PEQUENAS MORTES, MUITAS VIDAS – A sabedoria budista da impermanência, por Roman Krznaric

“A Grande Onda” (de Hokusai, 1830)

O monge budista japonês Kamo no Chomei, nascido em 1153, começou sua carreira como poeta e músico da corte em Kyoto. Mas quanto mais velho ficava, mais queria trocar os assuntos mundanos pelo isolamento monástico. Finalmente, aos 60 anos, ele construiu para si mesmo uma pequenina cabana de madeira, de 3 metros quadrados, próximo ao monte Hino.

Como o naturalista Henry David Thoreau mais de 600 anos depois, Chomei encarou isso como o experimento de uma existência simples e autossuficiente, sobrevivendo de castanhas colhidas na encosta e confeccionando suas próprias roupas a partir de bambu.

Cercado pelo som de cucos e cigarras, escreveu em 1212 d.C. o livro Hôjôki (Relatos da minha cabana), um ensaio cujas linhas de abertura tornaram-se uma declaração clássica do conceito budista de impermanência ou mujo:

“A corrente do rio que flui não cessa, e no entanto a água não é a mesma que antes. A espuma que flutua em poços estagnados, ora desaparecendo, ora se formando, nunca é a mesma por muito tempo. Assim, também, se passa com as pessoas e moradas do mundo.” – Kamo No Chomei

A extraordinária obra de Chomei registra os desastres que testemunhou durante sua vida. Ele recorda o incêndio de 1177, que queimou Kyoto até reduzi-la a cinzas, um tufão que aplainou tudo em seu caminho, um violento terremoto que destruiu as casas de ricos e de pobres, e a terrível fome de 1181, que deixou dezenas de milhares de mortos e tantos cadáveres nas ruas que as carruagens não podiam passar. Reflete sobre o significado de toda essa mortandade e destruição do ponto de vista de seu retiro na montanha:

“Não está tampouco claro para mim, à medida que pessoas nascem e morrem, de onde elas vêm e para onde vão. Nem por que, sendo tão efêmeras neste mundo, elas se esforçam tanto para tornar suas casas agradáveis à vista. O senhor e a morada competem em sua transitoriedade. Ambos vão desaparecer desse mundo como a glória matinal que floresce no orvalho da manhã… Quando, depois que um barco passa, as ondas brancas imediatamente se desvanecem, vejo nisso minha própria experiência passageira.”

Estamos assim imersos num universo de impermanência. Não há como escapar da natureza fugaz da existência. Passamos a vida nos esforçando para criar permanência – as casas que construímos, as carreiras que seguimos -, mas essa busca, acredita Chomei, é fútil. Por que se apegar à riqueza material ou lutar por prestígio quando, no fim, tudo isso está destinado a desaparecer? Em vez disso, ele prefere passar os dias de vida que lhe restam orando para o Buda e tocando seu koto sozinho em sua cabana, tentando imitar o som do vento quando passa pelos pinheiros.

A ideia de impermanência ressoou através das culturas humanas, tanto no Oriente quanto no Ocidente, por mais de dois milênios. Como Chomei, o antigo filósofo grego Heráclito  voltou-se para a metáfora do rio, observando: “Tudo muda e nada permanece… Não podes entrar duas vezes no mesmo rio.”

Reconhecer a natureza efêmera da vida e que tudo está em fluxo proporciona uma importante maneira de antecipar a morte. Sugere não apenas que nossas vidas são passageiras, mas que elas são compostas de um número infinito de “pequenas mortes” ou momentos que se transformam em nada… Estamos morrendo constantemente desde o momento em que nascemos.

Para Chomei, ver a vida dessa maneira o leva a renunciar aos bens terrenos em conformidade com o princípio budista do desapego e a viver no presente absoluto tanto quanto possível, apreciando as sublimes e transitórias belezas da natureza. Isso lembra um encanador que conheço, o qual, quando vê flores à beira da estrada, para seu furgão e desce para cheirá-las. “Você precisa parar”, ele me diz, “porque elas simplesmente não estarão aqui amanhã.”

Mas uma filosofia de “pequenas mortes” nos leva em muitas outras direções. Sexo, drogas e rock’n’roll, por exemplo. Se tudo é impermanência, e passado e futuro são meros construtos de nossas mentes, então por que não seguir as pegadas do viciado em ópio Samuel Taylor Coleridge e dar a nós mesmos uma passagem só de ida para o majestoso domo do prazer de Kublai Khan, onde podemos beber o leite do paraíso?

Vejo outra abordagem à impermanência nas muitas vidas de David Bowie. Ao longo de toda a sua carreira ele foi conhecido pela capacidade de se reinventar, em especial por meio da criação de novos personagens públicos. Estes tiveram origens complexas, inclusive em seu estudo do teatro Kabuki e na influência de seu primeiro professor de dança, Lindsay Kemp.

David Bowie performa Ziggy Stardust com Trevor Bolder e Mick Ronson, na Granada TV, ‘Lift Off’ – 1972. Saiba mais em Revista Rolling Stone.

Após começar como roqueiro acústico hétero nos anos 1960, ele explodiu no palco em 1972 com seu alter ego Ziggy Stardust, uma estrela do rock bissexual alienígena. Reinventou-se de novo com personas como Aladin Sane e Thin White Duke, depois emergiu nos anos 1980 como ídolo pop oxigenado que fez álbuns como Let’s Dance. Ao mesmo tempo, Bowie se transformou em ator, assumindo papéis importantes em filmes como O Homem Que Caiu na Terra e produções teatrais como O Homem Elefante.

A natureza enigmática de suas metamorfoses foi comentada pelo próprio Bowie em 1976, numa declaração classicamente elíptica: “Bowie nunca foi destinado a existir. Ele é como uma caixa de Lego. Estou convencido de que não gostaria dele, porque é oco e indisciplinado demais. Não há um David Bowie definitivo.” Quer sejam feitas ou não a partir de uma xaixa de Lego, as muitas vidas públicas de Bowie podem ser vistas como uma série de pequenas mortes, em que novos Bowies nasciam regularmente à medida que velhos Bowies morriam.  Como artista, ele estava sempre num estado de transitoriedade, personificando a ideia de impermanência – tema refletido em sua canção “Changes” (de Hunky Dory).

No fim ele abandonou de fato o fluxo de impermanência morrendo de câncer no fígado, mas não antes de aproveitar o dia e fazer um último álbum, Blackstar, em que chega a cantar sobre sua própria morte. Muitas pessoas tiveram suas vidas mudadas por David Bowie, mas acho que um de seus legados é oferecer inspiração àqueles que podem sentir muitos eus se agitando dentro de seu ser, à espera de irromper – do adolescente que sonha em assumir em público sua sexualidade ao contador frustrado que quer viver uma vida mais criativa e aventureira. A filosofia de pequenas mortes pode nos galvanizar para aproveitar o momento, deixar um velho papel para trás e nos inventarmos de novo.



ROMAN KRZNARIC em Carpe Diem 
RJ: Editora Zahar, 2018, pg. 43

 

THOREAU: A Desobediência Civil e a Apologia da Existência Selvagem

“Na história das ideias, Henry David Thoreau (1817 – 1862) é conhecido por dois momentos de sua biografia que se tornaram emblemáticos de seu pensamento: a vida no bosque e a estada na prisão. Walden, ou o elogio da vida selvagem; a prisão, ou a desobediência civil”, escreve Michel Onfray no sexto volume de sua Contra-História da Filosofia, entitulado “As Radicalidades Existenciais” (Editora WMF Martins Fontes, 2017, p. 62).

Este célebre prisioneiro só passou uma noite em cana, em 1846, ou seja, antes da Guerra Civil e da Abolição da Escravatura. Seu crime: recusar-se a pagar impostos ao governo dos EUA, que além de escravocrata e racista, estava então engajado numa ofensiva bélica e imperialista contra o México, país vizinho do qual roubou pelo sangue e pelo fogo uma significativa parte de seu atual território.

O breve texto escrito sob o impacto de sua prisão – “A Desobediência Civil”, publicado em 1849 – “entra pela porta da frente na história da filosofia política, da mesma maneira que o ‘Discurso Sobre a Servidão Voluntária’, de La Boétie, o qual ele lembra sob muitos aspectos.” (ONFRAY, p. 63)

O texto, que inspiraria gerações de contestadores cívicos, em vários países, tornou-se um emblema da atitude ético-política que consiste em afirmar: é justo desobedecer a leis injustas e recusar obediência a autoridades iníquas.

Do movimento sufragista inglês, que conquistou a duras penas o voto feminino já na aurora do século XX, à mobilização independentista da Índia contra o império britânico, encabeçada por Gandhi, passando pelas lutas afroamericanas por direitos civis igualitários que têm em Martin Luther King, Jr. e Rosa Parks alguns destinos emblemáticos, todos beberam na fonte de Thoreau, ainda que questionassem seu anarco-individualismo e propusessem ações coletivas de massa ao invés de atitudes de indivíduos rebeldes isolados.

Menos conhecida é a atuação de Thoreau ao “ajudar regularmente escravos a irem para o Canadá” e ao realizar uma apaixonada defesa de John Brown (1800 – 1859), “um branco que lutou de armas em punho para abolir a escravidão, acompanhado de uma dúzia de combatentes determinados” (ONFRAY, p. 70). Quando John Brown foi capturado e enforcado pelos poderes constituídos que defendiam a lei e a ordem (a lei segregacionista, a ordem escravocrata…), Thoreau publicará vários panfletos e manifestos em sua defesa: “se engajará ao lado dos escravos e falará de um ‘crime contra a humanidade’ para caracterizar o comportamento dos brancos em relação às pessoas de cor mantidas sob seu jugo.” (p. 91)

Usualmente classificado entre os anarquistas, na companhia de Bakunin ou Proudhon, Thoreau talvez mereça a alcunha de anarco-individualista, na companhia de Max Stirner, ainda que seu pensamento possa ser visto também como uma radicalização do ideário do liberalismo clássico e que pode inclusive ser apropriado por formas contemporâneas de anarco-capitalismo neoliberal. Seu pensamento político assim pode ser sintetizado:

“O melhor governo é aquele que governa o menos possível e deixa os cidadãos viverem como quiserem. Os governos exercem seu poder não porque são legítimos, mas porque dispõem do monopólio da coerção legal: a polícia, o exército, a prisão, a caserna. O respeito à lei vem depois daquilo que nossa consciência nos dita: antes de tudo, somos homens; em seguida, cidadãos. Tornamo-nos cúmplices da injustiça sempre que não a denunciamos ou não lutamos por sua abolição; não impedi-la significa ser tão responsável e culpado quanto aquele que a comete. O Estado considera inimigo quem pensa, reflete e julga antes de obedecer. Não existe nenhuma boa razão para pactuar com um governo que defende a escravidão. As petições são uma boa coisa, mas a insubmissão cívica é melhor: não pagar os impostos é uma excelente maneira de exprimir sua discordância, pois a cobrança desse dinheiro é o único modo sob o qual o Estado nos aparece. Devem-se transgredir as leis injustas; a ação de um indivíduo é o melhor dos contrapoderes em face de um governo iníquo; não se espera que ninguém faça tudo sozinho, mas deve-se ao menos fazer alguma coisa. A minoria é incontornável quando pratica a obstrução; como o Estado não pode encarcerar todos os cidadãos refratários, necessariamente cederá…” (ONFRAY, p. 162)

Se aí se manifestam noções próximas de Voltaire – “todo ser humano é culpado pelo bem que não faz” -, que apontam para a culpabilidade dos omissos, cúmplices das injustiças vigentes, também se manifesta um individualismo excessivo, de molde liberal, que parece acreditar no poder de contágio da ação individual emblemática, que é diferente da participação ativa em movimentos sociais, partidos políticos, sindicatos laborais, conselhos ou sovietes… A filosofia de Hannah Arendt, também intensamente interessada no tema da Desobediência Civil, como prova o importante artigo presente no livro “Crises da República”, tentará superar as limitações da visão de Thoreau ao construir um conceito ampliado de ação, que exige a união de poderes entre agentes que coordenam seus esforços para a transformação do mundo comum.

Outro episódio biográfico emblemático, conexo a outra obra-prima da literatura estadunidense, foi a “fase Walden” de Thoreau: por 2 anos e 2 meses, entre 1845 e 1847, ele viveria em sua cabana às margens do Lago Walden, devotado aos labores simples da vida, à contemplação profunda da natureza, ao aprendizado com a selvageria e rusticidade de uma vida pouco domada pela civilização. A filosofia de vida de Thoreau, expressa com belas palavras e metáforas no livro Walden, inspirador de muitos aventureiros solitários (a exemplo de Christopher Johnson McCandless, protagonista do filme Into The Wild. de Sean Penn Movies), é assim resumida por Onfray:

“Num mundo onde tudo passa, flui, transforma-se, nada se perde, tudo se modifica; num universo onde a mesma energia atravessa o sílex e a coruja, o corpo de um filósofo e o campo de trigo, a água de um lago e a carne de um peixe, existe apenas um ponto fixo: o Movimento. O trabalho do pensador? Habitar plenamente cada instante constitutivo desse movimento. Mergulhar todos os dias na água do rio heraclitiano – ou do lago de Walden… – sabendo-o Mesmo e Outro. O dever do sábio consiste em usar até o limite o epicentro de cada momento. A vida filosófica propõe-se criar e colecionar momentos sublimes. Fundir e fundir-se para enfim ser. Thoreau quer vaporizar-se na natureza para atingir o gozo de uma consciência que sabe que o filósofo e o mundo, assim como o lago e a luz, são uma única e mesma substância vibrante de Vida.” (ONFRAY, p. 46)


Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro – www.acasadevidro.com

O Útero dos Deuses e outras reflexões gratuitas…

“Joie de Vivre” de Matisse

Os Trabalhos da Eternidade

O que mais me espanta neles, os trabalhos da eternidade, é que eles prosseguem na ativa, mesmo depois da labuta de incontáveis milênios. É como se o tempo, o incansável, jamais se fatigasse de passar. Passa o tempo, e passa o tempo, e passa mais um pouquinho e mais um poucão, sem que haja como retê-lo. Construir uma montanha em seu caminho? Inútil! O tempo pisoteia todas as barricadas. E nada fará com que o amanhã não venha!

Por acaso resolve pedir em oração para que os deuses intervenham e nos retirem desta sina de impermanência e nos instaurem no duradouro? Nada disso adianta: é o tempo quem nos carrega, é ele quem manda, e cada um de nós é um lampejo de consciência, um ente temporário que brota do mundo e que dura por tempo limitado em meio à ilimitação infinita do Tempo… Neste Universo, ao que me parece, não existe a tecla pause. Estamos em play perpétuo. Corre o rio do Tempo sem freeze.

Há quanto tempo já gira a Terra em torno do Sol? E a Lua em torno da Terra? Eu, péssimo em matemática, não faço a mínima ideia. Minha mente fica confusa diante de quantias tão estratosféricas… Consigo contar com facilidade uma dúzia de bananas, mas quando começo a subir para domínios mais aéreos, quando vou, fogueteiro, subindo rumo às nuvens… aí me ferro. São incontáveis, meu caro, absolutamente arredias às aritméticas humanas estas miríades de estrelas enxameando na noite!

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Se oca de índio, iglu de esquimó e apê de metrópolis já me espantam, prodígios da engenhosidade humana que são, o que dizer da estupefação de meus míseros miolos diante das estrelas e das constelações?

“Amai para entendê-las”, aconselhava o poeta Bilau Bilac. Amei e não entendi porcaria nenhuma – a não ser isto: que quando se ama, o entender perde a importância. E que o amor não é questão de aritmética: se concordo com Santo Agostinho em algo, é nisso – “a única medida do amor é amar desmedidamente”.

“Será mendigo todo amor capaz de ser medido”, derrama-se em amores por Cleópatra o Antônio de Shakespeare. E digo eu: são pobres as coisas que podem ser descritas! Não nasci para ser mensurador da eternidade: minha incompetência nesta matemática é crassa. Ah!… como sou ruim de número quando me pedem para dizer a soma da luminosidade, o produto da multiplicação da água pelo éter!

 Ainda assim, barco que sou, descendo rio sem saber em que cachoeiras hei de ser lançado, sem poder prever em que dia serei estraçalhado contra as rochas, procuro como remédio do viver… o escrever e o amar. Têm me bastado para um tipo todo meu de plenitude, toda polvilhada de buracos e imperfeições.

 Palavras, palavras! Com elas esculpimos o vento, introduzimos afeto nos ares, trombeteamos nossos corações fora de suas jaulas toráxicas! Palavras: tanto… e tão pouco! Tanto e tão pouco. São muralhas que erguemos contra as marés montantes do esquecimento? São confissões de nossas carências, nossas ânsias por aplauso, nosso inconfessado desejo de comunhão?

 Quiçá as igrejas, estas bagaças de matéria que mãos humanas ergueram com tijolos no solo da Terra, sejam instituições a confessarem um segredo da humanidade: nossa vontade de comungar. Comungar é estar enlaçado, para além da solidão.Ler Durkheim me impregnou com essa impressão de que o segredo da religião é “sociológico” ou “antropológico”.  Feuerbach dá às mãos à Durkheim e eles celebram na mata suas saturnálias: os deuses não passam, pois, de rebentos de peitos humanos, frutos de nossas angústias, remédios inventados contra nosso medo da morte e nosso pavor da insignificância, servindo às comunidades como instrumentos para o estabelecimento de laços.

 Inventamos Deus pois éramos muito sós. Prosseguimos sendo sós, no melhor dos casos, e fratricidas e genocidas, no pior. Criamos o divino como cola para nossos enlaces, mas ela só nos separou. A fé trouxe a guerra e a promessa de comunhão ficou frustrada: lá nas terras de Jerusalém as bombas, os mártires, os terroristas suicidas, os ódios furibundos, prosseguem nos campos de batalha da “terra sagrada”, aparentemente condenada pelos deuses ao conflito eterno…

 A pergunta que não quer calar é: precisamos necessariamente de deuses para comungar? Não há amores e amizades que são comunhões que, apesar de plenamente atéias, são consumados triunfos do Enlace? Para que possamos nos reunir, para que vençamos cada um e todos os tormentos infindos das solidões inúmeras, precisamos realmente ter as mesmas crenças sobre os mesmos seres sobrenaturais? Tanto sangue merece ser derramado em nome de uma quimérica concordância universal em matéria de religião? Por que não deixar subsistir e coexistir miríades de diferentes religiões, cultos, seitas, clubes, sociedades secretas, comunas de interesses comuns e o caralho a quatro?

 Fede à tirania tudo aquilo que deseja uniformizar a sociedade. Tirano é quem quer que todo mundo pense igual – no caso, igual a ele, tirano. Nesse sentido, todo Papa é um tirano. E o único ato digno de um Papa que quisesse se levantar contra a Tirania seria a renúncia, a abdicação, o adeus à batina.

 Abaixo com todos os papas, creiam eles em deuses ou não! É mais do que quimérica – é fabulosa – a utopia de alguns de fazer com que a humanidade inteira (7 bilhões de criaturas!) sigam todas a mesmíssima doutrina. Isso jamais houve, jamais houverá, e continuar tentando é continuar a sina de guerra que polui a História…

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 Quem sou eu para estar aqui, jorrando sobre a brancura que a folha defende estes verbalismos arrebatados e essas heresias impudicas? Juro: só falo pois calar seria mais terrível. Tento ir direto ao ponto, sem cirlunlóquios, mas a complexidade desnorteante do real me envolve de volta no caos. Não escrevo conhecendo todas as respostas: escrevo aos tateios, em busca. Sem saber o que o futuro reserva. Que tesouros? Que cansaços? Que epifanias? Que quedas? Que versos? Que lágrimas? Que beijos? Que nadas? Escrevendo como quem sopra para o ar as bolhas de sabão: voam pelos ares, alados, esses pontos-de-interrogação nômades e dúvidas ambulantes, propagando pelo mundo o ácido corrosivo das certezas!

 Ah! O terrorismo lírico bombardeando as certezas! Soa a meus ouvidos como um bom emblema poético. Bandeiras em riste contra os tiranos! Serei eu formiga diante do elefante, clamando no deserto, destinado a ser esmagado pelos poderes contra os quais me levanto? Não sei, mas dane-se!

 Pois quem não tem coragem de ser amaldiçoado, ah!… este permanecerá inofensivo feito um santo. Já os criadores, os renovadores, os revolucionários, estes, me parece, têm a coragem de ser ofensivos, e não por qualquer ímpeto destrutivo gratuito ou sadismo terrorista. Eles não são coniventes com a mediocridade de consciência dos que vivem com a mente encarcerada nas estreitezas do cabresto dogmático. Cabresto não é comigo! E também não gosto que cabresteiem os outros com intenções de maracutaia.

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 A vida: não é preciso compreendê-la para desejá-la. O desejo é mais forte que o saber: fomos desejantes antes de nos tornarmos racionais (ao menos parcialmente racionais, é claro…). Aliás, a Razão, me parece, precisa ser considerada mais à maneira bergsoniana: como algo que, a princípio, tinha como função servir às necessidades vitais dos organismos. Ela nasce serva e depois pretende emancipar-se: lacaia que pretende-se rainha.

 A Razão, quando se faz presunçosa, gera rebentos como este: a ideia de que um ser humano tem um valor moral superior aos outros caso consiga sufocar e reprimir seus desejos naturais espontâneos, impondo ao seu querer uma rígida disciplina repleta de severidades ascéticas. O platonismo é um dos resultados da Razão quando esta se faz tirana e volta-se contra o próprio prosperar fisiológico dos corpos humanos.

 Sobre o assunto, Cioran soube encontrar, em seus Silogismos da Amargura, uma expressão poética eloquente o suficiente para sugerir a imensidão do que está em jogo: “O Espírito é o grande favorecido com as derrotas da carne. Enriquece-se à sua custa, a saqueia, regozija-se com suas misérias; vive do banditismo. A civilização deve seu êxito às proezas de um bandido.” (pg. 18)

 Já eu, graduei-me com o Doutor Conatus, passeei pelos Jardins de Epicuro e mandei o Imperador Pimpão sair da frente do meu Sol. Fiz extensão no Instituto Wilhelm Reich de Libertação Sexual, teoria e prática, ambas com imenso prazer. Retirei todas as cruzes e crucifixos de minhas paredes e pescoço, e fiz-me spinozista – destes que amam o amor, isto é, as alegrias causadas em outros e por outros causadas em nós, únicos êxtases certos desta vida.

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“Únicos êxtases”? Sinto muito por ter dito isto: desconsiderem esta palavrinha incômoda, “únicos”. Prefiro re-invocar o múltiplo e fazer valer os direitos da Diversidade. Também de êxtases, afirmemos, há uma enorme diversidade! Tristes as épocas, e tristes as civilizações, que são tão estreitas em seu horizonte que só enxergam o êxtase… no consumir, no comprar, no possuir. Que êxtase mais medíocre! Será digno de ser chamado de “êxtase”, ou devemos reservar essa palavra para algo mais condigno?

 Hoje em dia, forças colossais ao nosso redor tentam reduzir-nos ao status de “consumidores”. Deixamos de ser “cidadãos”, de ser “compatriotas”, de ser “conterrâneos”, de ser “camaradas”, e passamos a ser tratados como nada mais que carteiras e bolsas das quais é conveniente arrancar um troco… Ou mesmo uma fortuna.

 A fúria anti-consumista de um Tyler Durden, essa frase que assombra nossos tempos feito um fantasma errante, “the things you own end up owning you”, tudo isso é sintoma de uma irritação crescente, de um protesto cada vez mais veemente, contra esta civilização que tenta nos reduzir o homos economicus, pisoteando o sapiens e o ludens em prol do business e do free-market…

 Thoreau, em seu poderoso livro Walden, soltava seu fel contra a laborosidade de muitos de seus contemporâneos. Critica os que trabalham freneticamente, o que no mundo empresarial de hoje se chama de workhalics, cujo fervor existencial está todo voltado para isso: ganhar dinheiro, poupar dinheiro, administrar dinheiro. É o que meu querido punk Johnny Thunders chama de uma “one-track mind”, ou “mente de uma faixa só”: sempre toca o mesmo hit irritante, e sempre “Money, Money, Money” (cançãozinha fajutíssima perto de uma “Smells Like Teen Spirit”, de uma “Take the Power Back” ou uma “Do The Evolution”…).

 Thoreau parece dizer: vivemos no tempo e a sabedoria não é nada além de saber como bem empregá-lo, não desperdiçar o tempo limitado que temos de vida com algo que consideramos vil, aviltante, envilecedor. Ele é tanto um crítico da laborosidade workaholic quanto do ócio entediado: não prega nem o “fim do trabalho”, nem o “ficar de papos pro ar”. Mas alfineta, com poesia afiada, aqueles que, na vida, perdem o tempo ou matam o tempo: “as if you could kill time without injuring Eternity…” (THOREAU, Walden)

 Qualquer leitor de Thoreau que abra os olhos para a realidade de hoje, com o olhar do eremita de Walden Pold, não pode deixar de notar: ainda há multidões que nunca param para contemplar os trabalhos da eternidade. E é pois estão muito ocupados laborando duramente atrás de salários – e através, é claro, de durezas, sacrifícios, fadigas, suores… Em nome do quê? Em nome do dinheiro que é poder, do poder que permite atingir, através da compra, este alvo supremo, o Conforto, deus venerado pelo neoliberalismo consumista. Pobres as épocas que só sabem dizer da Felicidade que ela é um “estado confortável”! Nietzsche e McCandless, para ficar em dois exemplos que me tocam mais intimamente, discordam. “Destoam do coro dos contentes”, para usar o lindo verso do des-toante Torquato.

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Um erro muito comum, um preconceito tenaz nutrido por muitos humanos que nunca viveram fora da fé, é crer que descrer em Deus significa perder todo tipo de transcendência. Da maneira como fui ensinado nos catecismos que segui, na escola dos monoteísmos, Deus é propagado como algo de alheio, de estrangeiro, de fora-deste-mundo. Se não posso crer num Deus que esteja assim tão alonjado de nós, que transcenda-nos de modo a permanecer alheio como a Lua para nossas mãos, não é somente por ter frequentado a escola de Spinoza, que nos convida a pensar na brisa que bate em nosso rosto como um “atributo de Deus” pois parte da natureza. É também pois me parece um tanto absurda esta noção de exterioridade radical de um deus em relação ao mundo.

Descrer no Deus transcendente, aquele cuja casa parece ser tão distante que tendemos a descrevê-lo como algo fora do mundo, não significa perder tudo – significa, bem ao contrário, TUDO GANHAR.

O que muitos não entendem é que há a possibilidade de conciliar ateísmo com êxtase. Um dos mais tenazes preconceitos humanos é aquele de acreditar que ateísmo rima com tristeza, com desespero suicida, que é ideia “perigosa” de quem acaba por cortar os pulsos…

Minha recorrente descoberta, ao contrário, é a de que existe, sim, ateus felizes, ateus sábios, ateus serenos, ateus éticos, ateus que são, sob todos os parâmetros, “ótimos sujeitos”: André Comte-Sponville é prova vivíssima disso, e o será ainda, depois de sua morte. Isso mostra, pelo menos, que um ateu pode ter aspirações éticas tão elevadas quanto qualquer homem-de-fé – que, em outras palavras, não é pela fé que se julga o caráter. Por exemplo?

 Foram homens-de-fé, muitos deles que se consideravam pios cristãos, que saíram das caravelas, servos das Majestades portuguesas e catalãs, para realizar este ato – a Conquista da América – cuja capacidade de morticínio em massa não conhece muitos símiles na História: só no México, como apontam em suas obras autores como Todorov e Clastres, haviam 25 milhões de índios antes da chegada dos europeus; cinquenta anos depois, restavam cerca de… 1 milhão.

Não consigo não voltar a este assunto: ele desperta em mim uma atração quase obsessiva. Rodeado por religiões que se vendem como uma maravilha, sou aquele que gostaria sempre de apontar os podres destas presunçosas senhoras. As vovós religiosas não param de evocar os séculos passados, as tradições veneradas, temerosas das novidades que lançam o Tempo rumo a novos amanhãs. Gostariam que os Hojes se repetissem, idênticos, seguindo a mesma toada, conforme o ritmo de que, de cima dos púlpitos, lhe ditam os sacerdotes.

Descrer significa também perder a confiança nestas figuras de autoridade que nos mantêm no terror, que lucram com nosso medo, que nos querem de joelhos e acatando ordens. Se antes éramos ovelhas, respeitosas e submissas, fazendo tudo o que dizia o patrão, seguidoras fiéis das ordens do pastor, passamos a rugir leoninamente. É disso que Zaratustra, me parece, está falando: o camelo, aquele que carrega nas costas o duro fardo que ali foi colocado por outrem, que é a besta de carga de conteúdos que uns folgados quiseram obrigar-nos a transportar, deve libertar-se de sua submissão e fazer-se leão. O leão é aquele que se debate com fúria, que se recusa com violência, quando tentamos algema-lo, pô-lo numa jaula, mantê-lo de joelhos. Ele é expressão da força física exuberante, da recusa tenaz da vontade em submeter-se aos fardos impostos por autoridades.

 Um desses fardos, segundo Nietzsche, é certamente a moralidade – que seria uma espécie de algema psíquica, uma camisa-de-força. A moralidade é coisa ensinada desde o berço: e vocês sabem bem por quais lindíssimos métodos! Todo mundo já tomou um tapa, um xingo, uma chinelada, um espanco… Nos prometem um bombom ou um brinquedo se formos “bons mocinhos”, e algum doloroso castigo caso fracassemos a agradar, com nosso comportamento, os parâmetros deles. Muita da moldagem que nos impõe é realizada através de coerção, violência, ameaça, promessa. O sistema utilizado de praxe para transformar o bestinha do pivete em um sujeiro moral é a promessa de torrão de açúcar e a ameaça do chicote. Isso é que cria os camelos carregadores de fardos, que de cabeça baixa, adoradores da cruz, vão choramingando pelos áridos caminhos terrestres, bestas-de-carga, tristes e pesadas.

 Perder Deus é desvencilhar-se desse fardo: é possibilitar-se a chance de volver a ser criança, e não um velho camelo carregador de pesos. Infelizmente, a palavra ateísmo carrega um grave inconveniente: este “a”, indicativo de negação, parece carregar demais de negatividade o sentido, como se ateísmo fosse somente uma ausência, uma falta, um buraco na alma. O preconceito tenaz a que me refiro, em outras palavras, consiste em crer que o ateu é um ser que sofre mais que os outros pois lhe falta algo de importante, como se não passasse de um aleijão religioso, cambaleando de muletas.

 Na perspectiva do ateu, ao contrário, é o crente quem é o aleijão, cambaleante, de muletas. Ateísmo, longe de ser negação, é para ele afirmação: deste mundo, desta realidade, destas pessoas. O religioso é apressado em condenar; crê em infernos onde seres humanos “maus” vão arder por toda a eternidade; concebe o mundo “rachado”, cindido, entre dois grandes grupos, e somente dois: os eleitos e os danados… Se isso não é uma miopia do olhar, eu não sei o que é!

 A perda da autoridade transcendente que outros nos convenceram a adorar implica, para o homem, em um aumento de sua liberdade. Ele fica de pé após ter permanecido por séculos de joelhos: e de pé, vocês sabem, há muito mais a ser feito. Qualquer um sabe, é lição elementar de biologia, que um fato seminal em nossa evolução foi termos podido nos erguer e adotar a posição ereta. Não somos mais quadrúpudes: somos criaturas eretas. Por que deveríamos, pois, cair de joelhos nas igrejas?

 Sei bem: saber cair de joelhos é dar prova de humildade. O homem não pode ser arrogante, diz a sabedoria dos séculos, se não quiser atrair a desgraça – se quiser escapar às garras de Nêmesis, a deusa que os gregos imaginavam como punidora das arrogâncias dos mortais. A religião seria, pois, esta humildade diante da grandeza? Sim, acredito que sim! Mas a questão a ser colocada é: grandeza do quê? Da autoridade do papa? Do prestígio dos sacerdotes? Do ouro que refulge nas igrejas? A humildade que as religiões exigem de seus fiéis, que querem convencer-nos a tomar por uma das virtudes cardeais, não será um estratagema para conquistar a submissão? Pois, pensem bem: poucas doutrinas são menos humildes que as religiosas. Eu diria até que as religiões fabricam justamente as ideias mais presunçosas já formuladas por seres humanos: elas beiram a megalomania desvairada, às vezes, elevando o humano ao um tal status de grandeza que não há bomba enchedora de ego mais poderosa.

 Descrer em Deus decerto não anula a transcendência, nem no tempo, nem no espaço. O passado imenso que pre-existiu ao nascimento de cada um de nós é uma transcendência temporal inegável; tanto quanto o futuro ainda não vivido e aquele que transcorrerá, também imenso-imensurável, depois que estivermos mortos. Também não nego que meu corpo, que o corpo de cada um de nós, encontra-se limitado no espaço, que está sempre necessariamente localizado, e com uma perspectiva limitada: há sempre uma única paisagem à frente dos olhos, e bilhões de outras que a transcendem. A finitude humana, a limitação da nossa perspectiva, a exiguidade de nosso corpo, nos obriga a estar sempre num estado existencial onde exorbita tudo aquilo que nos transcende. O ateísmo não nega isso mas, pelo contrário, tal como o concebo, procura expandir a consciência humana para o que eu chamaria, sem medo do paradoxo, de transcendência imanente.

 “ÃãÃãÃhhhnnn?!?!?”, levanta-se a confusão na mente de quase todos. Eu explico! – ou tento. Julgamos que algo é transcendente sempre em relação a algo: é uma relação de exterioridade que presume sempre dois termos. A casca do ovo é exterior à gema e à clara que contêm dentro de si: é só por isso que seria possível dizer que, da perspectiva da clara e da gema, o mundo lá fora é transcendente.

 Mas, quebrada a casca, avança a gema sobre o mundo, mistura-se com ele, até perceber, ovo sábio e clarividente, que o suposto transcendente não era o absolutamente alheio, mas uma imanência que aceita a transa. Em outras palavras: o mundo aceita a mescla. A matéria gosta mesmo é duma transa. Portanto, o transcendente como o intransável, o remoto, o distantíssimo, o intocável, o alheio estrangeiríssimo, ao ser descrido – é essa uma das revoluções operadas na mente pelo ateísmo – conduz à percepção de um mundo que nos rodeia muitíssimo apreciador duma mistureba.

 Somos feitos, todos e cada um, de matéria mesclável: e isso já é uma lição de amor. O ateísmo conduz à noção de que este mundo, onde já estamos, e esta vida, que estamos vivendo, são o verdadeiro lugar. Antes, ficávamos sonhando, de olhos perdidos em horizontes distantes, com Deuses e Paraísos que ficavam lá nas brumas distantíssimas do remotíssimo alhures… A felicidade era coisa pra mais tarde, bem mais tarde: coisa pra depois da morte. Enfim: a felicidade era promessa, algo que se espera, mas não algo vivido na pele, em carne-e-osso. Deus: algo como um parente que mora muito longe, que não conhecemos muito bem, que nos disseram ser poderoso, e a quem suplicamos por bens, muitas vezes em vão.

 Em suma: quem crê no transcendente periga ficar em relações com o distante, esquecendo-se do próximo. Só que o próximo é o local ínfimo e minúsculo onde está o nosso corpo: e uma imensidão transcende de fato, no interior da imanência, as limitadas capacidades de nossa percepção! Concebo a imanência como o todo do conjunto cósmico e a transcendência como algo típico da consciência, que é fenômeno englobado dentro da imanência. Enfim: o círculo da transcendência está encerrado dentro do círculo da imanência de modo análogo ao círculo da consciência, que está encerrado dentro do “círculo cósmico”, se é que assim posso me expressar na aventura fadada ao fracasso de explicar o inefável…

 O ateísmo não impede a sensação de infinito. Da praia, observo a grandiosidade do mar que se perde de vista. As montanhas mais distantes, já meio escondidas pela bruma, me são outro testemunho de que há muito mais além daquilo que consigo ver. A estrada vai além, muito além do que se vê. A transcendência é o conjunto de todas as estradas que vão além do que se vê. Se víssemos mais longe, a transcendência seria menor. Ela é, pois, um efeito da limitação e da finitude de nosso humano viver. Transcende-nos somente pois somos consciências finitas, fora das quais exorbita uma imanência polvilhada de consciências. A exorbitância da imensidão cósmica – a imanência – quando entra-nos consciências finitas adentro… acaba diminuída. Ninguém tem olho na nuca e ninguém enxerga a outra margem do oceano. Nossa finitude é o berço de todos os deuses; e a morte dos deuses equivale a uma nova abertura para a imensidão transável do exorbitante cosmos que nos inclui e nos rodeia.

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 “Conhece-te a ti mesmo”, convida-nos o velho Sócrates. A simplicidade da fórmula desse imperativo esconde uma complexidade imensa. Se o “quem sou eu?” é questão de tão difícil resolução, isto se deve, me parece, por várias razões – a primeira delas sendo a mobilidade perpétua deste objeto-a-conhecer que chamamos, cada um de nós, de “eu”. O eu é mais um rio do que uma montanha, mais um mutante do que uma múmia, mais uma lebre serelepe do que uma tortuga. Em outras palavras: a gente nunca é, a gente sempre está sendo.

 “Eu” é coisa mais líquida do que sólida. Que me entendam os poetas, se puderem! Que façam o experimento de conceberem-se como águas que correm e não como rochas perduráveis: vale a pena fazer, com o cérebro, destas cambalhotas. Fluidificar têm sua delícia.

 Os estar-sendos dos eus são múltiplos. Logo, Sócrates nos lança ao labirinto, à louca sala de espelhos, ao invés de resolver nossos problemas, quando nos insta à auto-inspecção auto-interrogante do “conhece-te a ti mesmo!”.

 Outra razão para a labirintite que acomete qualquer perscrutador sério de si mesmo é que o eu, por sua inclusão necessária no interior do Tempo, é sempre, não uma pura instantaneidade sem passado nem futuro, mas algo que dura e que conecta-se.

 O eu dura em sua mutabilidade, ou pelo menos é inegável termos a sensação da duração, sem a qual jamais conseguiríamos, aliás, ouvir uma sinfonia. A sinfonia do eu, cheia de suas dissonâncias e desafinos, é, ainda assim, algo que mutatis mutandis…dura.

 Não sabemos, enquanto vivemos, da data de nossa morte. Morte certa, hora incerta. Em outras palavras: não sabemos – a não ser que sejamos suicidas ou moribundos – o tamanho exato do nosso futuro, o tempo que ainda temos pela frente. E também o dia-após-a-nossa morte nos preocupa, desde hoje. Alguns são absolutamente incapazes de sequer conceber uma destruição integral do eu, e projetam fantásticos Paraísos e Redenções que supostamente decorreriam no além-túmulo. Ernest Becker nos convida a enxergar aí o verdadeiro útero dos deuses: eles nascem dentro de organismos humanos que, aterrorizados diante do fato brutal da mortalidade, fabricam símbolos e mitos destinados a provar-lhes sua suprema significância cósmica.

A morte é aquilo que põe em cheque o sentido. A morte é aquilo que nos deixa com esta pulga-atrás-da-orelha de suspeitar sempiternamente do sentido de nossas vidas. Quer parecer a criaturas tal como somos que desaparecer integralmente não é algo agradável a nosso ego: sentimos isto como uma ferida infligida sobre o nosso narcisismo. Isto explica porque Sigmund Freud e a psicanálise são tão antipáticos a tantos: pois uma tal demolição do narcisismo humano não se leva à cabo sem despertar severos reproches da parte dos narcisistas ofendidos, dos “humanistas” humilhados… Em outros termos: quem sai por aí a derrubar Narcisos de seus pedestais, a empurrar Narcisos na água gelada, onde antes deliciavam-se diante do espelho, deve esperar mesmo pelos chiliques e pelas negações dos Narcisos destronados.

 O sentimento de valor-próprio que tanto ansiamos possuir, pois ele nos dá a sensação de possuirmos também maiores chances de sobrevivência post mortem, não é algo que possamos conquistar sozinhos: o espaço social é onde cada um vai buscar, na convivência e na troca com os outros, o sentimento de valer. Os atos que decorrem dessa “ânsia por valer”, desse craving for meaning, são os mais diversos, e Ernest Becker com certeza centrou seu lúcido e penetrante foco justamente sobre os mais malévolos e destrutivos desses atos. Becker mostrou que estar “faminto por sentido” não é necessariamente coisa boa: que disso podem nascer massacres e genocídios.

 O desejo do “eu” de “sentir-se valioso” está intimamente conectado com o ato, cotidianamente repetido e reiterado, de imaginar um cosmos de tal modo “ordenado” que a criatura mais resplandecente, luminosa e relevante dentre todas (vejam só que “criação de gênio” de Narciso!) SOU EU. Como somos gabarolas sempre que criamos religiões! Elas sempre nos honram: acariciam nosso ego com promessas de que ele, Vossa Majestade, o Eu, reinará eternamente, está destinado à felicidade infinda, foi criado para ser o cume e o pináculo da criação, filho que é do Sujeito Que Manda no Cosmos. Esta breve caricatura da religião monoteísta não dá conta, porém, de transmitir a grandiosidade da invenção humana na arte da glorificação própria e do auto-engrandecimento.

O homem conta a si mesmo, através das religiões que cria, histórias que lhe dizem: “a espécie a qual eu pertenço é a espécie maior e melhor, o supra-sumo dentre os animais, tão mais refinado e très sofistiquèe, o único dotado de uma alma que não morre, sendo portanto absolutamente distinto das “bestas selvagens”… Ah, o homem! Criatura sublime! Cheia de sentido é a existência humana, acreditem, pois tão poderosas e benignas e justas são as forças que a criaram!”

O discurso religioso, quando dissecado com perspicácia beckeriana, aparece-nos como um discurso emanado dos organismos mortais humanos, rebelados contra a mortalidade a ponto de não querem reconhecê-la, fabricando como remédio às suas angústias infindáveis fantasias narcísicas auto-reconfortantes.

 O que o tempo nos ensina de mais claro é o seu fluxo: não é à toa que se compara seu ser ao das águas de um rio. Mas qual seria o leito do tempo? Que águas são essas que nele correm? Dirigem-se os dias a algum oceano, escondido por detrás dos montes, lá nos amanhãs vindouros?

O que o tempo nos ensina de mais recorrente é que sempre estamos em algum lugar do espaço, algum ponto do cosmos, alguma coordenada encontrável nos atlas terrestres por latitudes e longitudes: não é possível ser uma criatura temporal sem estar em meio à extensão movente, graveto que a correnteza arrasta.

 Quando a consciência individual se acende, ela não cria o Tempo: passa simplesmente a ser cônscia de estar nele, arrastada por ele, englobada num rio que carrega tudo numa enxurrada cósmica exorbitante e sem limites.

“Percorrendo o caminho que a natureza traçou para nós, assemelhamo-nos a nadadores forçados a seguir a corrente que os carrega. Acreditamos ser livres porque ora consentimos, ora não consentimos em seguir a maré que sempre nos arrasta. Nós nos acreditamos os senhores do nosso destino porque somos forçados a mexer os braços no temor de ir para o fundo. ‘O destino conduz aqueles que o aceitam e arrasta aqueles que resistem a ele’ (Sêneca).” (Barão de Holbach – “Sistema da Natureza” (1770) – Editora Martins Fontes)

Ser pai de três bloguitos dá um trampo do danado.  Mas encaro de bom grado, feliz da vida de ter uma grande ninhada na blogosfera.  E tenho feito o possível pra manter a filharada toda bem alimentada. Em breve, pretendo criar um “Portal Depredando”, mais profissa e menos ilícito, ponto-com e tudo — mas sobre isto falo mais outro dia, quando a coisa for mais concreta. Por hora, quero convidar a meia-dúzia de hóspedes desta Casa de Vidro a darem um pulo no Depredando o Cinema, blog irmão d’Orelhão, onde venho me exercitando na crítica de cinema (ou “filosofagem viajandona em cima de filmes”) desde o começo do ano. Estes dias me debrucei sobre Into The Wild – Na Natureza Selvagem, filme queridíssimo pra mim, que narra a vida de Chris McCandless, vulgo Alexander Supertramp, rebelde-aventureiro-hippongo que embarcou numa jornada espiritual-filosófica-geográfica das mais inusitadas e comoventes. Pra mim, é o maior de todos os road movies (Easy Rider que me perdoe!) e dá pano pra muita manga filosófica… Colem lá, confiram e digam o que acharam! Abs.