FRATURAS NO ARCO-ÍRIS TERRESTRE – UMA REFLEXÃO SOBRE AS “ZONAS DE SACRIFÍCIO”

Broken Rainbow 2

FRATURAS NO ARCO-ÍRIS TERRESTRE

UMA REFLEXÃO SOBRE AS “ZONAS DE SACRIFÍCIO”

 

E.C.M. || A CASA DE VIDRO

Imagino que o homem branco, europeu e pretensamente “civilizado”, quando aportou neste continente que batizaria de América (em homenagem ao branquelo europeu Vespúcio), deve ter aparecido aos habitantes nativos destas terras como um medonho alienígena invasor. Nas páginas de Galeano, Todorov, Clastres ou Viveiros de Castro, dentre outros, podemos compreender a Conquista da América como uma hecatombe de gigantescas proporções. Também no território que viria a ser chamado de “Estados Unidos da América”, os branquelos europeus meteram-se a marchar para o Oeste na certeza de que tinham sido apontados por deus para a dominação daquelas terras e a apropriação de suas riquezas. O documentário Broken Rainbow – vencedor do Oscar da categoria em 1985 – narra-nos os encontros traumáticos entre estes branquelos (greedy bastards!), e os povos originais do continente, em especial os Navajo e os Hopi.

Sem dourar a pílula ou suavizar a história, o filme relata-nos um pouco das dores de parto de um Estado Nacional constituído pelos branquelos no território que haviam invadido e conquistado através de chacinas e deslocamentos forçados. Os Navajo e os Hopi, no século 19, chegaram a ser encerrados em campos de concentração, onde viviam detidos sem nunca terem cometido nenhum crime. O Terceiro Reich alemão, sugere Broken Rainbow em uma de suas cenas mais provocativas, inspirou-se nesta iniciativa yankee ao inventar os campos onde seriam encerrados e dizimados os judeus, vitimados pela máquina de assassínio em massa do regime hitlerista. É: os nazi-fascistas tiveram muito a aprender com as empreitadas anteriores do proto-fascismo anglo-saxão e ibérico, “mestres” das atitudes supremacistas em relação às populações nativas do continente invadido.

Durante a Segunda Guerra, os índios Navajo e Hopi foram empurrados para os campos de batalha ou para as minas de urânio. Ninguém lhes explicou as razões para o mega-conflito entre os imperialismos branquelos europeus, nem ninguém teve a dignidade de alertá-los sobre a radioatividade tóxica do urânio que eles eram forçados a colher (para quê? para que pudesse ser matéria-prima para bombas atômicas!). O mesmo regime que despejou as hecatombes nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki empregou os Navajos como mineradores da morte radioativa em fábricas de munições mortíferas.

A grande infelicidade dos Navajo e dos Hopi está em habitarem uma terra riquíssima em minérios e petróleo. O homem branco julga necessitar a todo custo tomar conta destes recursos naturais, para alimentar suas megalópoles industriais-comerciais. Mega-corporações desejam varrer as pessoas do mapa, como se não passassem de pulgas, para ter acesso ao carvão, ao ouro negro, ao urânio, a tantos outros minérios que o solo contêm. A explosão demográfica dos grandes centros-urbanos norte-americanos fez com que a demanda energética também subisse feito um foguete, de modo que Washington se sentisse no direito de invadir territórios Navajo e Hopi para, por exemplo, roubar carvão a ser queimado nos power plants produtores de eletricidade e poluição às mancheias.

Para extrair os minérios de que precisavam, os branquelos não tiveram pudores de dinamitar certos lugares que, para os Navajo e os Hopi, eram sagrados. “É como demolir a catedral de Saint Peter para roubar seu mármore”, compara o narrador de Broken Rainbow. De fato, o filme mostra bem que, na perspectiva dos Navajos e Hopis, aqueles “empreendedores” branquelos estavam cometendo horríveis sacrilégios. Os branquelos, é claro, consideram titica de galinha as superstições bárbaras de povos não-esclarecidos e selvagens. Procedem com sua exploração: retiram toneladas e toneladas de carvão, urânio, petróleo e gás natural dos territórios indígenas; instalam vastas linhas de transmissão de eletricidade neles; os ares e as águas, outrora puros, enchem-se de gases tóxicos e poluentes cancerígenos.

Em This Changes Everything, Naomi Klein mobiliza o conceito de zonas de sacrifício, territórios que são “eleitos” pelas elites para a exploração predatória destravada, e que se fodam os direitos humanos. Passa-se como um rolo compressor sobre sociedades milenares, que há dezenas de gerações viviam em harmonia com o meio ambiente. Populações inteiras são consideradas sacrificáveis no altar do deus Capital. Os Navajo e os Hopi foram vítimas desta política etnocida, genocida, ecocida, que com autoritarismo fascista quis varrê-los do mapa para então roubar suas terras e suas riquezas naturais.

Apesar de 30 anos terem se passado desde o lançamento de Broken Rainbow, o filme prossegue atualíssimo como emblema da sina que sofrem os povos indígenas globais, seja em Alberta no Canadá – onde a exploração dos tar sands e a construção de pipelines representa gigantesca devastação para muitas tribos das First Nations – seja na Amazônia latino-americana – onde mega-hidreléticas à la Belo Monte também explicitam a mentalidade supremacista deste neodesenvolvimentismo bárbaro que elege zonas de sacrifício em nome do sacrossanto progresso capitalista. Aquele mesmo que empurra a Humanidade para a borda do penhasco e produz o caos climático cada vez mais exacerbado.

O arco-íris prossegue fraturado e não há sinal de que será consertado tão cedo. No desconcerto do mundo, convêm ouvir com atenção as vozes e as vidas daqueles que “podem parecer guardiões do passado, mas são na real os guias para nosso futuro” (Arundhati Roy).

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BROKEN RAINBOW (1985)
Direção: Maria Florio and Victoria Mudd
Vencedor do Oscar de Melhor Documentário
Assista na íntegra:

“1985 documentary film about the government-enforced relocation of thousands of Navajo Native Americans from their ancestral homes in Arizona. The Navajo were relocated to aid mining speculation in a process that began in the 1970s and continues to this day. The film is narrated by Martin Sheen. The title song was written by Laura Nyro.”

O Petróleo do Pré-Sal e as Hidrelétricas Amazônicas: Dois Projetos de Reportagem Abortados

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Durante as últimas semanas, mergulhei de cabeça nas pesquisas, analógicas e digitais, on e off line, sobre dois temas essenciais para o Brasil de hoje e para o planeta de amanhã. A Agência Pública de Jornalismo Investigativo e o Greenpeace estavam oferecendo microbolsas de R$5.000 para realização de grandes reportagens sobre os meandros e veredas da produção de energia em terra brasilis. Abaixo, compartilho as duas pautas que apresentei a eles na esperança de ser agraciado com uma das bolsas. Não fui um dos 4 selecionados, e eis-me aqui restituído à melancolia do desemprego; mas ao invés de engavetar esse material, escondendo-o nos armários do fracasso junto com milhares de outros papéis cuja brancura eu ousei profanar, preferi postar as pautas neste blog transparente e despoluído ( e que não vale um puto na bolsa de valores… ). Fica aí como uma espécie de monumento-em-escombros, dedicado a algo que eu planejei realizar mas que não terá verbas para deixar o mundo platônico das ideias inúteis  tão cedo… A serventia disso, acredito, é pouca mas não nula: com estes planos de reportagem, procurei compartilhar um pouco das informações mais estarrecedoras que andei descobrindo, e cuja relevância prossigo acreditando imensa. Agradeço ao companheiro Rodrigo Gomes Lobo, poeta-jornalista-antropólogo-e-muito-mais, que estava topando embarcar comigo nessa jornada em busca das verdades infames sobre o pré-sal e sobre as barragens hidrelétricas amazônicas. A vontade de expandir nossa amizade para abarcar uma parceria de trabalho prossegue viva e, oxalá, apenas adiada.

Eis aí o que não vai ser:

Fossil Fuel

 

 CONCURSO DE MICROBOLSAS – GREENPEACE & PÚBLICA

MUITO ALÉM DO DINHEIRO: OS CUSTOS SOCIOAMBIENTAIS DO PRÉ-SAL

* Resumo da proposta

Propomos investigar várias vozes que argumentam pelo fim da era dos combustíveis fósseis. Ofereceremos um quadro geral das controvérsias a respeito dos impactos socioambientais do projeto energético do pré-sal em nossa era de aquecimento global.

* Pré-Apuração. Explique o que você já apurou sobre a pauta e por que ela é relevante. Deve conter pesquisa inicial, contexto e relevância (Máximo 4 mil caracteres)

Nas profundezas do oceano, com 800km2 de extensão e 200km2 de largura, jaz a “província do pré-sal”. As reservas valem trilhões de dólares no mercado internacional e a produção atual já ultrapassa os 500 mil barris por dia (http://bit.ly/1sEkeu7). O relatório “Point of No Return” do Greenpeace, classifica-o entre os 14 maiores projetos de energia “suja” hoje em curso no planeta. Se todos esses mega-empreendimentos extrativistas e poluidores seguirem em frente, avalia-se que a média das temperaturas globais vai subir entre 4º e 6º C neste século.

Em entrevista concedida a Eliane Brum, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro criticou o status quo político no Brasil por sua incapacidade de enxergar o pré-sal no contexto do planeta – entendido como “a casa das espécies” (http://bit.ly/1vpFf0H). Segundo Viveiros, o pré-sal não é meramente uma oportunidade comercial para que o Brasil faça fortuna e acarretará efeitos socioambientais que vão muito além do dinheiro. Longe de ser algo de interesse local, o pré-sal é um problema para o planeta. Em tom similar, o deputado federal Chico Alencar sustenta que “cada vez mais somos tripulantes de uma nave comum ameaçada que é a Mãe-Terra.” (http://bit.ly/1tGGnIu)

Como alertam o IPCC e as Cúpulas do Clima da ONU, há alarmantes índices de CO2 já na atmosfera e as emissões prosseguem muito acima do recomendável. Há evidências empíricas da crise ecológica global em profusão: queda brutal da biodiversidade, derretimento das calotas polares, ascensão dos eventos de disrupção climática (como aqueles documentados em “Disruption”: http://bit.ly/1xhiXRk).

Estamos presenciando também crescentes mobilizações de ativistas e ONGs que militam em prol de um “futuro verde”, o que atingiu seu ápice na People’s Climate March 2014 (Mídia Ninja: http://bit.ly/1pIO4xl). Uma das principais demandas deste recente ecoativismo é o fim da hegemonia das corporações de petróleo, carvão e gás natural. As ruas bradaram um “chega!”, por exemplo, ao cartel das Sete Irmãs (http://bit.ly/1unDilz), aos crimes da Shell na Nigéria, aos derramamentos tóxicos cancerígenos da Texaco no Equador e da British Petroleum no Golfo do México. Afinal de contas, como aponta reportagem do The Guardian (http://bit.ly/1gCaHA0), 90 corporações (a imensa maioria delas do setor energético) são responsáveis por mais de 2/3 de todas as emissões de gases de efeito estufa.

Julgamos relevante, através da realização deste projeto em parceria com a Pública e o Greenpeace, dar voz àqueles que, no Brasil, diante dos ecocídios, levantam-se em resistência organizada para constituir um movimento global em defesa da biosfera. Queremos materializar em uma grande reportagem (ricamente ilustrada) e em um documentário curta-metragem algumas das manifestações brasileiras desta efervescência global de ativismo, já analisada por Naomi Klein em seu livro This Changes Everything (http://bit.ly/VEOtIc).

Propomos investigar e comunicar ao leitor/espectador várias vozes que argumentam pelo fim da era dos combustíveis fósseis. Um painel de argumentos e opiniões colhidos entre ecosocialistas, antropólogos, climatologistas, midiativistas e militantes. Figuras como Alexandre Araújo Costa, que sustenta: “A exploração das últimas reservas fósseis (o que inclui o pré-sal brasileiro) é absolutamente incompatível com qualquer perspectiva mínima de manter o sistema climático sob limites precariamente seguros. (…) É preciso parar de crescer e desacelerar a locomotiva tresloucada do capital, arrancando a riqueza diretamente do punhado de bilionários que a controla.” (http://bit.ly/1qDQ0aK)

As perguntas norteadoras deste projeto podem ser: “Em que mundo irão viver as futuras gerações (inclusive as não-humanas) caso as reservas de petróleo hoje conhecidas, inclusive o pré-sal, sejam queimadas? Que tipo de amanhã estamos legando à Teia da Vida (para usar a célebre expressão de Chief Seattle: http://bit.ly/1v4hIEM)? Há mundo por vir?”

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Tapajos2

PAUTA 2:

OS HERÓIS ANÔNIMOS DA RESISTÊNCIA AMAZÔNICA CONTRA AS BARRAGENS

Resumo da proposta

Propomos dar voz aos povos indígenas e ribeirinhos afetados pelas usinas hidrelétricas na Amazônia, comunicando ao leitor as vivências subjetivas e posturas políticas dessa gente, com foco no ecoativismo popular e na solidariedade comunitária.

Pré-Apuração. Explique o que você já apurou sobre a pauta e por que ela é relevante * Deve conter pesquisa inicial, contexto e relevância (Máximo 4 mil caracteres)

Nos últimos anos, muita controvérsia envolveu os megaprojetos hidrelétricos brasileiros. Um relatório do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) aponta que “1 milhão de pessoas foram expulsas de suas terras devido a construção de barragens. Isto corresponde a 300 mil famílias. Dados do MAB apontam que a cada 100 famílias deslocadas, 70 não receberam nenhum tipo de indenização.” (http://bit.ly/1zRRdUa)

Belo Monte, a terceira maior barragem do mundo, atrás apenas de Itaipu e da chinesa Três Gargantas, é só a ponta-de-lança de um fenômeno mais amplo: a disseminação das hidrelétricas em rios como Xingu, Amazonas e Tapajós, em obras financiadas pelo PAC e celebradas pelo governo federal como templos do progresso. As 29 novas hidrelétricas na Amazônia, informa O Globo em 2012, “alagarão uma área de ao menos 9.375,55 km2, quase oito vezes o tamanho da cidade do Rio de Janeiro.” (http://glo.bo/1xxbif6)

Atualmente, cerca de 80% da eletricidade brasileira é gerada em hidrelétricas (como esclarecido no vídeo “A Luz Que Vem Das Águas”, da série Linhas: http://bit.ly/1BfG01i). É raro que a imprensa corporativa conte a história das milhares de vidas que são afetadas por estes mega-empreendimentos, responsáveis por imensos fluxos de migração forçada, problemáticos reassentamentos e colapso de ecossistemas.

Nesta pauta aqui apresentada à Pública e ao Greenpeace, propomos investigar a condição existencial dos brasileiros afetados por barragens, que foram empurrados para fora de seus lares, em com destaque para aqueles que tornam-se ecoativistas ou líderes comunitários. Nossa reportagem buscará revelar a densidade psicológica das subjetividades condenadas a uma sina de “desenraizamento”, para usar um conceito de Simone Weil. Nossa intenção é também dar voz à resistência popular daqueles que, por terem sofrido danos, militam para barrar as barragens.

Nos últimos anos, irromperam inúmeras manifestações, protestos, ocupações e greves relacionadas à luta contra as barragens. Um dos episódios mais célebres desta saga ocorreu em 1989, quando os Kayapó, liderados pelo cacique Raoni, conseguiram frear os projetos hidrelétricos do governo Sarney. Duas décadas e meia depois, o ímpeto “conquistador” da Ditadura Militar (1964-1985) em suas relações com a Amazônia não foi inteiramente superado com a re-democratização e alguns pesquisadores, como Idelber Avelar e Viveiros de Castro, acusam o projeto “belo montista” de ser um entulho legado pela ditadura.

No primeiro mandato de Dilma na presidência, houve a emergência de uma resistência multi-facetada a estes projetos faraônicos em eventos como o Xingu +23 e movimentos como Xingu Vivo Para Sempre e o supracitado MAB. Buscaremos entrevistar figuras significativas deste embate e que trazem escritas na carne as estórias de como lutam diariamente para defender rios, florestas e ecossistemas contra a devastação que costuma vir na esteira das hidrelétricas.

Julgamos relevante apresentar ao Brasil alguns de seus heróis anônimos do ecoativismo “grassroots” , ainda mais quando consideramos quanta coragem é necessária para este engajamento em um país que é campeão mundial em assassinatos de ativistas da ecologia, segundo o relatório da Global Witness (http://bit.ly/1u7rFOd). É preciso dar visibilidade e proteção às pessoas que denunciam o desmatamento da Amazônia e que militam contra os grandes projetos de barragens, para que seus direitos de expressão e seus modos de vida sejam respeitados, de modo a evitar novas tragédias como aquelas sofridas por Chico Mendes, Dorothy Stang, José Cláudio Ribeiro, entre outros.

Em suma, procuraremos dar voz aos brasileiros que resistem às barragens, revelando suas perspectivas sobre os rumos do país, de modo a questionar uma das ideologias hegemônicas no país: aquela que Arundathi Roy, em The Greater Common Good (http://bit.ly/113Sbhj), apelida ironicamente como “Local Pain for National Gain” (Dor Local Para Benefício Nacional).

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