filho Eterno”, de Cristovão Tezza, um dos romances brasileiros mais premiados desta década (levou o Jabuti de Melhor Romance em 2008, por exemplo). Eis um livro que transpira autenticidade: o autor não teme revelar sentimentos “sórdidos”, ainda que correndo o risco de ser chamado de “cruel e perturbador”, como quando narra seu intenso desejo de que o filho recém-nascido com síndrome de Down morresse na maternidade ou não atingisse a idade adulta.
Está aí uma confissão que soa até um tanto “brutal”; uma revelação que a maioria de nós seria incapaz de fazer, muito menos de escrever num livro que circulará em milhares de mãos. Quase todo mundo, quando deseja a morte ou o mal de alguém, esconde bem escondidinho este desejo, sem querer revelá-lo por suspeitar que o outro nos julgaria uns monstros, uns sanguinários. E há sempre algo de chocante, e até de comovedor, quando uma pessoa tem a coragem de fazer uma confidência que não é nada lisonjeira para si mesma, ou seja, quando “revela um podre” que qualquer um desejaria ocultar com forte escudagem.
Minha sensação, aliás, é a de que “O Filho Eterno” é um livro tão marcante, apesar da crueza com que é escrito, pois ficamos com a impressão de estarmos ouvindo um homem que se preocupa pouco com a beleza e muito mais com a verdade. Ele prefere a revelação crua e sem floreios de uma verdade feia à invenção de uma beleza ilusória. A literatura de Tezza, que neste caso se confunde com a auto-biografia e o livro-de-memórias, parece querer compartilhar uma experiência-de-vida verdadeira, com tudo o que ela inclui de obsceno, de trágico, de feio e de deprimente, sendo que a preocupação em “agradar” ou consolar o leitor praticamente inexiste.
Este é um livro tão forte pois ele não tem piedade de nós, não tem pudor de nos fazer sofrer e não teme lançar em nossa cara verdades que talvez nos soem um tanto intragáveis, mas que chegam ao nosso paladar com um gosto verídico inegável. “O Filho Eterno” não tem uma gota de melodrama ou de pieguice e se desenrola numa “atmosfera narrativa” que é o exato oposto do kitsch. É literatura radicalmente anti-kitsch, e que leva este procedimento mais longe, talvez, do que Milan Kundera jamais conseguiu fazer.”O kitsch exclui de seu campo visual tudo que a existência humana tem de essencialmente inaceitável”, escreveu o grande autor tcheco no clássico “A Insustentável Leveza do Ser”. Tezza, em levante contra esta exclusão, leva a extremos vertiginosos o processo de inclusão no campo de consciência do leitor de tudo aquilo que o kitsch rejeita.
Se, lendo romances idealistas e água-com-açúcar, nos dizemos à toda hora que “isso é bom demais pra ser verdade!” (ecoando um sábio dito popular), lendo Tezza podemos nos pegar dizendo o oposto: “isso é horrível demais para ser mentira…”.
Entra em nossa consciência, ao lermos palavras tão saturadas de veracidade sem condescendência, a certeza de estarmos lidando com fatos crus, ainda que desagradáveis, que exigem muita coragem para serem revelados. Como esta: existem crianças que nascem deficientes e existem pais que desejam a morte dos próprios filhos ao serem apresentados à criança, talvez um pouco pelo choque de terem esperado um anjinho e terem recebido um monstrinho… O descompasso que há entre as expectativas do pai, antes do nascimento de seu primogênito, quando desejava ser um “excelente” paizão, e a realidade com a qual se choca, que o obriga a confrontar-se com o lado pior de si mesmo, dá o tom de uma obra marcada por uma certa vertigem, mas uma vertigem enfrentada com uma audácia e uma lucidez incríveis.
Caso o leitor se aproxime destas páginas com a expectativa de se edificar com belas lições sobre a beleza da paternidade e sobre o amor incondicional dos pais pelos filhos, certamente se desiludirá — ou mesmo ficará chocado. Tezza não faz o mínimo esforço de auto-celebração ou marketing em causa própria. Jamais tenta nos convencer de que é um excelente pai repleto de nobres sentimentos. Pelo contrário: em vários momentos, é a VERGONHA o que lhe domina o coração e é sobre ela que ele reflete de modo bem incisivo. “A vergonha é uma das mais poderosas máquinas de enquadramento social que existem”, escreve Tezza, e “regula do catador de lixo ao presidente da República” (94).
Não faltam descrições de ocasiões em que Tezza confessa que teve vergonha de contar pros amigos e conhecidos que possuía um filho “mongolóide”; e é curioso notar que seu romance só foi escrito e publicado depois do filho ter atingido 20 anos de idade. É como a irrupção nas páginas de uma longuíssima vergonha secreta, de uma história que foi proibida no universo interior por décadas, de uma experiência vivida que por muito tempo ele teve vergonha de compartilhar, que manteve recoberta pelo silêncio e pela repressão, e que finalmente ganha direito à expressão. Para sorte do escritor e de todos os seus leitores.
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Óbvio que há uma certa audácia em “revelar os próprios podres”. O procedimento padrão, é evidente, é escondê-los. Cada um de nós procede de modo kitsch em relação a si mesmo, mantendo em armários escuros seus crimes de pensamento e seus vícios inconfessáveis, oferecendo ao outro, para usar um termo de Pessoa, só “um jardim” de si mesmo, todo florido e podado.
Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim com lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és –
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês…
FERNANDO PESSOA