O CARTEIRO E O POETA – Sobre os retratos de Pablo Neruda (1904 – 1973) no romance de Antonio Skármeta e no filme de Michael Radford

Pablo Neruda (1904 – 1973), poeta chileno, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1971

“Gira e gira a roda atroz das desditas”, lamenta-se Neruda no poema “Os Abandonados”, do livro Memorial de Isla Negra. Este poetaço, que tão bem cantou a roda viva da Vida, com toda a sua polifonia e colorido, com todo seu caos e maravilha,  com frequência é hoje em dia descoberto por novos leitores em virtude do filme realizado por Michael Radford em 1994, O Carteiro e o Poeta (Il Postino). Indicado a 5 Oscars, esta obra cinematográfica é de fato um excelente cartão-de-visita, um portal-de-entrada sedutor à obra do vate laureado com o Nobel em 1971.

O filme nos entrega um retrato carinhoso, cheio de empatia, de um Neruda encarnado com verve e graça pelo ator francês Philippe Noiret (1930 – 2006). Porém, há uma rasidão na película de Radford que só será remediada se mergulharmos nas profundezas do romance de Antonio Skármeta que o inspirou.

Uma comparação entre filme e livro, neste caso, é uma empreitada frutífera: as obras não se repetem, não caem em redundância, mas propõe caminhos diferentes a nós que embarcamos nelas. Apesar de “livremente baseado no livro de Skármeta”, o filme não tem pudores de propor um desfecho radicalmente diferente daquele escrito por Skármeta (atenção: spoilers!). No filme, o carteiro Mario morre no final, após ser agredido pela truculência policial em um comício socialista, e Neruda o sobrevive para relembrá-lo entre lágrimas e evocações de lembranças do convívio.

Já no romance, é o o carteiro quem testemunha, com profunda dor, a morte de Pablo Neruda, ocorrida naquele trágico Setembro de 1973 onde foi derrubado o regime da União Popular (socialista) que havia sido eleito em 1970. Mês cruel como uma ave de rapina, onde o Chile perdeu Allende, Neruda, a democracia – entre outros milhares de mortos massacrados pela Ditadura Pinochet.

A discrepância entre os desfechos de filme e de livro, neste caso, me parece grave. Algo semelhante ocorreu quando John Ford, mestre do western, adaptou para a telona As Vinhas da Ira, de John Steinbeck. O final do livro de Steinbeck, apesar de ser um dos mais emblemáticos e inesquecíveis desfechos de um livro na história da literatura norte-americana, foi excluído do filme de um modo que sempre me pareceu inexplicável – e pior: mutilador.

John Ford presta um desserviço à obra de Steinbeck ao tesourar da obra um dos ícones que faz de The Grapes of Wrath um magnum opus da literatura universal, tirando de cena os seios da Fraternidade Humana que alimentam a vulnerável e amável Presença do Outro Em Risco. John Ford nos rouba a consolação salutar que Steinbeck nos concedia, deixando aqueles okies, migrados à Califórnia mas afundados no lodaçal de suas frustrações e perrengues, envoltos apenas no pó. Faltou o pólen!

A comparação entre O Carteiro e o Poeta, de Radford, e El Cartero de Neruda, de Skármeta, revela também um caso de traição que o cinema realiza em relação à literatura que o inspirou. O chileno Skármeta localizou sua história integralmente no Chile e os fatos narrados se passam entre 1969 e 1973, justamente a época de ascensão, eleição e posterior derrubada do governo da União Popular.

Já o filme de Radford transplanta a história para uma ilha da Itália, separada da América Latina pela extensão tremenda do Oceano Atlântico, mas também afastada das realidades históricas concretas vividas por Neruda e sua trupe no livro. Neste processo de migrar a história do Chile para a Itália, o filme deixa-se perder, como água entre os dedos, a oportunidade de pôr em debate episódios históricos fundamentais do continente de onde escrevo e onde Skármeta situa seu magistral romance.

Casa de Neruda em Isla Negra – Saiba mais.

No romance, estamos em plena Isla Negra, lá onde Pablo Neruda tinha comprado uma casa em 1939. Já no filme, entra pelas fuças de Neruda uma maresia atlântica, mediterrânea, nada chilena… No romance, o faro fareja os ventos do Pacífico e os ouvidos escutam os estrondos dos balaços e bombas dos militares golpistas que sobem ao poder em 1973 e deixam como cadáveres pelo caminho, naquele ano hediondo, Allendes, Nerudas e Victor Jaras…

Comédia romância agradável, palatável, realizada com delicadezas que costumam merecer os aplausos da Academia que distribui os Oscars, O Carteiro e o Poeta exclui boa parte do contexto sócio-histórico chileno que está bastante presente no livro de Skármeta. Em especial, diminui a estatura do carteiro de Skármeta – que é um sujeito político engajado nas lutas políticas de seu tempo.

Em uma cena que não se verá no filme, o romance relata que, após o golpe de Estado de 1973, o carteiro Mário adentra a agência dos Correios onde trabalha e, diante dos retratos de Allende, Che Guevara e Karl Marx, precisa tomar decisões urgentes sobre o que fazer, estando rodeado pelas escopetas dos militares brutamontes que, com sangue nos olhos, estão loucos para meter bala em subversivos e descer o cacete em comunistas…

Temeroso e prudente, o carteiro tira das paredes os retratos de Che e de Marx, mas permite a permanência de Allende, recém-falecido. “El retrato de Salvador Allende podía permanecer porque mientras no se cambiaran las leyes de Chile seguia siendo el presidente constitucional aunque estuviera muerto, pero la confusa barba de Marx y los ojos ígneos del Che Guevara fueron descolgados y hundidos en la bolsa.” (capítulo 17, pg. 124)

O carteiro, após se livrar das imagens que indicavam os louvores à Che e Marx, agora considerados pelas autoridades golpistas como inimigos públicos de imensa periculosidade, põe seu gorro oficial de carteiro, cobrindo suas melenas bagunçadas à la Beatles, pois “frente al rigor del corte del soldado, le pareció definitivamente clandestina.”

Cito estes trechos de uma cena que está no romance, mas não no filme, para frisar o aspecto político quintessencial à obra e que Radford não soube levar ao cinema – e que ficou restrito ao livro de Skármeta. No filme, o carteiro Mário é descrito como uma figura bastante simplória, apolítica, que não se envolve em quaisquer decisões que transcendam o âmbito das relações pessoais afetivas.

Já o carteiro Mário de Skármeta tem o status de agente histórico, sendo descrito como “partidário de um socialismo utópico” (cap. 15, p. 107). Ele  sofre na pele as crises de abastecimento de alimentos geradas, ainda durante o governo Allende (1970-1973), devido às sabotagens e complôs golpistas que, atravancando a economia a golpes de Doutrina do Choque (catástrofe é oportunidade, fome artificialmente produzida gera um excelente novo ambiente de negócios!). Skármeta descreve os meios utilizados pelos golpistas para desestabilizar o governo democraticamente eleito da União Popular.

Buscaremos em vão no filme qualquer menção ao cenário chileno pré-golpe, exposto em minúcias por Skármeta nos meandros daquele restaurante e hospedaria onde trabalham Beatriz e sua mãe – respectivamente, a amada musa inspiradora e a sogra ranzinza de Mário. Ao transplantar a locação das ocorrência do Chile para a Itália, a produção dirigida por Radford torna impossível o retrato, feito magistralmente por Skármeta, de como foi afetado o negócio gerido por Beatriz e sua mãe. Skármeta, no capítulo 13, descreve a crise econômica, a falta de alimentos básicos, destacando que “el desabastecimiento y el mercado negro eran producidos por la reacción conspiradora que pretendía derrocar a Allende.” (p. 98)

O filme exclui completamente a cena-chave em que um político reacionário, populista, saído de terno-e-gravata das tropas da Direita anti-Allende, faz um discurso em que acusa o governo de incapaz:

“Acusó el gobierno de incapaz, de haber detenido la producción y de provocar el desabastecimiento más grande de la historia del mundo: los pobres soviéticos en la conflagración mundial no pasaban tanta hambre como el heroico pueblo chileno, los raquiticos niños de Etiopía eran donceles vigorosos en comparación con nuestros desnutridos hijos; solo había una posibilidad de salvar a Chile de las garras definitivas y sanguinarias del marxismo: protestar con tal estruendo golpeando las cacerolas que ‘el tirano’ – así designó al presidente Allende – ensordeciera, y paradojalmente, prestara oídos a las quejas de la población y renunciara. Entonces volvería Frei, o Alessandri, o el demócrata que ustedes quieran, y en nuestro país habrá libertad, democracia, carne, pollos y televisión en colores.” (p. 100)

Por essas e outras, o livro de Skármeta é muito mais recomendável para quem quer conhecer mais a fundo o contexto sócio-político que envolve a vida – logo, a criação da obra! – de Pablo Neruda. O que não significa que o filme seja desprezível, que deva ser tacado no lixo e recusado. Longe disso: é uma obra que tem seu mérito e seus múltiplos charmes. E que convida de fato muita gente a explorar a fundo a poesia de Neruda, o que é um convite bem-vindo, e que deve ser celebrado sempre que é aceito por um novo leitor, seduzido assim a se embrenhar na selva dos escritos Nerudianos…

No filme, destacam-se as visitas cotidianas do carteiro Mário ao poeta. O carteiro, driblando sua timidez de homem do povo que treme diante de um colosso das letras, tenta convencer o laureado bardo a auxiliá-lo na conquista da belíssima Beatriz. Este enredo singelo é o motor propulsor no qual Neruda e Mário forjam uma amizade que serve de emblema para o poder – que é pouco, mas não é nulo! – que pode ter a poesia em nossas vidas.

Em uma ilha repleta de analfabetos, o simplório carteiro Mário, como uma laboriosa abelha a sugar o néctar das flores que encontra pelo caminho, conseguirá extrair muito mel de seu convívio breve mas fecundo com Neruda. A ponto de triunfar em seu intento de conquistar Beatrice através do encanto invisível que de seus lábios líricos emana. O filme torna Neruda uma espécie de conselheiro sentimental, um fazedor-de-versos de valor prático-afetivo como propiciador de conquistas, facilitador de transas, mas deixa a outros a tarefa de averiguar quais foram de fatos as relações do poeta chileno com a Itália (tema desta reportagem da TV RAI italiana).

O carteiro Mário é um personagem que parece sintetizar uma visão ingênua, quase infantil, sobre a poesia. Pedalando montanha acima com o correio endereçado ao imenso poeta ali exilado, que aguarda notícias sobre o Prêmio Nobel sueco e sobre o contexto político no Chile, Mário irá aprender, através de breve e frutífero convívio, lições sobre a poesia que irão transformar sua vida para sempre – e que determinarão, sem que ele jamais o suspeite, também a sua morte precoce.

É possível que Mário nunca tenha escrito um poema na vida, talvez jamais tenha lido um livro de poemas. Antes mesmo de qualquer encantamento linguístico com o açúcar das palavras, com o mel nas entrelinhas, ele fica encantado com outra coisa, bem mais palpável que o verbo invisível que a boca dos falantes pronuncia: no filme, o carteiro Mário se encanta é com a glória e suas auréolas, que circundam Neruda, o recém-chegado.

Mário vai ao cinema e assiste a um cine-jornal que revela o quanto o forasteiro Neruda foi acolhido com entusiasmo e efusividade pelos italianos, em especial pelas donnas. A reportagem destaca que os poemas de amor que o poeta comunista escreve e publica às mancheias conquistaram para ele um imenso séquito de admiradoras entre as mulheres. E é aí que Mário interessa-se mais intensamente pelas uvas poéticas que ele nunca soube antes cultivar.

A simplicidade de Mário torna O Carteiro e o Poeta uma obra que emana autenticidade, que deseja comunicar algo sobre a experiência popular em seu trato com o fenômeno da poesia. A princípio, Mário só quer mesmo impressionar as garotas, e tendo isso em mira ele esforça-se para conseguir um autógrafo de Neruda. Caso conquistasse tão ansiada assinatura poderia se gabar, na hora da “cantada”, de ser amigo do grande poeta chileno, cantor do amor e do comunismo…

Mário, com a ingenuidade de seu auto-interesse, movido por seus afetos de homem tímido mas que tem asas fechadas sobre o paletó e que deseja ter mais abertas, para que pudesse alçar vôos para além do ninho confinante de sua timidez, aproxima-se de Neruda como se este fosse uma arca de tesouros e segredos. Tenta destrancar o cofre do poeta para que este lhe ensine o caminho para que a poesia sirva como instrumento eficaz na conquista do amor.

Mário estranha quando escuta o poeta falar palavras estranhas, de sentido desconhecido, como “metáfora”. Mário quer saber que diabos é isso e Neruda, paciente e pedagógico, ensina-lhe através do exemplo: quando dizemos que “o céu está chorando”, ao invés de simplesmente dizer que chove, estamos empregando uma metáfora. Mário adora a descoberta e sai ao mundo à caça destas borboletas esquivas e fugidias que são as metáforas. Mas quer metáforas não para sentir-se bem consigo mesmo enquanto criador de literaturas, mas sim pois metáfora é ótima isca para pescar mulher. Nestas graças o filme de Radford conquista o espectador afeiçoado a uma boa comédia romântica.

Sem intenção precisa, só em virtude do diálogo com Neruda diante das águas do mar, Mário consegue parir sua primeira metáfora: inspirado pelos versos declamados de improviso por Neruda diante do vaivém das ondas, que batem nas pedras do litoral com insistência rítmica e cadenciada, Mário faz nova descoberta. Descobre as relações umbilicais entre o encantamento propiciado pela poesia e a ação do ritmo sobre nossa consciência. Mário diz a Neruda que sentiu-se, ouvindo os versos, como se estivesse sendo balançado como um barco em um mar de palavras... Neruda congratula seu novo amigo pelo parto de sua primeira metáfora.

O carteiro Mário não tem nada de bacharelesco, de acadêmico, de parnasiano – sua visão da poesia é bastante limitada e ele parece enxergá-la, como boa parte do povão faz, como um meio sutil para o conquista dos afetos daqueles cuja afeição desejamos assegurar. Mário vai em busca de tornar-se capaz de falar poesia por interesses afetivos bem explícitos: seu encantamento por Beatriz, re-encarnação da boa e velha musa inspiradora, célebre na história da literatura por ter sido o nome da musa de Dante Alighieri. Vale lembra que a figura histórica que inspirou a personagem-musa de Dante foi Beatriz Portinari (1266 – 1280), representada abaixo em pintura de D. Gabriel Rossetti:

Dante Gabriel Rossetti: Beata Beatrix, ca 1864-70.

Em O Carteiro e o Poeta, estamos bem longe da grandiloquência teológica da Divina Comédia, pois o poetinha Mário – que não é o Quintana, mas decerto amaria os versos daquele que passarinhava na cara dos que estão atravancando o caminho! – quer pôr a poesia a serviço dos anseios de seu singelo coração. Ou melhor, a serviço da conquista da donzela Beatriz.

Mário rouba sem muitos pudores os versos que Neruda havia escrito para Matilde. Depois justifica-se dizendo que a poesia não é posse de quem a escreveu, mas deve ser livre para ser usada. Com ironia, Neruda aprova sentimentos tão “democráticos” e ralha com seu amigo, reclamando com humor que seus versos de amor sejam mobilizados, com seu arsenal de encantatórias metáforas, pelo carteiro Mário em campanha de conquista da mulher adorada.

As relações do carteiro Mário com o poeta Neruda acabam por gerar um curioso e cômico fenômeno de plágio. O carteiro age como pirata diante dos livros de Neruda: saqueia imagens e metáforas das odes para que possa conquistar Beatriz. Não está nem aí para os direitos autorais. Age de modo egoísta e interesseiro, como se a conquista de Beatriz pudesse ser o fim que justifica a utilização de todos os meios. Skármeta descreve lindamente a magistral cena em que Mário enfim junta a coragem para declarar seu amor a Beatriz, ao pôr-do-sol de uma praia em Isla Negra, como uma ocasião onde o carteiro Mário agia quase como um ventríloquo, uma marionete nas mãos de um ausente Neruda:

“Cuando el sol naranja haría las delicias de aprendices de bardos y enamorados, sin darse cuenta que la madre de la muchacha le observaba desde el balcón de su casa, siguió los pasos de Beatriz por la playa y a la altura de los roqueríos, con el corazón en la mandíbula, le habló. Al comienzo con vehemencia, pero luego, como si él fuera una marioneta y Neruda su ventrílocuo, logró una fluidez que permitió a las imágenes tramarse con tal encanto, que la charla, o mejor dicho el recital, duró hasta que la oscuridad fue perfecta.” (SKÁRMETA, p. 51)

Este uso abusivo que o carteiro Mário faz dos versos de Neruda é razão para tensões entre os amigos. Eles não chegam a trocar sopapos, mas tem sim seus desentendimentos, seus debates cheios de antagonismo. O personagem de Neruda  irrita-se que um poema que ele escreveu para sua esposa Matilde tenha ido parar nos seios de Beatriz ao terem sido presenteados por Mário como se fossem de próprio punho. Neruda, um pouco enfurecido, diz ao carteiro:

Neruda com Matilde Urrutia (1912 – 1985)

“- No, señor! Una cosa es que yo te haya regalado un par de mis libros, y otra bien distinta es que te haya autorizado a plagiarlos. Además, le regalaste el poema que yo escribí para Matilde.

– Na poesía no es de quien la escribe, sino de quien la usa!

– Me alegra mucho la frase tan democrática, pero no llevemos la democracia al extremo de someter a votación dentro de la familia quién es el padre.” (p. 72)

Neruda, o autor de magistrais poemas, não está isento de um certo sentimento de posse: sente-se dono de certos versos, por tê-los criado, concebido, escrito, publicado. Mário, em seus roubos de versos poéticos que tem autor, fazendo-se passar pelo poeta que não é, estaria  incorrendo em falsidade e hipocrisia, portando diante de Beatriz a máscara de bardo genial e poeta inspirado, quando de fato é um pirateador da literatura muito mais do que um escritor.

Seria o destino de Neruda, pai de tantos versos, ver seus rebentos sendo contrabandeados e declamados por incontáveis enamorados pelo mundo. Talvez seja o fado inelutável dos poetas-do-amor: terão sempre os baús-de-tesouros de seus livros saqueados e manejados nas guerrilhas, tantas vezes inglórias, que os humanos realizam para as conquistas do coração alheio.

Pintura de Leonid Afremov

A comparação entre livro e filme também revela que o erotismo caliente das páginas de Skármeta é excluído da película de Radford. O filme não explicita a fisicalidade dos amores de Mário e Beatriz, permanecendo uma obra bastante casta, bem longe do espírito da escrita de Skármeta que com frequência descreve cenas quentes de sexo, com a maestria que evoca outros mestres da pintura literária dos amplexos de Eros – como Henry Miller, D. H. Lawrence, Vargas Llosa. O capítulo 15, onde descrevem-se as festas e farras que celebram o Nobel concedido a Neruda, Skármeta conta que Mário uniu-se carnalmente a Beatriz na alta madrugada e “promulgó un orgasmo tan estruendoso, burbujeante, desaforado, bizarro, bárbaro y apocalíptico, que los gallos creyeron que había amanecido y empezaron a cacarear con las crestas inflamadas, que los perros confundieron el aullido con la sirena del nocturno al sur y le ladraron a la luna como siguiendo un incomprensible convenio…” (p. 155)

Esta culminação orgásmica é descrita por Skármeta após a construção de um crescendo: inicialmente admirador platônico de sua musa inspiradora, Mário consegue – declamando versos roubados de Neruda – que a relação com Beatriz se carnalize. As ereções que ele tinha à distância transformam-se quando sua amada está presente, desnuda, entregue:

“Mario supo en ese mismo instante, que la erección con tanta fidelidad sostenida durante meses era una pequeña colina en comparación con la cordillera que emergía desde su pubis, con el volcán de nada metafórica lava que comenzava a desenfrenar su sangre, a turbarle la mirada, y a transformar hasta su saliva en una especie de esperma. Beatriz le indicó que se arrodillara. Aunque el suelo era de tosca madera, le pareció una principesca alfombra, cuando la chica casi levitó hacia él y se puso a su lado. Un ademán de sus manos le ilustró que tenía que poner las suyas en canastilla. Si alguna vez obedecer le había resultado intragable, ahora sólo anhelaba la esclavitud.” (p. 77)

Esse conhecimento carnal está ausente do filme – que nos mostra o rebento de Mário e Beatriz, o chiquito Pablito, sem explicitar o gozoso processo produtivo deste menino batizado em homenagem ao poeta laureado. Em seu discurso na Suécia ao receber o Nobel, Neruda evoca Rimbaud e a noção de uma “ardente impaciência”. Neruda interpreta a expressão de Rimbaud como se expressasse “el entero porvenir”: “sólo con una ardiente paciencia conquistaremos la espléndida ciudad que dará luz, justicia y dignidad a todos los hombres. Así la poesía no habrá cantado en vano.” (p. 112)

Também foi com ardente paciência que Mário pôs a poesia a serviço da conquista de Beatriz – e são as fusões orgásmicas entre os corpos que podem conduzir o carteiro de Neruda a concluir: com o usufruto de tais frutos carnais, com a fruição de tais amplexos e transas, é que se pode bradar que a poesia não cantou em vão!

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O filme O Carteiro e o Poeta tem uma delicadeza e uma leveza que o afastam de qualquer vertente estética mais politizada ou panfletária, mas nele marcam presença alguns elementos muito interessantes para a nossa apreciação também do valor sócio-político do legado poético de Neruda. A exemplo de Brecht ou Maiakóvsvy, Neruda quis ser o poeta que dá voz aos oprimidos, que amplifica os sentimentos que a multidão gostaria de expressar, mas que com frequência não encontra os termos adequados.

Em uma cena notável do filme, em que enfim Radford se aproxima mais do espírito que anima o livro de Skármeta, Neruda recebe boas notícias do Chile: o Canto Geral foi publicado na clandestinidade e vem fazendo sucesso, apesar das proibições e anátemas que sobre ele pesam. Neruda explica a Mário:

– Quando eu era Senador da República, fui visitar os pampas, uma região onde chove a cada meio século, onde a vida é inimaginavelmente difícil. Eu queria conhecer as pessoas que votaram em mim. Um dia, em Lota, um homem saiu de dentro de uma mina carvão. Ele tinha uma máscara de pó de carvão e suor. O seu rosto contorcido pelo sofrimento, os olhos vermelhos por causa da poeira. Estendeu-me suas mãos cheias de calos e me disse: ‘Aonde você for, fale sobre este tormento. Fale do seu irmão que vive lá embaixo, no inferno.’ Achei que devia escrever algo sobre a luta dos homens, escrever poesias sobre os oprimidos e mal-tratados. Nasceu daí o Canto General… (O CARTEIRO E O POETA, aos 44 minutos de filme aproximadamente)

Certamente discursos deste teor impactaram o ingênuo Mário a ponto de conquistá-lo não só para a poesia, mas também para o comunismo. No filme, é com adesão ingênua, de coração aberto, que ele se faz aspirante a poeta e participante de comícios comunistas. São os ventos da poesia de Neruda que o empurram para aquele episódio trágico em que, movido pelo anseio de declamar um poema diante dos camaradas comunistas reunidos em praça pública, Mário perderá a vida e terá silenciado todos os poemas devido à truculência da repressão.

A morte de Mário, na ficção cinematográfica, evoca a morte de Neruda, na realidade e no livro de Skármeta. O poeta chileno não sobreviveu aos acontecimentos de 1973, quando o governo da União Popular, presidido por Salvador Allende desde 1970, foi brutalmente derrubado pelo golpe de Estado de 11 de Setembro, que instauraria a Ditadura Pinochet e daria início a tempos tenebrosos, onde as baionetas e os campos de concentração quiseram falar mais alto do que flores e poemas.

Ainda hoje são acirrados os debates sobre a responsabilidade do coup d’état de Setembro de 1973 na morte de Neruda, ocorrida poucos dias depois, mas restam poucas dúvidas de que este mês carniceiro fica na história da Humanidade como triste lembrete das catástrofes que o despotismo político pode acarretar. Setembro de 1973 será um mês que para sempre assombrará a América Latina. Ainda ouvimos os ecos das vozes silenciadas então, sepultadas precocemente pela águia impiedosa do império yankee e dos militares chilenos, vozes e vidas contáveis aos milhares, ainda que a maioria delas não seja tão célebre quanto as dos inesquecíveis Allende, Neruda e Jara.

Lendo o Canto Geral de Neruda, descubri alguns trechos profundamente comovedores sobre grandes os heróis de Nuestra América – dentre os quais hoje contamos Neruda, Allende, Jara… “Além de ser o título mais célebre de Neruda, o Canto Geral é uma obra-prima de poesia telúrica que exalta poderosamente toda a vida do Novo Mundo, que denuncia a impostura dos conquistadores e a tristeza dos povos explorados, expressando um grito de fraternidade através de imagens poderosas” (é  o que leio na introdução a Memorial de Isla Negra, ed. L&PM Pocket).

Os heróis de Nuetra América, no Canto Geral, são celebrados ali por um autor engajado e ciente de ser agente histórico, similar nisto ao herói cubano José Martí. Neruda é culto o bastante para destacar toda a diversidade da América pré-colombiana, suas populações ameríndias e suas múltiplas paisagens geográficas e ecológicas. Talvez seja preciso ler Canto Geral com quadros de Diego Rivera diante dos olhos para poder mergulhar nas fundas águas destes poemas tão impregnados de uma história cujo desenrolar o poeta vai buscar desde séculos antes da invasão européia.

Diego Rivera

No capítulo IV, Los Libertadores, está um de meus trechos prediletos da obra de Neruda. Após lê-lo, rabisquei estes pobres versos que seguem, compartilhados a seguir por influência também desta presença cinematográfica benigna e amiga que é Mário, il postino, que também ousou dizer poesia sob o entusiasmo e o encantamento da sereia nerudiana.

EL ÁRBOL DEL PUEBLO

O poeta é um pintor na tela de nossas mentes
Que não usa aquarelas, nem sons melodiosos ou estridentes,
Mas palavras. Palavras em estado de transe, de loucura, de festa…
Palavras que pintam passados, presentes, porvires.

Pinta-me Neruda uma esplendorosa Árbol del Pueblo:
Os povos de Nuestra América compõe esse arvoredo maravilhoso
Como jamais houve um parecido em todo o jardim terrestre.

As raízes da Árvore do Povo já comeram muito sangue,
Porém seus frutos ainda sabem propagar luz.

Há flores enterradas aos milhões no chão
Que engoliu e devorou todos os mártires,
Mas a luta de libertação, o júbilo da ação coletiva,
Segue rugindo contra a morte da luz,
Segue em revoltas múltiplas  contra
“a lei da desventura,
o trono de ouro ensanguentado,
a liberdade alcoviteira,
a pátria sem abrigo.”
(In: Memorial de Isla Negra, “A Injustiça”)

O correr do trem da História não deixa que se apaguem
As lâmpadas tenaze das resistências de Martís, de Sandinos,
De Guevaras, de Zapatas, de Evos Morales,
De Castros, de Marcos, de Tupacs!

Neruda pinta o quadro da Árvore dos Livres,
Crescida com o adubo salutar
Que foi sangue Heróico, pela Justiça
e pela Fraternidade… Derramado..

Para ter epopéia, Neruda precisou pôr em jogo
Um embate agoniante, um Clash épico
Entre conquistadores e libertadores,
Entre ditadores e guerreiros populares.

Acaba invocando forças telúricas e cósmicas
para as barricadas da revolução:
Neruda, na clandestinidade, faz de seu Canto Geral
Uma ode a todas as lutas libertárias.

Entoa cantos que quer que sejam sementes
Que provem-nos que o chão terrestre não acolhe
Apenas a semente de trigos e de milhos e de quinoas…
Aceita também a semente de Nerudas e Martís,
Mortos no martírio e que…
Germinam ainda… Germinarão além!

Podem cortar todas as flores,
mas não poderiam jamais deter a primavera!

O cadáver de Che na Bolívia em poucos dias foi
Devorado pelos vermes, consumido até a cinza.
Mas o mito em que Che se converteu ainda há
De nos dar muitas colheitas futuras
Em que a Árvore del Pueblo mostrará
Mais uma vez sua resiliência reXistente
Diante das elites cruéis e necrófilas,
diante dos plutocratas tubarões de Wall Street!

“Nadie renasce de su próprio brasero consumido…
Nadie arrebata el crescimiento de la primavera…”
NERUDA, Canto Geral, IV – Los Libertadores.
Pg. 126, Santiago, 2016, editora Pehuen


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Por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Janeiro de 2018