SILÊNCIOS QUE BERRAM: Os assassinados Marielle, Moa e Evaldo ainda gritam – e suas ausências denunciam a vigência cruel da Necropolítica.

SILÊNCIOS QUE BERRAM

Brasil: eis um pesadelo de que não conseguimos despertar, similar à definição de História de Stephen Dedalus, o alterego literário de Joyce. Aqui, o real é um pesadelo num “país com um imenso passado pela frente”, como profetizava Millôr, nosso brilhante poeta-dramaturgo-comediante. São tempos em que a Elite do Atraso parece determinada em transformar todo o território numa Sucursal do Inferno – pra relembrar o título de um livro do Izaias Almada. Uma trogloditocracia nos desgoverna – e ao invés de estarmos nas barricadas, nas insurreições pra parir uma realidade menos sórdida, estamos debatendo o terraplanismo, zoando as “opiniões” evanjegues de Damares ou quebrando o pau em controvérsias se Olavo é filósofo, ou apenas astrólogo charlatão…

Diante de fatos recentes como a morte de dois músicos negros, um em Salvador e outro no Rio de Janeiro, não se pode calar as questões: quando o Exército criva um carro de família com 80 balas e mata um cidadão carioca, o músico Evaldo Rosa, e depois o chefe-de-Estado usa a frase “o Exército não matou ninguém” e qualifica o equivocado derramamento de sangue pelas forças armadas a serviço do Estado como apenas um “incidente”, não se torna explícito que estamos diante de alguém que considera, em massa, certa categoria de cidadãos como “ninguéns”, ou seja, como extermináveis?

O SILÊNCIO QUE BERRA – por Carlito Azevedo: “3 planos na foto. No primeiro plano, quase invisível, representando o nadinha de nada que nos isola do absurdo, fica o cordão de isolamento. No meio, a dor indescritível, o silêncio que berra (já aqui a cabeça entra em parafuso). Ao fundo, um pelotão de fuzilamento, nem próximo, nem distante, e 80 balas mais leve.” Foto de Fábio Teixeira.

Quando, em dia de eleição nacional, um eleitor do candidato de extrema-direita apunhalou pelas costas, com 12 facadas, o mestre de capoeira Moa do Katendê, e a resposta do então presidenciável do PSL foi, ao invés de solidarização com a vítima e atitudes de luto, tentar chupar os holofotes para si e para “sua” facada (o que ele queria saber, vocês se lembram, é quem tentou matá-lo em Juiz de Fora…), já não estamos diante da barbárie do empoderamento de um irresponsável?

São episódios em que o sangue escarlate derramado na bandeira já evidencia o erro na postura intolerante e intolerável dos que relinchavam “nossa bandeira jamais será vermelha!” Deixam claro que estamos entregando poder em demasia a um Sinhô incapaz de qualquer empatia com as vítimas das violências odiosas e sectárias que ele próprio disseminou, e que hoje comanda.

Não seria novidade histórica caso, diante das atrocidades que virão, o responsável-mor buscasse se esconder no argumento fácil e clichê da irresponsabilidade, do “não tenho nada a ver com isso”. “Pô, se um eleitor meu dá 12 facadas em alguém, depois de euzinho ter subido no palanque pra falar que tinha que ‘metralhar a petralhada’ e que ‘a ditadura matou pouco’, o que eu tenho a ver com isso?!?” É diante deste tipo de patologia da desresponsabilização que teremos que lidar. O próprio fato de Bolsonaro querer pular fora da responsa já é um sinal inequívoco que estamos diante de um temperamento ou caráter típico de um líder fascista. Pois Eichmann também era assim…

Diante da irresponsabilidade satisfeita-de-si que ostenta Bolsonaro, parecido com um pré-adolescente de 11 anos que ainda não tivesse aprendido qualquer noção de responsabilidade e solidariedade, é preciso lembrar das catástrofes conexas à esta incapacidade do sujeito de assumir a responsa pelo que diz e pelo que faz. O sujeito quecerca de 57 milhões de eleitores escolheram para ser o Chefão do Executivo Federal está conduzindo o país a uma tragédia anunciada, e que já se processa em velocidade acelerada. E temos refletido muito pouco, coletivamente, sobre o quanto tudo isso tem a ver com aquele colapso da responsabilização que Erich Fromm e Wilhelm Reich, que Hannah Arendt e Theodor Adorno, nos ensinaram estar vinculada umbilicalmente aos genocídios e atrocidades cometidas por sociedades sob o feitiço maligno de uma liderança fascista.

O Brasil parece estar se afundando cada vez mais no lodaçal desta política irresponsável e sádica que presidiu também à “Solução Final” perpetrada pelo III Reich em seu trato com o “problema judeu”. Em sua “Cruzada por um Brasil Medieval”, como escreveu Sakamoto, o Bolsonarismo depende de suas redes de fake news e disinformação, com suas táticas à la Goebbels de produção da histeria anti-comunista, da mobilização dos ódios antipetista, antipsolista, antifeminista, antiLGBTQ etc.

E assim vamos embarcando no trem de horrores que a extrema-direita neo-fascista, mundo afora, costuma encabeçar e liderar: aquilo que Hannah Arendt chamou de “massacres administrativos”. A desgovernança do Bolsonarismo, este delírio fundamentado na filosofia Olavista, somado à idolatria pela ditadura e suas práticas-de-porão, conduz diretamente a uma política de extermínio, a chamada necropolítica, tão bem analisada pelo pensador camaronês Achille Mbembe.

Assumindo o poder após o golpe parlamentar que destituiu Dilma Rousseff, o traíra Temer (MDB) se referiu à “intervenção militar” que ordenou na cidade do Rio de Janeiro como um “laboratório” do que depois seria expandido para o resto do Brasil. Quando Marielle Franco e seu motorista Anderson foram metralhados em Março de 2018, a expressão de Temer ganhou contornos mais sombrios, uma ironia mais macabra.

Ao calarem com brutalidade a voz de uma representante do povo, eleita a despeito de suas origens pouco convidativas à ascensão aos palacianos espaços de poder, os poderosos mandaram a mensagem de que a execução ali era “laboratorial”. Parte de um experimento mais amplo. Parte de um plano de extermínio. Pois as velhas elites escravocratas, viciadas na mentalidade colonial, viciadas em subserviência em relação a metrópoles, sempre quiseram ver certos estratos da população como os ninguéns e os extermináveis. Na visão de mundo deles, uma mulher negra, nascida na favela da Maré, que ainda por cima comete o pecado de ser socialista e lésbica, é o suprasumo do sujeito aniquilável.

Com a eleição de Bolsonaro, aquele laboratório de aniquilação que foi o assassinato de Marielle Franco tornou-se uma das piores pedras no sapato do governo que, em 4 meses de caos e patifarias, deu a muitos a impressão de ser um governo natimorto, agonizante. Só não devemos subestimar a resiliência do capitalismo agonizante de arrastar-se nas vísceras, no suor e do sangue das pessoas que explora e oprime: é este o pântano predileto para que este monstro nos dê o espetáculo repugnante de seu rastejamento de agonia. O fascismo é como um capitalismo rastejante, já sem forças para pôr uma máscara de civilidade sobre o seu rosto transtornado pelo sadismo e pela perversidade.

Eliane Brum soube compreendê-lo a fundo e tem analisado em minúcias o que significa estarmos hoje sob o domínio dos perversos:

“Estamos sob o jugo de perversos, que corrompem o poder que receberam pelo voto para impedir o exercício da democracia.

Os exemplos são constantes e numerosos. Mas o uso mais impressionante foi a recente ofensiva contra a memória da ditadura militar. Bolsonaro mandou seu porta-voz, justamente um general, dizer que ele havia ordenado que o golpe de 1964, que completou 55 anos em 31 de março, recebesse as “comemorações devidas” pelas Forças Armadas. Era ordem de Bolsonaro, mas quem estava dizendo era um general da ativa, o que potencializa a imagem que interessa a Bolsonaro infiltrar na cabeça dos brasileiros.

Aparentemente, Bolsonaro estava, mais uma vez, enaltecendo os militares e dando seguimento ao seu compromisso de fraudar a história, apagando os crimes do regime de exceção. Na prática, porém, Bolsonaro deu também um golpe na ala militar do seu próprio Governo. Como é notório e escrevi aqui já em janeiro, os militares estão assumindo – e se esforçando para assumir – a posição de adultos da sala ou controladores do caos criado por Bolsonaro e sua corte barulhenta. Estão assumindo a imagem de equilíbrio num Governo de desequilibrados.

Esse papel é bem calculado. A desenvoltura do vice general Hamilton Mourão, porém, tem incomodado a bolsomonarquia. O que pode então ser mais efetivo do que, num momento em que mesmo pessoas da esquerda têm se deixado seduzir pelo “equilíbrio” e “carisma” de Mourão, lembrar ao país que a ditadura dos generais sequestrou, torturou e assassinou civis?

Bolsonaro promoveu a memória dos crimes da ditadura pelo avesso, negando-os e elogiando-os. Poucas vezes a violência do regime autoritário foi tão lembrada e descrita quanto neste 31 de março. Foi Bolsonaro quem menos deixou esquecer os mais de 400 opositores mortos e 8 mil indígenas assassinados, assim como as dezenas de milhares de civis torturados. Para manter os generais no cabresto, Bolsonaro os jogou na fogueira da opinião pública fingindo que os defendia.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro lembrou aos generais que são ele e sua corte aparentemente tresloucada quem faz o serviço sujo de enaltecer torturadores e impedir que pleitos como o da revisão da lei de anistia, que até hoje impediu os agentes do Estado de serem julgados pelos crimes cometidos durante a ditadura, vão adiante. Como berrou o guru do bolsonarismo, o escritor Olavo de Carvalho, em um de seus ataques recentes contra o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de Governo da presidência: “Sem mim, Santos Cruz, você estaria levando cusparadas na porta do Clube Militar e baixando a cabeça como tantos de seus colegas de farda”.

A ditadura deixou marcas tão fundas na sociedade brasileira que mesmo perseguidos pelo regime se referem a generais com um respeito temeroso. Nenhum “esquerdista” ousou dizer publicamente o que Olavo de Carvalho disse, ao chamar os generais de “bando de cagões”. Mais uma vez, o ataque, a réplica e a tréplica se passaram dentro do próprio Governo, enquanto a sociedade se mobilizava para impedir “as comemorações devidas”.

A exaltação do golpe militar de 1964 serviu também como balão de ensaio para testar a capacidade das instituições de fazer a lei valer. Mais uma vez, Bolsonaro pôde constatar o quanto as instituições brasileiras são fracas. E alguns de seus personagens, particularmente no judiciário, tremendamente covardes. Não fosse a Defensoria Pública da União, que entrou com uma ação na justiça para impedir as comemorações de crimes contra a humanidade, nada além de “recomendações” para que o Governo não celebrasse o sequestro, a tortura e o assassinato de brasileiros. Patético.

(…) Diante do populismo de extrema direita de Bolsonaro e seus companheiros de outros países, o neoliberalismo é apresentado como a melhor saída para a crise que ele mesmo criou. Mas Bolsonaro e seus semelhantes são os produtos mais recentes do neoliberalismo – e não algo fora dele.

(…) Recente pesquisa do Datafolha mostrou que ele é o presidente pior avaliado num início de governo desde a redemocratização do país. Mas Bolsonaro aposta que é suficiente manter a popularidade entre suas milícias e age para elas. Bolsonaro está dentro, mas ao mesmo tempo está fora, governando com sua corte e seus súditos. Governando contra o Governo. Essa é a única estratégia disponível para Bolsonaro continuar sendo Bolsonaro.

A oposição, assim como a maioria da população, foi condenada à reação, o que bloqueia qualquer possibilidade de ação. Se alguém sempre jogar a bola na sua direção, você sempre terá que rebater a bola. E quando pegar esta e liberar as mãos, outra bola é jogada. Assim, você vai estar sempre de mãos ocupadas, tentando não ser atingido. Todo o seu tempo e energia são gastos em rebater as bolas que jogam em você. Deste modo, você não consegue tomar nenhuma decisão ou fazer qualquer outro movimento. Também não consegue planejar sua vida ou construir um projeto. É uma comparação tosca, mas fácil de entender. É assim que o governo Bolsonaro tem usado o poder para controlar o conteúdo dos dias e impedir a disputa política legítima das ideias e projetos.” – Eliane Brum em EL PAÍS Brasil.

2. Eichmann deve morrer na forca? – A resposta de Hannah Arendt

Neste tristes tempos sombrios em que nos foi dado viver, torna-se crucial questionar o que devemos fazer contra aqueles que, hoje, mostram-se, tal como Eichmann, como agentes da banalidade do mal. Bolsonaro, ao ser eleito, cessou de ser o paspalhão meio cômico, uma espécie de versão fascista do Tiririca, e passou à condição de potencial genocida, já que lhe entregaram poder em demasia de controle do Estado.

De um ridículo velho racista e misógino, celebrado por alguns psicopatas idólatras como “Mito”, ele se alçou a fenômeno de massas, subindo nas asas das fake news, do antipetismo e da venda de soluções fáceis pra problemas complexos. Fazendo arminha à torto e a direita, ensinando crianças os gestos bélicos, denunciando adversários pelas lendárias mamadeiras de pirocas e kits gay, o campo Bolsonarista surfou na onda de ridículo e grotesco que ele criou.

Partícipe e cúmplice do golpe de Estado de 2016, Bolsonaro chegou pra explicitar a face sórdida do golpismo nacional: uma “gente careta e covarde”, como cantava Cazuza, que mobiliza solidariedades somente usando o cimento do ódio. Uma gentalha que dissemina mentiras para assassinar reputações – Manu veste camiseta “Jesus é travesti!”; Jean Wyllys é um pedófilo! Marielle Franco defendia traficantes de entorpecentes! Lula e Dilma são os cabeças do maior esquema de corrupção da História do Mundo!…

Não é nova a noção de que o governo deve construir seu poder sobre a mentira – a pia fraus que, na obra de Platão, já é mobilizada como instrumento do filósofo-rei em seu controle da pólis: na Politéia, Sócrates faz-se o porta-voz de uma espécie de “despotismo esclarecido” que se permite a utilização de uma “fraude pia” para o consumo das massas.

Mas o Bolsonarismo leva a noção de “governo da mentira” a outro patamar, pois quer praticar também o assassinato da memória através de sua re-escritura: assim como há historiadores negacionistas do Holocausto, como David Irving, confrontado brilhantemente por Deborah Lipstadt, há no Brasil os que desejariam escrever a nossa História negando as atrocidades cometidas por agentes do Estado durante a ditadura militar. Ustra será herói nacional, Paulo Freire perderá a posição como Patrono da Educação Brasileira para o tão maior Olavo de Carvalho, o golpe de 1964 terá sido uma revolução nacionalista (nada a ver com os EUA, a CIA, aquilo tudo que está no doc O Dia Que Durou 21 Anos) para nos salvar do vírus comunista que estava nos transformando numa nova Cuba…

O vazio de proposta, a ausência de utopia e a baixa capacidade ética e cognitiva marcam este desgoverno Bolsonarista, mas eles conseguem nos manter “entretidos” por suas patifarias, por sua capacidade infinita de produzir monstruosidades, pois no fundo encenam algo de quixotesco, algo de bastante ridículo. Vocês já notaram o quanto homenzinhos másculos e covardes, belicosos e estúpidos, como Hitler, Franco, Mussolini, Pinochet, Pol Pot, Bolsonaro, são sempre algo ridículos para quem quer que os enxergue com lucidez? São palhaços perigosos, e suas piadas às vezes só tem graça pra uma platéia que é tão chucra quanto eles.

O machista ri da piada machista, o racista da injúria racial fantasiada de anedota. Esta identificação idólatra que leva um sujeito submetido a cair de joelhos e lamber as botas – “meu Mito! meu querido Subjugador!” – só se processa caso não se perceba o ridículo das poses fascistas. Não se segue com subserviência um líder percebido como ridículo, ou seja, só digno de nossa insolência e desobediência! Posudos, posers, cheios de empáfia, atores escrotos de uma peça ruim, assim são os líderes fascistas quando debaixo dos holofotes midiáticos. Só dignos de que os denunciemos em coro por seus atentados contra a dignidade humana, cuja essência está em sua diversidade.

O antídoto contra as atrocidades de que o século XX foi repleto, ensina Arendt, é reflexão, responsabilidade, exercício autônomo do juízo. Em sua reportagem Eichmann em Jerusalém, ela faz um epílogo que ainda tem muito a dizer a nosso tempo. Hannah aí confessa que quis escrever o livro para sondar “em que medida a corte de Jerusalém esteve à altura das exigências da justiça” (p. 322). E um dos aspectos mais interessantes da obra é descobrir que, em seu cerne, cintila o questionamento: “Eichmann deveria mesmo ter morrido na forca? O Tribunal de Jerusalém cumpriu com o dever de Justiça ao condená-lo à morte?”

O debate filosófico sobre a pena de morte possui um dos seus ápices, no século XX, nas interações entre Albert Camus e Arthur Koestler, mas a obra que nasce daí – Reflexões Sobre a Pena Capital -, por mais brilhante que seja, passa ao largo do problema que Arendt decide enfrentar. Pois o Holocausto, a Shoah, é um crime sem precedentes. E os criminosos eram sujeitos diferentes de quaisquer outros criminosos já julgados em um aspecto: pareciam agentes de uma engrenagem que os transcendia. Eichmann, talvez querendo comprar um pouco de crença em sua inocência, dizia que estava só cumprindo ordens. Just a pawn in their game, como cantará Dylan. E, no entanto, Arendt exerce a fundo seu juízo e conclui: sim, há sim boas razões para enforcar Eichmann.

Camus, em O Homem Revoltado, também sondou o abismo da questão: existe um assassinato legítimo, por exemplo no caso de um tiranicídio? O problema de Arendt é outro: temos direito, nós enquanto comunidade de vítimas, enquanto judeus sobreviventes do massacre, condenar à morte um alto funcionário da maquinaria assassina nazista, um perpetrador de “massacres administrativos”? Já sabemos a resposta: Hannah Arendt não se opõe a que o tribunal de Jerusalém condene Eichmann a morte. Assim como outros líderes nazistas haviam sido nos trials de Nuremberg.

O que haveria de surpreendente na atitude da judia alemã que, sobrevivendo ao massacre através de seus exílios, exerce seu juízo ético para justificar a punição capital para um dos agentes supremos da Solução Final? Eichmann, para Arendt, é visto não como irresponsável, mas sim como responsável e punível por ter participado, por sua irreflexão, na cruel engrenagem da banalidade do mal. Se Eichmann pode ser condenado à morte, é pois antes ele foi um agente da condenação em massa de outros à morte, ele foi um agente do extermínio da pluralidade que constitui a essência da humanidade; assim, “o agente é um ofensor à ordem do mundo como tal. Para usar outra das metáforas de Jesus: ele é como a erva daninha, ‘o joio no campo’, com o qual nada se pode fazer exceto destruí-lo, queimá-lo na fogueira” (ARENDT, Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 192).

Arendt, ainda que não aplauda a pena capital, neste caso a aceita, justificando sua posição nas palavras que encerram este livro fundamental do século XX. Ela diz: “se é verdade que a justiça não deve ser apenas feita, ela deve ser vista, então a justiça do que foi feito em Jerusalém teria emergido para ser vista por todos se os juízes tivessem a ousadia de se dirigir ao acusado em algo como os seguintes termos”:

Hannah Arendt em 1941. Retrato por Fred Stein (1909-1967)

“Você, Eichmann, admitiu que o crime cometido contra o povo judeu durante a guerra foi o maior crime na história conhecida, e admitiu seu papel nele. Mas afirmou nunca ter agido por motivos baixos, que nunca teve inclinação de matar ninguém, que nunca odiou os judeus, que no entanto não poderia ter agido de outra forma e que não se sente culpado. Achamos isso difícil, mesmo que não inteiramente impossível, de acreditar… Você disse também que seu papel na Solução Final foi acidental e que quase qualquer pessoa poderia ter tomado seu lugar, de forma que potencialmente quase todos os alemães são igualmente culpados.

O que você quis dizer foi que onde todos, ou quase todos, são culpados, ninguém é culpado. Essa é uma conclusão realmente bastante comum, mas que não estamos dispostos a aceitar. E se não entende nossa objeção, recomendaríamos à sua atenção a história de Sodoma e Gomorra, duas cidades bíblicas que foram destruídas pelo fogo do céu porque todo o povo delas havia se tornado igualmente culpado.

Isso, incidentalmente, nada tem a ver com a recém-nascida idéia de ‘culpa coletiva’, segundo a qual as pessoas são culpadas ou se sentem culpadas de coisas feitas em seu nome, mas não por elas — coisas de que não participaram e das quais não auferiram nenhum proveito. Em outras palavras, culpa e inocência diante da lei são de natureza objetiva, e mesmo que 8 milhões de alemães tivessem feito o que você fez, isso não seria desculpa para você.

Felizmente não precisamos ir tão longe. Você próprio não alegou a efetiva, mas apenas a potencial culpa da parte de todos que vivem num Estado cujo principal propósito político se tornou a perpetração de crimes inauditos. E a despeito das vicissitudes exteriores ou interiores que o levaram a se transformar em criminoso, existe um abismo entre a realidade do que você fez e a potencialidade do que os outros poderiam ter feito. Nós nos ocupamos aqui apenas com o que você fez, e não com a natureza possivelmente não criminosa de sua vida interior e de seus motivos, nem as potencialidades criminosas daqueles a sua volta.

Você contou sua história como uma história de dificuldades e, sabendo das circunstâncias, estamos até certo ponto dispostos a admitir que em circunstâncias mais favoráveis é altamente improvável que você tivesse de comparecer perante nós ou perante qualquer outra corte criminal. Suponhamos, hipoteticamente, que foi simplesmente a má sorte que fez de você um instrumento da organização do assassinato em massa; mesmo assim resta ofato de você ter executado, e portanto apoiado ativamente, uma política de assassinato em massa.

Pois política não é um jardim-de-infância; em política, obediência e apoio são a mesma coisa. E, assim como você apoiou e executou uma política de não partilhar a Terra com o povo judeu e com o povo de diversas outras nações — como se você e seus superiores tivessem o direito de determinar quem devia e quem não devia habitar o mundo —, consideramos que ninguém, isto é, nenhum membro da raça humana, haverá de querer partilhar a Terra com você. Esta é a razão, e a única razão, pela qual você deve morrer na forca.”

ARENDT, HannahEichmann Em Jerusalém. Cia das Letras, pg. 300 a 302. Consulte o PDF.

A tarefa de nosso tempo foi sintetizada por Adorno: evitar que Auschwitz se repita. Quem hoje não souber se responsabilizar, assumir o trabalho da reflexão autônoma e do juízo justo, terá as mãos sujas de sangue alheio tanto quanto os carrascos – pois os cúmplices (ainda não aprendemos?) também tem sua responsabilidade nas atrocidades. O que importa é evitar que Bolsonaro se transforme numa espécie de Hitler tropical, praticando a necropolítica do extermínio em suas ações contra pretos, mulheres, petralhas, gays, sem-terras, sem-teto, professores esquerdistas, paulo-freirianos, gramscianos, marxistas, que poluem o mundo com sua escória e agora serão varridos pela ação profilática da Raça Neo-Ariana.

É a velharia velhaca da pretensa supremacia branca de volta com todo seu racismo explícito. É a velha macheza patriarcal que subjaz, como atmosfera afetiva, aos feminicídios e aos homicídios homofóbicos. É a velhíssima crueldade das elites econômicas contra a massa espoliada. É a velha submissão ao capital estrangeiro e às seduções do conforto conformista de se submeter a ser teleguiado de fora, pela metrópole rica e sábia… Só que não: Trump não passa de outro fascistinha com dinheiro demais no banco. E o capitalismo neoliberal afunda-se no pântano sem fundo de sua própria catástrofe, coveiro de si mesmo como já previam Marx e Engels.

O que estamos vendo é o processo infindável do capitalismo a cavar sua própria cova. Ele consegue sempre que o buraco seja mais embaixo. Nosso buraco se chama Bolsonaro, mas também ele, como indivíduo, vai passar. Em algumas décadas o cadáver de Bolsonaro já estará decomposto. O que nos importa agora é lidar com o legado que ele vai deixar. É nossa tarefa histórica impedir que seja um legado de estrago. E a tudo estragar ele e sua trupe estão determinados. Não será fácil, como nunca foi, para aqueles que Brecht diz que “lutam a vida toda” e são por isso os “imprescindíveis”. Responsabilidade, afinal, é aquilo que é imprescindível para a experiência autêntica da ética vivida, é estar acordado para o fato de que “ninguém vive só nem para si” – como já dizia o poeta William Blake.

“Toda geração”, escreve Arendt, “em virtude de ter nascido num continuum histórico, recebe a carga dos pecados dos pais assim como é abençoada com os feitos dos ancestrais” (Eichmann em Jerusalém, p. 321). Um pensamento similar também se expressa nos textos fundadores do marxismo: “a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.”

Não há dúvida que, entre nós, a ideologia Bolsonarista e suas atrozes práticas conexas representam o que de pior nos legou a nossa sacrossanta tradição. Em Bolsonaro, como pústulas pululam as tradições nacionais: machismo patriarcal, homofobia violenta, supremacismo racista, elitismo anti-massas, economia ultracapitalista neoliberal ligada a caretice nos costumes, autoritarismo mandonista, aniquilação da alteridade e da diversidade (tanto a humana, quanto a de fauna e flora; é epistemicídio, etnocídio e genocídio no mesmo pacote com a hecatombe ambiental).

Talvez esta seja, na terra brasilis circa-2019, a melhor encarnação contemporânea da necropolítica e suas ânsias de extermínio (não tenham dúvidas: “o sonho ideal” dos Bolsonaristas é um mundo purgado, pela violência das armas, das hordas bárbaras de petistas, psolistas, esquerdistas, mariguellistas, guevaristas, marxistas etc…).

Muito do que tenho escrito reflete minhas angústias diante da questão que não quer calar: como podem os filósofos contribuir não só para a compreensão disso de que somos contemporâneos, mas também para a transformação sábia da existência que é a indestrutível missão secular da filosofia? Em outros termos, será que os filósofos não podem justamente ajudar a coletividade a perceber os perigos que perpassam o colapso da reflexão, da autonomia, da responsabilidade?

A lição de Arendt que poucos tiveram a coragem de ouvir é a de que não se deve tolerar os intolerantes, nem perdoar os genocidas. Nem encontrar desculpas no “meio” ou nas “circunstâncias” para lidar com misericórdia e complacência aqueles que são perpetradores e cúmplices das barbaridades praticadas pelas engrenagens que banalizam o mal.

Quem está com o fascismo, está com a morte cruel imposta às massas de colorida alteridade, marcadas como indigna de viver por pertenças de raça, classe ou gênero (o eixo articulador da Opressão, ensinam as teóricas da Interseccionalidade, é o tripé do opressor: racismo, classismo, sexismo). Sob o fascismo, a Diversidade é o “cabra marcado pra morrer”.

Quem é cúmplice do extermínio da pluralidade constitutiva do mundo não merece, daqueles que em carne viva compõe a teia vivente desta pluralidade humana, nenhuma complacência, mas sim toda resistência ativa e combativa, toda ação por mudança (inclusive de mentes alheias). Pois queremos um mundo onde caibam todos os mundos. Todas as cores e ritmos. Todas as peles e ideias. Menos as que aniquilam a própria diversidade.

Responsáveis agem; ovelhas passivas obedecem – ainda que o pastor esteja ordenando que se taquem de cabeça no abismo. Responsáveis seremos apenas quando assumirmos a ação coletiva, no mundo comum, coordenada e baseada nos Kropotkinianos preceitos da ajuda mútua, em que expressaremos que não toleraremos tal grau de intolerância, que nosso neo-iluminismo não deixará quieta esta nova maré alta do obscurantismo, que com todo nosso amor ao mundo e a nós dentro dele, em nosso colorido multidiverso, batalharemos com todo o nosso alento e ímpeto para que cessem de triunfar os exterminadores da diversidade e os silenciadores dos dissensos.

Democracia é a sábia permissão ao dissenso dialogado no horizonte de uma reflexão coletiva sobre o bem comum; Ditadura é a imposição, de cima pra baixo, dos valores, normas e hierarquias de uma minoria minúscula que trabalha pelo extermínio da diversidade. De que lado você está? Com os que se levantam juntos por um possível melhor futuro, ou com os que se ajoelham sobre as poças de sangue que derramaram em gangue?

-Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 16/04/2019

 

EPÍLOGO: UMA SÁBIA CANÇÃO RECÉM-NASCIDA DE CEUMAR

 

SIGA EXPLORANDO:

O TRIUNFO DE TÂNATOS: O fascismo Bolsonarista como encarnação da Necropolítica

Em artigo publicado no The New York Times intitulado Bolsonaro representa o passado colonial do Brasil, a historiadora Lilia M. Schwartz escreve um resumo de nossa tragédia: em 2019, o Brasil terá como novo presidente um “militar retirado, homem branco e ideologicamente conservador, que chega ao poder respaldado pela Igreja evangélica e não esconde suas ideias homofóbicas, machistas e racistas.”

Bolsonaro, sabemos, é um defensor da tortura e dos grupos de extermínio, idolatra figuras como Brilhante Ustra e Duque de Caxias, elegeu-se prometendo “fuzilar a petralhada”, tipificar como “terroristas” os movimentos sociais (MST, Levante Popular da Juventude, Frente Povo Sem Medo, MTST, Ninja, entre outros) e fez mais:  prometeu que os policiais militares poderão matar geral com certeza de impunidade. E isso não apenas na ação em favelas e periferias, mas também na repressão e silenciamento de manifestações cívicas, ocupações estudantis, assembleias populares, assentamentos e acampamentos de ativistas da moradia ou da reforma agrária etc. 

Até mesmo uma espécie de expurgo dos professores tidos como “esquerdistas”, “socialistas”, “comunistas”, “petralhas”, está em curso com o empoderamento da proposta do Escola Sem Partido, mais conhecido como Escola Com Mordaça e Censura. O Estado autoritário, como nos ensinam os grandes historiadores e pensadores do fenômeno totalitário, não consegue suportar a multiplicidade humana, sente-se tragado pela necropolítica, que nada mais é do que o culto da violência assassina como instrumento para purgar uma coletividade daqueles de seus membros componentes que são tidos como extermináveis.

Esse pessoal do “Deus acima de todos, Brasil acima de tudo”, que são os descendentes dos TFPistas – Tradição, Família, Propriedade! – está olhando para o Brasil como um local repleto de gente que não merece viver e que é preciso “varrer” da face da Terra. Isso é o triunfo de Tânatos, a vitória parcial das intolerâncias assassinas que aniquilam nossa riqueza maior, que é a sociobiodiversidade, chave de nossa sobrevivência futura.

Pior: idolatrado por aqueles que se põem de joelhos diante dele como se fosse o Messias, quando evidentemente se parece muito mais com a Besta do Apocalipse, o mito-que-mente é também a encarnação da promessa de morte. Morte às mancheias. Estúpida necropolítica. Propondo que uma das chaves de leitura para a ascensão da extrema-direita e o fenômeno do Bolsonarismo esteja na sexologia política, Márcia Tiburi escreve, na Revista Cult, estes diagnósticos sobre o avanço do fascismo entre nós:

Ilustração retirada de Jornal 4 Cantos. Autor desconhecido.

“Conscientemente, os cidadãos e cidadãs escolheram em nível federal e em alguns estados, como o Rio de Janeiro, aquele que vai realizar a ideia de que “bandido bom é bandido morto”. Escolheu-se alguém que promete a morte alheia. No entanto, inconscientemente, o que se escolheu é realmente matar.

Quando alguém vota ou apoia um candidato, sempre o faz esperando que o Estado realize aquilo que cada um faria se estivesse no lugar do governante. Assim, quando se vota em alguém que promete escolas, é porque também faria escolas. E quando se vota em quem promete matar, concorda-se com o ato de matar. Apoiando um candidato, apoia-se o seu projeto.

(…) Não há nenhuma garantia de que o candidato eleito não vá cumprir suas promessas. Nesse sentido, essa crença de que ele não vai fazer o que promete não apenas acoberta como também justifica a escolha, liberando da responsabilidade e da culpa que há de vir sobre as mortes prometidas…” – Revista CULT

O projeto do fascismo Bolsonarista é necropolítica pura e um dos melhores pensadores para explicar estes nossos tempos sombrios é Achille Mbembe. Lançado pela n-1 edições, o livro Necropolítica é, antes de mais nada, um testemunho do poderio de Tânatos – e que Eros se cuide.

Se pensarmos nos campos de concentração e extermínio, tais como ocorreram durante o III Reich alemão ou durante o período das gulags na URSS stalinista, como se fossem itens de museu, entidades já aposentadas da história, estaríamos sendo ingênuos.

Para compreender a contento o imbróglio da realidade sócio-política brasileira, unindo a filosofia política de Foucault e de Arendt com a psicologia social de Milgram e Fromm, é preciso pensar sobre o modo como a biopolítica se ancora na condição humana do nosso presente histórico.

Em termos mais concretos, isso significa compreender como nascem, crescem, decaem e morrem as sociedades geridas por um Estado Autoritário que, ao invés de conceder à todos os humanos o mesmo valor – a igualdade, valor perene da política desde suas fontes no demos de Atenas – trata de cindir a Humanidade entre os que devem seguir vivendo e os que podem e devem ser assassinados. É este o significado profundo da palavra “faxina” na boca de Bolsonaro: é uma promessa de extermínio.

Seria também ingênuo pensar que se trata somente de um falastrão, que não irá cumprir o que anunciou. Estamos diante da emergência, mais uma vez, da Banalidade do Mal analisada por Arendt e renovada por Achille Mbembe. A soberania estatal se manifesta como direito de matar quando se constitui esta “governança biopolítica” típica, por exemplo, do III Reich nazi, com seu Estado racista, assassino e suicidário (MBEMBE, 2018, pg. 19).

Segundo Foucault, o biopoder, para dividir a população entre os que devem viver e os que devem morrer, pratica cesuras biológicas, instaura apartheids entre as vidas diferencialmente classificadas e rotuladas, e isso implica que o racismo tem nesses sistemas políticos uma função fundamental e estruturante: “o racismo é a condição para a aceitabilidade do fazer morrer” (FOUCAULT, apud Mbembe, p. 18). Como explica em suas palavras Achille Mbembe, a função do racismo é “regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado.” (op cit, p. 18)

Acredito eu que um dos maiores benefícios que há na convivência com a obra Necropolítica está nos vínculos que Mbembe estabelece entre o totalitarismo e o colonialismo. Hitler não tirou nada do nada, ele pôde se inspirar no que fazia o imperialismo europeu em suas colônias asiáticas e americanas. O Império Britânico praticando o apartheid na África do Sul estava fornecendo, há séculos, muita “inspiração” para os Mussolinis, os Francos, os Hitlers e os Stálins do Velho Mundo… O Império Francês, massacrando os argelinos que lutavam por sua libertação e independência, também re-editava táticas nazi-fascistas, ou seja, praticando o extermínio de populações guetificadas.

O gueto de Varsóvia, repleto de judeus rodeados por ferozes antisemitas com poder de Estado para exterminá-los, hoje faz eco e suscita a analogia com os guetos na Faixa de Gaza e na Cisjordândia, repletas de palestinos que estão rodeados por ferozes sionistas com poder de Estado para exterminá-los (e hoje a máquina de guerra de Israel é totalmente apoiada pelo armamentismo dos EUA, a maior potência bélica do planeta). Diante disso, alguns dos maiores filósofos africanos, como Mbembe, Camus, Fanon, insistem em destacar a complexidade dos fenômenos conexos à revolta do ser humano contra aquilo que o oprime.

Em Os Condenados da Terra, Fanon põe sua prosa cáustica e irônica no retrato da “cidade do colonizado”, “um lugar de má fama, povoado por homens de má reputação”: “Lá eles nascem, pouco importa onde ou como; morrem lá, não importa onde ou como. É um mundo sem espaço; os homens vivem uns sobre os outros. A cidade do colonizado é uma cidade com fome, fome de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma vila agachada, uma cidade ajoelhada.”

No cenário contemporâneo, a Palestina ocupada pelas tropas do sionismo israelense fornece o exemplo mais claro da necropolítica em ação. Mbembe cita as várias táticas do Estado sionista para praticar uma “sabotagem orquestrada e sistemática da rede de infraestrutura social e urbana do inimigo”, incluindo a técnica do bulldozer, que visa a produzir a “terra arrasada”:

“demolir casas e cidades; desenraizar as oliveiras; crivar de tiros tanques de água; bombardear e obstruir comunicações eletrônicas; escavar estradas; destruir transformadores de energia elétrica; arrasar pistas de aeroporto; desabilitar transmissores de rádio e televisão; esmagar computadores; saquear símbolos culturais e político-burocráticos do Proto-Estado Palestino; saquear equipamentos médicos. Em outras palavras, levar a cabo uma guerra infraestrutural.” (Mbembe, 2018, p. 47)

A necropolítica impõe a suas vítimas um regime de terror – típico do escravismo mas também dos regimes coloniais contemporâneos – onde está vigente uma total ausência de liberdade para os oprimidos e dominados.

“Viver sob a ocupação contemporânea é experimentar uma condição permanente de ‘viver na dor’: estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo lugar; construções que trazem à tona memórias dolorosas de humilhação, interrogatórios e espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de milhares de pessoas em suas casas apertadas todas as noites do anoitecer ao amanhecer; soldados patrulhando as ruas escuras, assustados pelas próprias sombras; crianças cegadas por balas de borracha; pais humilhados e espancados na frente de suas famílias; soldados urinando nas cercas, atirando nos tanques de água dos telhados só por diversão, repetindo slogans ofensivos, batendo nas portas frágeis de lata para assustar as crianças, confiscando papéis ou despejando lixo no meio de um bairro residencial; guardas de fronteira chutando uma banca de legumes ou fechando fronteiras sem motivo algum; ossos quebrados; tiroteios e fatalidades – um certo tipo de loucura.” (Mbembe, op cit, p. 69)

Que a descrição de Mbembe seja baseada na realidade dos palestinos em Gaza não impede que este cenário de necropolítica seja transposto para outros cenários, inclusive latino-americanos: as favelas do Rio de Janeiro, que hoje são o epicentro de uma tragédia sócio-cultural de significância história e global, são uma das mais colossais manifestações, sobre a face do planeta terra, daquilo que Mike Davis batizou de Planet of Slums. 

Dentro do Planeta Favela – aquilo que pariu a prodigiosa gênia da música popular brasileira e mundial, Elza Soares, a diva de ébano e a nossa Nina Simone -, o Rio de Janeiro é hoje um nó górdio de tensões e enfrentamentos que agora ameaça explodir rumo a um cenário de aberta guerra civil. A necropolítica do fascismo Bolsonarista irá demonstrar sua faceta mais cruel aí, sobretudo, utilizando-se da Guerra às Drogas como instrumento de justificação de morticínios e carnificinas que já estão em curso há décadas, mas que agora tendem a se intensificar com um governo federal dominado pela extrema-direita.

As favelas são como esta “cidade do colonizado” de que fala Fanon, são uma espécie de Palestina incrustrada em pleno território do Brasil, onde Estado racista-fascista pratica a redução da população ali guetificada a um status de subhumanidade. Assim como nos campos de concentração e extermínio do III Reich, as favelas são tidas por alguns fascistas-racistas empoderados, dentro do Estado brasileiro hoje amplamente capturado pela Direita autoritária, como local onde pode estar vigente uma “condição inumana”. São espaços sociais que os agentes do Estado totalitário enxergam como infestados por criaturas subhumanas, subcidadãos.

Aquilo que Jessé Souza chama de produção social da subcidadania, e que Agamben conceituou sob o conceito de homo sacer (vida nua), é também o tema de Mbembe, estudioso do Estado de Exceção. Nas favelas, na Palestina, nos campos de concentração, nos gulags, o Estado de Exceção é algo permanente – ali, quase não há vigência do mítico Estado Democrático de Direito.

O Estado de Exceção é o reinado da desrazão, da lei do mais-forte, ou seja, do mais armado, do que tem a bazuca mais destrutora ou o comportamento mais agressivo. Uma espécie de legislação tosca, animalesca, típica dos gorilas. No Brasil, durante a Ditadura Militar, era com o apelido nada carinhoso de gorilas que referia-se, em várias organizações de combate ao regime autoritário ilegalmente instaurado com o golpe de Estado de Março/Abril de 1964, aos agentes do estado que eram militares e agiam como torturadores, estupradores e assassinos.

Não só os gorilas seguem entre nós, como prosseguem praticando a necropolítica. Marielle Franco é, neste ano de 2018, o trágico destino que ilustra de maneira mais emblemática o triunfo (que é nossa tarefa coletiva lutar para que seja provisório) da necropolítica.

“Em meio à desesperança e ao sentimento de impotência que tentam se impor desde que nos arrancaram à força da bala essa gigante chamada Marielle Franco, toda uma sociedade busca se reestruturar. É um doloroso caminho transformar luto em luta e seguir lutando e enxugando as lágrimas.

A urgência de luta da mulher negra estava expressa também nas movimentações da parlamentar, eleita com mais de 46 mil votos na cidade do Rio de Janeiro.

A urgência de mover estruturas, gritando aos quatro ventos o que sofre, esperando que, na possibilidade de ser ouvida, muitas vidas se transformem. É o que nos move cotidianamente e em cada espaço que transitamos. É por isso que revisitar o percurso teórico e metodológico proposto por Marielle nos dá acesso a um registro único do que significa a militarização da vida nos territórios favelados.”

A vida de Marielle nos foi roubada pela política dos gorilas, uma gigante da sociologia e do ativismo foi excluída brutalmente da vida por aqueles que poderíamos chamar, com Bob Dylan, de “Masters of War”, se não tivéssemos uma expressão muito mais próxima de nós, e que nós foi concedida pelo próprio General Mourão e pelo próprio ex-capitão Jair Bolsonaro: eles são os “profissionais da violência”.

O modelo mais óbvio do que será a governança Bolsonarista está, em especial devido aos poderes concedidos ao superministro Paulo Guedes, na ditadura militar chilena, instituída com o golpe de Estado que derrubou o governo socialista democrático de Salvador Allende, que havia governado o Chile entre 1970 e 1973. A ditadura, encabeçada por Pinochet, foi radicalmente neoliberalizante em economia, ou seja, escancarou as fronteiras do Chile para a entrada de empresas transnacionais, sobretudo aquelas sediadas nos EUA.

No Brasil que se delineia a partir de 2019, a ditadura neoliberal ganha certos contornos teocráticos vinculados ao movimento evangélico neopentecostal, que avançou enormemente em sua captura de corações e mentes em relação ao outrora hegemônico catolicismo. Boa parcela dos cristãos brasileiros, talvez sua maioria, estão mais propensos a aderir à Extrema-Direita do que à Teologia da Libertação; tem mais gente seguindo Olavo de Carvalho do que jurando aliança com o pensamento e a práxis de um Frei Betto ou Leonardo Boff.

Pior que isso: tem gente demais com total credulidade diante de memes fake que circulam no Whatsapp, impulsionados por capital empresarial não declarado ao TSE (caixa 2, prática ilegal), o que mostra que a necropolítica fascista hoje hackeia o que há de mais hitech no âmbito da mídia de massas digital na era do celular e da internet. Tem meme demais pregando que bandido bom é bandido morto, e que o PT é uma organização criminosa, e que o MST é um grupo terrorista, e que Haddad quer legalizar a pedofilia, o incesto e a pregação do homossexualismo para as nossas pobres criancinhas. 

É tanta mentira que o povo Bolsominion parece não enxergar que é verdade: sequestrando crianças para o palanque, para espetáculos de horrenda demagogia, Bolsonaro ensinou crianças o gesto de atirar um arma de fogo, enquanto sugeriu que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) fosse rasgado e “jogado na latrina”. Esse é o monstro que vocês alimentaram e empoderaram, eleitores do Coiso!

Tudo isso desenha um cenário pavoroso, horripilante, de censura e cerceamento contra artistas, professores, jornalistas, ativistas, lideranças juvenis, quilombolas e indígenas. Trata-se do silenciamento autoritário da diversidade social que, em uma democracia autêntica, é justamente aquilo que nos consagramos para que floresça. Os gorilas querem pisotear com seus tanques e tropas todo o salutar florescimento de nossa plural diversidade.

Se Pinochet é o “modelo de tirano” do passado que Bolsonaro/Guedes usam como espelho, como ditador a mimetizar, não faltam aqueles que localizam no presente histórico um sujeito que, como chefe-de-Estado, tem muitas analogias com Bolsonaro: é Duterte, presidente das Filipinas. Por lá, Duterte utiliza-se da “Guerra às Drogas” como instrumento principal de sua necropolítica, e nós sabemos bem que isso também acontece no Brasil e agora tende a piorar. É o que indicam relatórios de organizações como Anistia Internacional e as pesquisas de antropológos, criminalistas e cientistas sociais como Luiz Eduardo Soares.

Com esta “triste escolha” – a eleição de um fascista, racista, misógino, homofóbico, elitista, armamentista e projeto de brutal ditador como Jair Bolsonaro – o Brasil se torna um dos epicentros globais de um experimento de necropolítica encabeçado pela extrema-direita. Empoderada nos EUA de Trump, na Turquia de Erdogan, nas Filipinas de Duterte, esta ditadura neoliberal e teocrática à brasileira vem para instaurar um pesadelo para os direitos humanos, ameaçados de entrar em total colapso diante da disseminação do terrorismo de Estado – ou seja, do “estado de exceção” transformado em prática permanente. A regressão coletiva rumo à guerra de todos contra todos Hobbesiana. A guerra civil. Que já explode desde o Rio, epicentro dessa épica e colossal tragédia.

A necropolítica, acredito, está muito conectada com um certo fundamentalismo religioso, uma adesão fanática a uma fé que faz morte uma figura da redenção, porta de entrada para um possível paraíso, e por isso sacralizada pelo jihadista, pelo kamicase, pelo homem-bomba, mas também por aquele que, metido a messias, pretende redimir os pecados do mundo pelo uso da violência.

O culto da violência misturado ao fanatismo religioso é algo que dá contornos também de épico religioso a nosso drama nacional – e o que vem à memória é o massacre final de Antonio Conselheiro em Canudos, a chacina dos trabalhadores rurais sem Terra em Eldorado dos Carajás, a matança de presos no Carandiru ou as recorrentes carnificinas nas favelas do Rio como emblemas do que está por vir. Estejam certos que todas as vossas Bíblias estão e estarão sujas de muito sangue humano derramado sem razão.

Sou ateu de todo e qualquer deus… mas que há Bestas do Apocalipse, isso há, não há como negar!

Sou ateu de todo e qualquer messias… mas que há Messias mais falsos do que outros, isso há, ah como isso há!

Sempre achei besteira imaginar o diabólico como algo sobrenatural, sendo tão óbvio que o âmbito terreno é onde ele exerce o seu domínio, a sua ação incansável, o satânico trabalho de separar, desunir e entregar a Tânatos a carne pulsante dos vivos para que ele os triture. Mas Eros, triturado, assim como Dionísio sempre dilacerado, há de renascer, à la Fênix, de todas as cinzas.

“Pois os tais são falsos apóstolos, obreiros fraudulentos, disfarçando-se em apóstolos de Cristo. E não é de admirar, porque o próprio Satanás se disfarça em anjo de luz. Não é muito, pois, que também os seus ministros se disfarcem em ministros da justiça.” (2) Coríntios 11:13-15

É verdade: o inverno é deles. Mas a primavera será nossa.



NA LIVRARIA A CASA DE VIDRO, ADQUIRA:

A extrema-direita fascista e nosso colapso civilizacional: sobre o delírio coletivo que se apossa do Brasil

Estamos doentes. Não sei se encontraremos a cura a tempo. A maioria dos eleitores do Brasil continua sem enxergar o horror de nossa própria desumanização.

É chocante testemunhar quando uma parcela tão grande de um povo caminha, como um rebanho de ovelhas subservientes a um pastor insano, rumo ao sacrifício grotesco de todos os valores humanos que, desde o Iluminismo, fazem parte do que se considera uma convivência civilizada.


Neste cartaz, com design de Rodrigo Nunes, temos uma coletânea de frases do candidato Jair Bolsonaro. Diante delas, em qualquer situação histórica normal, seria desnecessário explicar aos cidadãos de qualquer país que não estivesse doente, alucinado, em estado grave de “psicopatização” (Maria Rita Kehl), o porquê é uma atitude inaceitável, irracional, temerária e auto-destrutiva, para qualquer povo, escolher para si mesmo o jugo de um tirano impiedoso e sanguinário.

Mas não estamos em uma situação histórica normal, mas sim numa daqueles épocas de insanidade coletiva em que não se enxerga o óbvio, em que os lúcidos não são ouvidos, onde os alertas batem em ouvidos trancados. A disseminação de fake news plantou tanto ódio e paranóia antipetista que a capacidade de reflexão e juízo de dezenas de milhões de brasileiros está profundamente comprometida.

Hoje, há multidões inumeráveis de Bolsonaristas que estão profundamente convictos de que o melhor caminho para a pátria é entregar o leme do cargo supremo do Executivo Federal a um sujeito desequilibrado e violento, que entre suas promessas de campanha fala em “fuzilar a petralhada”.

Entre nós, isso não causa mais choque. É “normal” que um candidato prometa o genocídio de seus adversários durante uma eleição num país que ainda seria, ao menos formalmente, uma democracia. Ao invés de repúdio geral da população por suas posturas de desprezo completo pelo jogo democrático, o facínora recebe os urros de celebração de uma horda de fanáticos a cada declaração racista, truculenta, militarista, pró-chacina, que profere de maneira irresponsável e inconsequente.

No Brasil, o sadismo tornou-se um fenômeno de massas: os eleitores do Bozo gozam perversamente com o sofrimento alheio, deleitam-se com as violências racistas, homofóbicas, misóginas e belicistas proferidas por aquele que chamam Mito.

E muitos Bolsominions já agem de acordo com os ditames de seu führer – o assassinato a facadas de Moa do Catendê, mestre de capoeira, não é um caso isolado. Houve o sequestro de uma garota para impor a ela a tatoo horrenda de uma suástica. Houve espancamento de estudante pelo “crime” de vestir um boné do MST. Aonde vamos parar? Hoje, se eu sair na rua com uma camiseta vermelha com estampa Lula Livre, corro o risco de não voltar vivo para casa. É esse o país que queremos?

Nunca pensei que viveria para testemunhar meus concidadãos descendo a tal nível de baixeza ética e cognitiva a ponto de se tornarem os servis propagadores de sórdidas mentiras – como aquela, disseminada para milhões de pessoas, que afirma que Haddad iria legalizar a pedofilia. É tão evidente que isso é uma mentira deslavada, é tão explícito que se trata de uma suja difamação sem nenhum ponto de contato com a realidade, que fico me perguntando qual a motivação afetiva por trás da colaboração ativa de tantos cidadãos na disseminação de absurdos como esses.

O Bolsonarismo apela para o que há de mais ignóbil e sórdido nas pessoas: o sadismo delas, o desejo de rebaixar o outro, o gosto pela humilhação e pela sub-humanização da alteridade que difere da norma que se coloca dogmaticamente como sagrada (a norma do homem, branco, cis, hetero, rico, conservador, tradicionalista, que vai trucidar tudo que se desvie disso.)

Suspeito que só a psicologia de massas do fascismo possa lançar alguma luz sobre esta doença coletiva. Considero o fascismo um sistema político baseado numa espécie de Crueldade Organizada. As satisfações que o fascismo fornece às hordas de cidadãos que aderem a ele são da ordem da crueldade deleitosa: tratar o outro demonizado como se fosse um verme, a ser humilhado, pisoteado, privado de direitos humanos, reduzido a animal.

Nestas eleições, vi com repugnância e indignação que os Bolsonaristas circulavam memes, disseminados por milhões de pessoas, onde se dizia que os petistas eram “ratos” e que as eleições eram o momento de “exterminar as pragas”. A propagação desse tipo de discurso vinha muitas vezes acompanhada de risinhos e de “kkkkkk”s, sintoma de que o sujeito está de fato gozando com a idéia de que o outro é um rato a ser exterminado, e que uma urna de votação deve ser usada como instrumento para empoderar justamente o Estado Genocida que nos livrará dos ratos.

O antropólogo Luiz Eduardo Soares fez um diagnóstico comparativo que vale a pena citar: para ele, o antipetismo funciona hoje de maneira análoga ao antisemitismo na Alemanha da época em que o Partido Nazista subiu ao poder e produziu o Holocausto (o assassínio em massa de mais de 6 milhões de judeus europeus).

 

“O impeachment, na atmosfera envenenada por um antipetismo patológico, abriu caminho para que saíssem do armário todos os espectros do fascismo. O anti-petismo é o ingrediente que faz as vezes do anti-semitismo na Alemanha nazista. O anti-petismo identifica O CULPADO de todas as perversões, o monstro a abater, o bode expiatório, a fonte do mal. O anti-petismo gerou o inimigo e gestou a guerra político-midiática para liquidá-lo, guerra que se estende, sob outras formas (mas até quando?), às favelas e periferias, promovendo o genocídio de jovens negros e pobres, e aniquilando a vida de tantos policiais, trabalhadores explorados e tratados com desprezo pelas instituições.

(…) Ser contrário ao anti-petismo, mesmo não sendo petista, é necessário para resistir ao avanço do fascismo. Os que votaram pelo impeachment e, na mídia, incendiaram os corações contra Lula e o PT – Partido dos Trabalhadores, sem qualquer pudor, não tendo mais como recuar, avançam ao encontro da ascensão fascista, que ajudam a alimentar, voluntária e involuntariamente. Não podemos retardar a formação de ampla aliança progressista pela democracia, uma frente única anti-fascista.”

– Luiz Eduardo Soares no texto “O tweet do General”. SOBRE O AUTOR: É antropólogo, cientista político, especialista em segurança pública e escritor brasileiro. Compartilhar.

Nos dois casos, dissemina-se pelo corpo social a noção de inimigo interno: a demonização do outro – judeu ou petista – se dá através do recurso às mentiras mais sórdidas e vis; o outro é a encarnação de Satanás, de tudo que há de mais sujo e mais corrupto, de tudo o que precisa desaparecer da face da terra, de tudo que merece ser preso em campos-de-concentração ou ser fuzilado sem dó (Bolsonaro já disse: “precisamos matar uns 30 mil”).

Como professor de filosofia, estou consciente de que muitos pensadores já atentaram para estes fenômenos, a começar por Étienne de la Boétie, com seu clássico tratado “Sobre a Servidão Voluntária”, precursor de estudos realizados no século 20 por figuras como Wilhelm Reich, Erich Fromm, Hannah Arendt, Stanley Milgram. Há de fato nos seres humanos uma tendência ao sacrifício da autonomia, da liberdade, da responsabilidade, que muitas vezes são sentidas como fardos pesados demais para se carregar e que o cidadão prefere depositar, para sacrifício, no altar do tirano.

É mais simples seguir as ordens do ditador do que encarar a aventura difícil da auto-determinação. É mais fácil ser ovelha que vai com as outras, para onde quer que mandem os pastores, do que organizar as ovelhas em assembléia para que deliberem sobre os melhores rumos para a coletividade.

É mais rápido, diante das ovelhas negras, chamar o carrasco para conduzi-las ao cadafalso, onde serão decapitadas, ao invés de ouvir a voz da discórdia que tanto pode fazer para qualificar o debate público.

É com muita tristeza que vivo no Brasil de hoje diante do tamanho assustador das hordas que apoiam Bolsonaro. Pois apoia-lo é um sinal inconteste de que a pessoa está doente. Eticamente, perdeu algo de essencial: a capacidade de empatia e de solidarização. Aderiu ao ódio que fere, que mata, que segrega. Fez-se instrumento de um projeto autoritário que nos separa e nos desumaniza.

Quem adere ao Bolsonarismo, pelo gozo sádico e perverso de participar de uma horda que humilha e maltrata aqueles que são estigmatizados como “escória do mundo” (não só petistas, mas negros, feministas, comunistas, LGBTs, ativistas de movimentos sociais, sem-terras, sem-tetos etc.), está jogando no lixo uma parte preciosa de si: sua humanidade. Filia-se aos algozes que cavam a cova de nosso futuro, sem ver o perigo que corre entre nós a própria civilização democrática que com muito suor e lágrimas construímos.

Só uma sociedade em que entrou em colapso massivo o bom-senso, a lucidez e a sensibilidade poderia seguir, rumo a um abismo de onde não sei quando sairemos, este sub-Führer, grotesco e patético, que é Bolsonaro. Um psicopata completamente despreparado para uma função de tamanho poder quanto a de presidente da República. Um tirano dos mais abomináveis e que promete, entre nós, “extirpar os ativismos”, usar o “lança-chamas” contra Paulo Freire, purgar a pátria através da tortura e da guerra civil onde sejam mortos “uns 30 mil”.

Escolhendo Bolsonaro, vocês escolhem o morticínio e a carnificina. Vocês escolhem Tânatos e a necropolítica. Vocês escolhem a ignorância, a estupidez e a colheita nefasta dos massacres administrativos. Vocês escolhem o sangue derramado dos inocentes e a profanação mais grotesca de todas: a da infância. Escolhendo Bolsonaro, vocês são cúmplices de um projeto de desumanização em que crianças são ensinadas a atirar armas e a odiar as diferenças. Fazendo uma tão péssima escolha, dando um tal tiro no pé, vocês escolhem o pior opressor para nos tiranizar e enterram o sonho de um Brasil mais justo e solidário, melhor educado e mais culto, respeitado internacionalmente e capaz de propor ao globo um caminho alternativo à hecatombe que é o capitalismo neoliberal globalizado.

Ganhando Bolsonaro, perdemos todos.

#EleNão

* * * * *

Um texto importante, viralizado nas redes, de Rafael Azzi, tinha como título: “Sua tia não é fascista, ela está sendo manipulada.” Manipulada por fascistas. Manipulada para agir como um fascista. Com aval de Trump e o poderio da Cambridge Analytica. Com o poder de enganação massivo que há na Deep Web.

As infelizes vítimas da Lavagem Cerebral e da Programação Robótica de Subjetividades, processos perpetrados hoje pelas forças da extrema-direita no Brasil, caminham, feito um exército de zumbis lobotomizados, para o abismo. E querem arrastar o país inteiro com eles para um buraco que não temos ideia de quão fundo, nem de como dele depois sairemos. Enfim: é uma baita ideia de jerico, um trágico projeto de suicídio coletivo. É a guerra dos estúpidos contra os sensatos, e os estúpidos estão vencendo. É escolher entre um Opressor racista, machista, homofóbico, armamentista, ditador, obscurantista, e um Professor sensato, iluminista, republicano, democrático, conciliador e sádio – e a maioria tem tendido a preferir o pior. É loucura de massas num hospício a céu aberto, e logo vão mandar pro pau-de-arara ou pra cadeia justamente aqueles, dentre nós, que estão diagnosticando a “psicopatização” da sociedade brasileira, para emprestar a expressão de Maria Rita Kehl.


A turma que vomita conteúdos e slogans com a obsessão do “PT NÃO” normalmente é composta por pessoas que confundem xingamentos e memes mentirosos com argumentos, coisa que lhes falta. São pessoas que puxam o nível do debate político para o nível deles, isto é, para a baixeza dos ataques ao inimigo em que não vigora nem uma gota “fair play”. São brasileiros que desconhecem não só a História do país, como também a travessia do Partido dos Trabalhadores nestes seus 38 anos de existência. Não são capazes de fazer uma lúcida avaliação dos governos petistas, mas aderem à simplificação grotesca que consiste em atribuir todos os males do Brasil àquilo que se quer pintar como Organização Criminosa equivalente à peste bubônica. Esta criminalização e demonização do PT disseminou-se como uma doença no corpo social e o ovo da serpente é o movimento militar-teocrático que venho chamando de Bolsonazismo.

O fascismo sempre necessitou da demonização do outro, e hoje os fascistas utilizam-se do antipetismo como sua ferramenta predileta de mobilização de suas massas-de-manobra.Os Bolsominions, pagando Mico ao idolatrar tão abjeto “Mito”, estão sendo coagidos, por uma campanha lotada de fake news e que manipula os afetos de modo vil, a usar as urnas como um instrumento para autodestruição da Democracia.

Votar em um ditador: que loucura é essa, ô 49 milhões de cidadãos de meu querido Brasil? Vocês estão tentando puxar o país inteiro com vocês para a hecatombe dos direitos civis e das liberdades democráticas? Enquanto celebram, acéfalos e manipulados, este Sub-führer tropical que ameaça nos lançar ao mais completo caos e convulsionamento social?

Temos poucos dias para conseguir disseminar um “Choque de Conscientização” que consiga iluminar ao menos uma parcela destas mentes fanatizadas e estupidificadas pelas propagandas nível-Goebbels que vem sendo utilizadas para difamar e satanizar o Partido dos Trabalhadores, todos os seus quadros, todos os seus apoiadores, todos os seus eleitores, mesmo aqueles que são críticos construtivos do PT.

Os Bolsominions, aqueles que participam ativamente da campanha pró-Bolsonaro, aqueles que tem realmente convicções quanto a isso, são muitas vezes cidadãos que nos fazem lembrar daquela frase de Simone de Beauvoir: “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.” Se os considerarmos incuráveis, totalmente imunes à argumentação, indignos de diálogo, então de fato estaremos entregando de mão beijada as suas consciências sequestradas aos ideólogos da Direita.

Eu, trabalhador da educação, servidor docente da rede federal de ensino, acho que a práxis do educador só tem sentido na perspectiva de que cada um de nós é transformável pois perfectível. Jamais seremos perfeitos, mas caminhamos juntos rumo às melhores versões de nós mesmos que em comum podemos colaborar criando. Por isso, não “essencializo” o Bolsominion: ele não nasceu isso, isso tornou-se. Trata-se de tentar convencê-los de que estão equivocados, trata-se de seduzi-los para uma aliança mais humana e solidária. Missão quase impossível? Não importa, é preciso dar tudo a esta luta neste momento tão urgente de nossa história, pois como nos olharíamos no espelho sem nojo, sem repugnância, caso tivéssemos nos acovardado no momento em que o país exigia de nós a coragem, a lucidez e o amor para ir ao embate contra o fascismo e suas atrocidades?

O cyberativismo agora é um campo de batalha, e a extrema-direita está vencendo aí, neste campo, através da viralização do falso e do imoral mergulho na era da Pós-Verdade. Não se trata de jogar tão sujo quanto eles, mas sim da tentativa de fazer a Verdade falar mais alto. Provavelmente perderemos, mas estaremos estado sempre do lado da dignidade, da responsabilidade, da defesa incansável do direito de todas as pessoas humanas ao florescimento, contra a horrenda política de segregação, humilhação e extermínio das diferenças proposta pelo totalitarismo Bolsonarista.

O que hoje nos estarrece é a extensão da cumplicidade dos oprimidos com esse projeto de tirania encarnado pela teocracia militarizada do Bozonazismo. Aqueles que ainda filiam-se a Bolsonaro estão inconscientes de que agem como cúmplices de um projeto político desumano, opressor e potencialmente genocida. Acredito que só uma parcela dos eleitores de Bozo é composta de psicopatas sádicos que querem gozar perversamente com os horrores que serão cometidos contra a população negra e periférica, contra LGBTs, contra feministas, contra comunistas, contra ativistas de esquerda de todos os coloridos. Uma boa parte do eleitorado é simplesmente irresponsável e inconsequente, vê a política como uma brincadeira sem muita importância, e vai à urna para nela depositar ódios mesquinhos, implantados ali por mídia, família e pastores, que nada tem a ver com uma autêntica deliberação cidadã sobre o futuro da gestão do Bem Comum.

Política, para eles, é ferramenta para a raiva recalcada poder manifestar-se por procuração, com um certo gozo que há de cair-de-joelhos diante de um Grande Pai, que faça sofrer e berrar a “todos os vagabundos” (os outros, demonizados, que nos garantem que somos “cidadãos-de-bem”). Pobres Bolsominions, pensam que serão poupados da derrocada civilizacional que o fascismo entre nós propaga! Pensam que não perdem eles também com a desumanização e a brutalização geral de nossa sociedade! Estão perdendo todos.

Muitos dos eleitores de Bolsonaro não conseguem atingir aquele grau de reflexão e auto-crítica necessário para colocarem a questão: será que estou sendo manipulado, como uma marionete, por elites egoístas e interesseiras que só querem nos usar de trampolim para chegar ao poder? Não foram ensinados, na escola, sobre os mecanismos pelos quais as ideologias se alojam nas consciências, como parasitas, fazendo-nos achar que são “nossos” algumas idéias e afetos que nos foram inculcados e implantados por poderes externos, interessados na vantagem deles, e não na nossa.

É uma situação histórica que também traz à lembrança os ensinamentos de Hannah Arendt, que ficou estarrecida, diante do Julgamento de Eichmann em Jerusalém, com a estupidez e a irreflexão daquele ser humano que havia contribuído enormemente com o Holocausto, ou seja, com “o massacre administrativo” de milhões de pessoas pelo III Reich alemão.

Hoje, 15 de Outubro, dia do Professor, reflito com melancolia sobre a difusão assustadora da estupidez e da irreflexão entre tantos de nossos concidadãos, mas me recuso a considerá-los como causa perdido. Sei de muitos companheiros que seguem em incansável atividade: estamos trabalhando dia e noite na tentativa de alertá-los sobre o perigo que as instituições democráticas correm entre nós. Infelizmente são demasiado numerosos os atingidos pela “contaminação fascista” para que o trabalho que temos pela frente não seja sentido, dolorosamente, como um trampo de Sísifo.

Algo com gosto desesperador e absurdo. Por isso, ler Albert Camus tornou-se novamente, para mim, uma necessidade orgânica – hoje almoço arroz, feijão, ovo e “O Homem Revoltado”.

Sobre os cidadãos que votarão em Bolsonaro, cegos quanto à catástrofe que isso representa para o conjunto de nosso povo brasileiro, vale lembrar o genial poema, todo feito de neologismos, escrito por José Paulo Paes, que profeticamente descreve os males de que sofrem e os infelizes desumanizados que eles estão sendo:

“economiopia
desenvolvimentir
utopiada
consumidoidos
patriotários
suicidadãos”

CONFIRA TAMBÉM:

JORNALISMO DE VERDADE – Por José Arbex Jr. Sobre o livro “Rompendo o Cerco – A História do MST”, de Sue Branford e Jan Rocha

 

JORNALISMO DE VERDADE – Por José Arbex Jr.

Prefácio ao livro-reportagem de Sue Branford e Jan Rocha (Ed. Casa Amarela), Rompendo a Cerca, vencedor do Prêmio Vladimir Herzog 2004 [http://bit.ly/2pfbfpt]

Em “1984”, George Orwell cria uma fantástica metáfora para explicar os mecanismos utilizados pelo poder para produzir a amnésia social: a história é permanentemente reescrita, sempre de acordo com as conveniências dos mandatários de plantão. É perigoso ter ou cultivar a memória dos fatos, e muito pior – inimaginável – é olhar para o passado segundo uma perspectiva crítica.

Também no “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley a percepção dos acontecimentos cotidianos é fabricada por uma engenharia social arquitetada por poucos que sabem e conhecem a dinâmica real dos processos históricos. O tema se repete, com variações, em muitos outros clássicos da ficção, na literatura e no cinema, que se preocuparam com a formação das sociedades totalitárias.

Passando à implacável esfera do “mundo real”,Hannah Arendt nota que, de fato, a produção social do esquecimento é inerente ao exercício do poder nos regimes autoritários ou mesmo em boa parte dos sistemas dito democráticos. (…) Interessa, por exemplo, a George W. Bush apresentar Osama Bin Laden como um ícone do terror islâmico, desde que se esqueça que ele foi treinado e armado pela CIA, para ajudar a Casa Branca a combater a ocupação do Afeganistão pelo Exército Vermelho (1979-1989); da mesma forma, a partir de certo momento, passou a ser vantajoso para Washington acusar o ex-ditador iraquiano Saddam Hussein de ser o responsável pelo males do mundo, mas relegando ao mais profundo buraco negro da história o fato de ele ter sido armado pelos Estados Unidos, nos anos 80, com o objetivo de mover sua providencial guerra contra o Irã do aiatolá Khomeini.

Também interessa repetir à exaustão que o ataque às torres gêmeas, em 11 de Setembro de 2001, foi o “pior atentado terrorista da história”, pois isso ajuda a esquecer, entre outras coisas, o bombardeio atômico sobre a população civil de Hiroshima e Nagasáqui, em agosto de 1945.

Em todos esses casos, o poder instituído em determinado país conta, a não ser em situações excepcionais, com o apoio das corporações da chamada “grande mídia” nacional. Nada disso é novidade… No Brasil, em particular, a “fabricação do esquecimento” é feita com desenvoltura muito maior do que a encontrada em boa parte dos países europeus e nos EUA. A razão é simples: dados a extrema desigualdade social, o imenso número de analfabetos e a desorganização política da sociedade civil, a elite sempre foi capaz de, confortavelmente, contar ao seu modo a história do país. (…) Os movimentos populares e organizações de esquerda raramente conseguiram emplacar jornais de grande tiragem, e menos ainda diários. Em outros termos, no Brasil, talvez mais do que em qualquer outro grande país ocidental, o monopólio da narrativa histórica sempre foi exercido pelas elites.

Eric Hobsbawm: “Esta é a narrativa mais completa do que é, provavelmente, o mais ambicioso movimento social da América Latina contemporânea – leitura essencial para qualquer um que esteja interessado nesse continente.”

No Brasil contemporâneo, a cobertura das ações do MST é a mais pura, clara e nítida expressão dessa história. O MST é total e abertamente demonizado pelos maiores veículos da imprensa escrita, televisionada e radiofônica. Basta que o leitor compare o capítulo deste livro – “Rompendo a Cerca” (Cutting the Wire) – dedicado a descrever o esforço feito pelo MST para educar suas crianças e idosos, que nunca tiveram oportunidade de frequentar uma escola, com as descrições do movimento feitas pela mídia em geral.

O brilhante, exaustivo e minucioso trabalho de reportagem feito por Jan Rocha e Sue Branford, para além daquilo que representa em termos de contribuição para que a verdadeira história do MST não passe ao esquecimento, é também um daqueles momentos brilhantes que resgatam o sentido mais profundo da atividade jornalística. Se interessa sempre ao poder passar uma borracha na memória, a obrigação do jornalismo, ao contrário, é fazer aflorar as vozes que foram intimidadas e sufocadas, pois é aí – e não na versão oficial – que se encontra a notícia.

A vocação ética do jornalista, nesse sentido, deve se espelhar no anjo descrito por Walter Benjamin, em sua tese 9 sobre a história: sua ambição maior é deter o tempo, para permitir que fale a legião dos que foram atropelados pelos rumos implacáveis daquilo que se convenciona chamar “progresso”.

Jan e Sue fazem isso, com notável conhecimento de causa. Demonstram, sobretudo, uma grande capacidade de entender, ouvir e estabelecer uma relação de empatia com um povo que não fala sua língua natal, não se alimenta e não se veste como os de sua terra, nem adora os mesmos deuses. Eis aí outro componente fundamental do fazer jornalístico tão bem resgatado pelas autoras: a capacidade de traduzir o estrangeiro, de ser, por assim dizer, um correspondente, no sentido mais radical e profundo do termo.

Em uma época histórica tão fortemente marcada pela promiscuidade entre o poder de Estado e os órgãos da mídia, e em que se multiplicam ao infinito os casos de jornalistas que aceitam o papel de escribas oficiais da corte em troca de um punhado de reais ou dólares, é reconfortante saber que existem profissionais como Jan Rocha e Sue Branford. (ARBEX – LEIA MAIS)

Fotografia por Sebastião Salgado

 

THOREAU: A Desobediência Civil e a Apologia da Existência Selvagem

“Na história das ideias, Henry David Thoreau (1817 – 1862) é conhecido por dois momentos de sua biografia que se tornaram emblemáticos de seu pensamento: a vida no bosque e a estada na prisão. Walden, ou o elogio da vida selvagem; a prisão, ou a desobediência civil”, escreve Michel Onfray no sexto volume de sua Contra-História da Filosofia, entitulado “As Radicalidades Existenciais” (Editora WMF Martins Fontes, 2017, p. 62).

Este célebre prisioneiro só passou uma noite em cana, em 1846, ou seja, antes da Guerra Civil e da Abolição da Escravatura. Seu crime: recusar-se a pagar impostos ao governo dos EUA, que além de escravocrata e racista, estava então engajado numa ofensiva bélica e imperialista contra o México, país vizinho do qual roubou pelo sangue e pelo fogo uma significativa parte de seu atual território.

O breve texto escrito sob o impacto de sua prisão – “A Desobediência Civil”, publicado em 1849 – “entra pela porta da frente na história da filosofia política, da mesma maneira que o ‘Discurso Sobre a Servidão Voluntária’, de La Boétie, o qual ele lembra sob muitos aspectos.” (ONFRAY, p. 63)

O texto, que inspiraria gerações de contestadores cívicos, em vários países, tornou-se um emblema da atitude ético-política que consiste em afirmar: é justo desobedecer a leis injustas e recusar obediência a autoridades iníquas.

Do movimento sufragista inglês, que conquistou a duras penas o voto feminino já na aurora do século XX, à mobilização independentista da Índia contra o império britânico, encabeçada por Gandhi, passando pelas lutas afroamericanas por direitos civis igualitários que têm em Martin Luther King, Jr. e Rosa Parks alguns destinos emblemáticos, todos beberam na fonte de Thoreau, ainda que questionassem seu anarco-individualismo e propusessem ações coletivas de massa ao invés de atitudes de indivíduos rebeldes isolados.

Menos conhecida é a atuação de Thoreau ao “ajudar regularmente escravos a irem para o Canadá” e ao realizar uma apaixonada defesa de John Brown (1800 – 1859), “um branco que lutou de armas em punho para abolir a escravidão, acompanhado de uma dúzia de combatentes determinados” (ONFRAY, p. 70). Quando John Brown foi capturado e enforcado pelos poderes constituídos que defendiam a lei e a ordem (a lei segregacionista, a ordem escravocrata…), Thoreau publicará vários panfletos e manifestos em sua defesa: “se engajará ao lado dos escravos e falará de um ‘crime contra a humanidade’ para caracterizar o comportamento dos brancos em relação às pessoas de cor mantidas sob seu jugo.” (p. 91)

Usualmente classificado entre os anarquistas, na companhia de Bakunin ou Proudhon, Thoreau talvez mereça a alcunha de anarco-individualista, na companhia de Max Stirner, ainda que seu pensamento possa ser visto também como uma radicalização do ideário do liberalismo clássico e que pode inclusive ser apropriado por formas contemporâneas de anarco-capitalismo neoliberal. Seu pensamento político assim pode ser sintetizado:

“O melhor governo é aquele que governa o menos possível e deixa os cidadãos viverem como quiserem. Os governos exercem seu poder não porque são legítimos, mas porque dispõem do monopólio da coerção legal: a polícia, o exército, a prisão, a caserna. O respeito à lei vem depois daquilo que nossa consciência nos dita: antes de tudo, somos homens; em seguida, cidadãos. Tornamo-nos cúmplices da injustiça sempre que não a denunciamos ou não lutamos por sua abolição; não impedi-la significa ser tão responsável e culpado quanto aquele que a comete. O Estado considera inimigo quem pensa, reflete e julga antes de obedecer. Não existe nenhuma boa razão para pactuar com um governo que defende a escravidão. As petições são uma boa coisa, mas a insubmissão cívica é melhor: não pagar os impostos é uma excelente maneira de exprimir sua discordância, pois a cobrança desse dinheiro é o único modo sob o qual o Estado nos aparece. Devem-se transgredir as leis injustas; a ação de um indivíduo é o melhor dos contrapoderes em face de um governo iníquo; não se espera que ninguém faça tudo sozinho, mas deve-se ao menos fazer alguma coisa. A minoria é incontornável quando pratica a obstrução; como o Estado não pode encarcerar todos os cidadãos refratários, necessariamente cederá…” (ONFRAY, p. 162)

Se aí se manifestam noções próximas de Voltaire – “todo ser humano é culpado pelo bem que não faz” -, que apontam para a culpabilidade dos omissos, cúmplices das injustiças vigentes, também se manifesta um individualismo excessivo, de molde liberal, que parece acreditar no poder de contágio da ação individual emblemática, que é diferente da participação ativa em movimentos sociais, partidos políticos, sindicatos laborais, conselhos ou sovietes… A filosofia de Hannah Arendt, também intensamente interessada no tema da Desobediência Civil, como prova o importante artigo presente no livro “Crises da República”, tentará superar as limitações da visão de Thoreau ao construir um conceito ampliado de ação, que exige a união de poderes entre agentes que coordenam seus esforços para a transformação do mundo comum.

Outro episódio biográfico emblemático, conexo a outra obra-prima da literatura estadunidense, foi a “fase Walden” de Thoreau: por 2 anos e 2 meses, entre 1845 e 1847, ele viveria em sua cabana às margens do Lago Walden, devotado aos labores simples da vida, à contemplação profunda da natureza, ao aprendizado com a selvageria e rusticidade de uma vida pouco domada pela civilização. A filosofia de vida de Thoreau, expressa com belas palavras e metáforas no livro Walden, inspirador de muitos aventureiros solitários (a exemplo de Christopher Johnson McCandless, protagonista do filme Into The Wild. de Sean Penn Movies), é assim resumida por Onfray:

“Num mundo onde tudo passa, flui, transforma-se, nada se perde, tudo se modifica; num universo onde a mesma energia atravessa o sílex e a coruja, o corpo de um filósofo e o campo de trigo, a água de um lago e a carne de um peixe, existe apenas um ponto fixo: o Movimento. O trabalho do pensador? Habitar plenamente cada instante constitutivo desse movimento. Mergulhar todos os dias na água do rio heraclitiano – ou do lago de Walden… – sabendo-o Mesmo e Outro. O dever do sábio consiste em usar até o limite o epicentro de cada momento. A vida filosófica propõe-se criar e colecionar momentos sublimes. Fundir e fundir-se para enfim ser. Thoreau quer vaporizar-se na natureza para atingir o gozo de uma consciência que sabe que o filósofo e o mundo, assim como o lago e a luz, são uma única e mesma substância vibrante de Vida.” (ONFRAY, p. 46)


Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro – www.acasadevidro.com

CARNAVALIZANDO A DESOBEDIÊNCIA CIVIL E A RESISTÊNCIA À OPRESSÃO: Sambando na cara da tirania, a Tuiuti faz História na Sapucaí e deixa uma cicatriz na carne do Carnaval do Rio

“É CARNAVAL MAS FOI GOLPE!”
Roberta Martinelli

Um golpe de Estado não é nenhum piquenique, mas ao invés de derrubar lágrimas sobre nosso pesadelo, chegamos ao Carnaval do ano eleitoral com um ícone popular sobressaindo sobre tudo: a Tuiuti e sua estética do quilombo, carnavalizando as consequências nefastas do golpismo tirânico hoje empoderado.

O esqueleto de Castro Alves abriu um sorriso no cemitério ao ouvir “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”, notando que os afrobrasileiros vão inventando uma resistência carnavalizada à opressão, uma anarquia antropofágica-tropicalista que infunde ânimo e esperança às nossas necessárias lutas do porvir.

Um coup d’État como este que se encontra entre nós hoje, fazendo o serviço do elefante na loja de louças, pode acarretar catástrofes humanitárias: a reversão do mundo do trabalho a níveis de desrespeito aos direitos humanos mais básicos dos cidadãos que mais se assemelha a uma reversão ao escravagismo (CLTs em chamas, enquanto matam a fome com cinzas os quase 15 milhões de desempregados…), Retrocesso rumo à abolição da lei Áurea, para delírios de efusão dos banqueiros e Bolsas de Capitais… O patronato Rei Patinhas comemora seu triunfo, nadando em piscina de ouro enquanto as massas padecem na miséria…

Este sistema aniquilador do mais básico estandarte da dignidade, a cidadania e o “direito a ter direitos” (como diz Hannah Arendt), hoje está sacrificado no altar dos lucros privados de minúsculas elites, que nos desgonernam a golpes de (D)eformas e PECs. Na linha de frente, como a Tuiuti inscreveu na História com seu desfile, vem um cara-pálida vampiresco, vestido de terno-e-gravata, feito um Temer, um Macri ou um Trump… Vilões do pesadelo do real. Nosso levante os ofende com arte!

Carnavalizando a nossa tragédia, a Paraíso do Tuiuti entrou como “sentinela da libertação” na Sapucaí e fez mais, fez muito mais do que mera arte popular na avenida: fez História nas páginas brasileiras onde estão escritos nossos maiores heroísmos de Desobediência Civil.

É de saudar a sabedoria das favelas cariocas resistentes que não param de cantar, além de seus sambas-enredo, o clássico do falecido Wilson das Neves: “O Dia Em Que O Morro Descer E Não For Carnaval):

O samba não está solitário na resistência à opressão: faz alianças com o rap, inventa seus modos de hackear seu acesso à grande mídia, e assim surgem fenômenos louváveis, do Lab Fantasma do “Pantera Negra” Emicida ao levante de empoderamento feminino com Larissa Luz, Tássia Reis e Rimas & Melodias, cenário no qual figura como trovão esplendoroso no céu do Brasil este já lendário desfile da Tuiuti em 2018.

Dentre seus méritos não menores está o ter se apropriado da mídia, já que o desfile foi transmitido ao vivo pela Rede Globo, apesar da Tuiuti expor de modo explícito o complô golpista de que os globais foram patrícios partícipes. Globosta golpista teve pôr no ar o Samba da Resistência Alegre de um Povo Aguerrido, passando outra vez Chico Buarquística-mente em era e época de “tenebrosas transações” (de Cunhas e Jucás, MDBs e Globos, Fiesps e Odebrechts…).

A Tuiuti sambou com sarcasmo, tirando sarro daqueles “manifestoches” manipulados por MBLs e Vejas, servindo aos interesses patíferos do empresariado Fiespista, títeres de petroleiras gringas de olho gordo pra cima do nosso pré-sal, dentre outras forças da Elite do Atraso (Jessé Souza) que estiveram por trás da derrubada injusta da presidenta eleita.

Os coordenadores do golpe tiveram novamente uma aliada nas Corporações Globo, mais uma vez – replays-de-farsa das tragédias de 64 e 68… – agindo não como deveria fazer um ente da mídia em um país democrático, mas como empresa capitalista umbigocêntrica que age como protagonista e fomentadora dos privilégios injustos das elites econômicas exploradoras.

O Carnaval do Rio deste 2018 tornou-se célebre mundialmente pela força de sua contestação – muito bem-vinda nestes tempos em que a América Latina mostra-se novamente como o terreno das “veias abertas”, de patas arriba, como ensinou Eduardo Galeano.

Um continente convulsionado: ao insulto que é o indulto a Fujimori no Peru
(processo levado a cabo um PPK ameaçado de ser impeachado), soma-se ao insulto da lawfare golpista condenando ao Lula – “sem provas, mas muitas convicções” – com o fim de inviabilizá-lo nas iminentes eleições.

Estive na Bolívia durante o Carnaval 2018 e voltei fortalecido com a resiliência de Evo Morales (do MAS – Movimento Ao Socialismo) na presidência da Bolívia, mesmo sob muitos ataques. No Carnaval ocorrido no Cambódromo de Santa Cruz de La Sierra, não faltaram críticas agressivas dos cambas caucasianos ao Evo Aymara, renovador do cenário político que propõe ao continente a utopia do Estado Plurinacional. O Brasil está surdo…

Amaré direitista que hoje nos assola na Argentina, no Chile, no Brasil, não nos deixa sequer suficiente área de respiro para que tomemos fôlego com as vitórias utópicas que resistem em outras partes do continente sul-americano que integramos, utopia concreta que hoje melhor se manifesta na Bolívia de Morales.

Esta maré direitosa atualmente mostra a transmutações do neo-liberalismo em um doutrina mais intolerante do que nunca, desenvolvendo perigosas tendências fascistas, tanto que estamos sob a ameaça de mais Intervenções Militares dos Yankees apoiadas por oligarquias locais vende-pátria, com o fim de trazer abaixo pela força de violências, explícitas ou veladas, os regimes “bolivariano-socialistas” que ainda resistem na Venezuela e na Bolívia.

Tio Sam e seu comandante psicopático Trump vem aí, regando a árvore sinistra de nossos Golpes de Estado contra Maduro e Evo…

Neste cenário, é um alento que a Tuiuti tenha sambado tão bonito na cara da Opressão… O que me lembra de algo que Celso Lafer ensinava sobre “Hannah Arendt”: “ela entende que, em situações-limite – uma categoria de inspiração Jasperiana, importante na sua reflexão -, a desobediência civil é legítima e pode ser bem-sucedida na resistência à opressão. Este foi o caso, por ela comentado em Eichmann em Jerusalém – Um Relato sobre a Banalidade do Mal, da resistência dos dinamarqueses, através da desobediência civil, à política antissemita do invasor nazista. Este também foi o caso da luta contra a segregação racial e da resistência à guerra do Vietnã… De fato, nesses casos a desobediência civil, sendo a expressão de um empenho político coletivo na resistência à opressão, não se constitui como rejeição da obrigação política, mas sim como a sua reafirmação.”

(LAFER, Celso. In: A Reconstrução dos Direitos Humanos – Um diálogo com Arendt, Cia das Letras, p. 39)

Em meio à situação-limite que vivemos enquanto país – um autêntico barril de pólvora de tamanho continental, e sem escassez de faíscas e estopins! – foi um esplêndido evento testemunhar essa carnavalização da desobediência civil e da resistência à opressão na Sapucaí, e por isso selecionamos interessantes posts com a repercussão do Carnaval Rio 2018, em publicações da Mídia Ninja, Revista Fórum, DW, El País, Sakamoto, entre outros. Façam bom proveito:

AS REVOLUÇÕES SÃO INFINITAS – As lições da obra prima da ficção científica distópica, “Nós” de Zamiátin (URSS, 1920s)

Escrito na Rússia pós-Revolução Bolchevique, no início dos anos 1920, quando a nação estava em plena Guerra Civil, o livro Nós de Zamiátin (Ed. Aleph, 2017, 344pgs.) já teria entrado para a história da literatura distópica do século XX somente por esta façanha: inspirar a criação de duas das obras mais significativas da literatura no séc. XX: Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984 de George Orwell.

No entanto, o livro vai muito além de ser somente o inspirador de obras primas subsequentes, sendo uma obra-prima por seu próprio mérito. E que segue pulsando relevância no contexto atual, quase 100 anos após sua publicação.

George Orwell foi uma das mentes brilhantes do século XX que melhor viu a fulgurância artística e política do magnum opus futurista-distópico de Zamiátin. Em uma resenha publicada em Londres, em 1946, o autor de A Revolução dos Bichos, que nunca escondeu o impacto que a leitura de Zamiátin teve sobre seu fazer artístico e sua atividade política, resumiu os porquês da forte ressonância de Nós na posteridade:

No século 26, na visão de Zamiátin, os habitantes de Utopia perderam a individualidade tão completamente que somente são conhecidos por números. Vivem em casas de vidro (isso foi escrito antes da invenção da televisão), o que permite que a polícia política, conhecida como Os Guardiões, possa supervisioná-los mais facilmente. Todos vestem uniformes idênticos, e costuma-se fazer referência a um ser humano tanto como “um número” quanto “um unif” (de “uniforme”). Se alimentam de comida sintética, e a recreação habitual é marchar em filas de 4 pessoas enquanto o hino do Estado Único toca em alto-falantes. A intervalos estabelecidos, é permitido, durante uma hora (conhecida como “Hora Pessoal”), baixar as cortinas em torno dos apartamentos de vidro… – GEORGE ORWELL (p. 318)

É impressionante a habilidade que Zamiátin, com fina ironia, tem ao delinear os contornos do Estado Único, gerido por um monarca-imperador chamado O Benfeitor –  que tem óbvias ressonâncias nas figuras de autoridade do Big Brother (O Grande Irmão) orwelliano e do Chefe-de-Estado em V de Vendetta (graphic novel de Alan Moore e David Lloyd, adaptada para o cinema por James McTeigue em 2005).

Lá pelo século 26, na fantasia inventada por Zamiátin, todo o globo terrestre foi submetido ao poderio do Estado Único, que agora inicia a colonização de outros planetas. “Nós” tematiza, pois, uma espécie de imperialismo intergalático, subsequente ao período em que se exauriu completamente a possibilidade do bom e velho imperialismo internacional. A abordagem ousada desta temática prenuncia também a obra magistral de outro dos maiores gênios da ficção científica, Ray Bradbury, autor das Crônicas Marcianas e de Farenheit 451 (adaptado ao cinema duas vezes, por Truffaut e Bahrani).

Não tendo mais continentes a pilhar, nações a invadir, riquezas naturais a roubar, massacres e pogroms a perpetrar, o imperialismo capitalista deseja agora lançar seus foguetes para a empreitada de buscar colônias em outros planetas – e é esta a finalidade principal da nave Integral, super-foguete em que trabalha o protagonista e narrador de Nós. Trata-se um livro constituído inteiramente por anotações no diário realizadas pelo narrador em primeira pessoa, um matemático, engenheiro e astrofísico conhecido apenas pela sigla D-503.

D-503 é uma figura que, assim como Winston Smith, o protagonista do 1984 de Orwell, vai se descobrindo como ovelha negra no rebanho, como mosca na sopa das autoridades. Ele descreve-se, a certo ponto, como “um dedo cortado da mão”, saltitando por aí (p. 145).

Ele vai desviando da norma, saindo dos eixos da uniformidade compulsória, adquirindo uma doença perigosa: desenvolve uma alma. E neste mundo as autoridades querem que sejamos todos mecanismos. Que funcionemos como relógios e que todas nossas ações sejam cronometradas e coordenadas pela central estatal, o Estado Único.

Há uma Tábua das Horas destinada a sincronizar as milhões de pessoas que constituem as massas adestradas: todos acordam e dormem, almoçam e jantam, trabalham e se divertem, sempre nos mesmos horários. Tudo se pratica sob a Ditadura do Despertador e do Cronômetro.

Tudo isso se passa numa espécie de território-bunker, todo cercado por um gigantesco Muro – que segrega aquela nação, que está sob rédeas curtas e governada por control freaks,  da natureza selvagem e exuberante que a rodeia.

O protagonista nos conta ainda que esta civilização é herdeira da “Guerra dos 200 Anos”, conflito que atravessou dois séculos e no qual as mortandades em massas foram tão gigantescas que apenas 0,2% da Humanidade sobreviveu (p. 41).

Na fachada, esta civilização é uma Utopia; quando penetramos em suas entranhas, ela se expressa como Distopia. Ela faz propaganda de si mesma como civilização que gera a Felicidade para todos os seus cidadãos – e os inimigos do Estado Único são, por isso, chamados de “inimigos da felicidade”.

Como Orwell bem viu, “o princípio condutor do Estado é que felicidade e liberdade são incompatíveis. No Jardim do Éden, o homem era feliz, mas em sua loucura exigiu liberdade e foi expulso para o ermo. Agora o Estado Único restaurou sua felicidade ao retirar-lhe a liberdade.” (ORWELL, p. 319)

Distopia que denuncia e satiriza o Totalitarismo, “1984” de George Orwell não era um manual de instruções

Em Nós, de Zamiátin, também há um movimento clandestino de libertação que está em pleno levante contra o Estado Único e planeja sequestrar a espaçonave Integral.

O protagonista, D-503, acaba se enredando nas teias de aranha desta conspiração anti-estatal, deste grupo revolucionário em insurreição, cuja natureza e ideologia não se delineiam com clareza.

Sabemos apenas que os revolucionários agem concretamente através do projeto de sequestrar a Integral, numa espécie de apropriação/expropriação de um artefato tecnológico de primeira ordem para o Estado Único. Sabemos também que tomam a iniciativa de dinamitação do Muro Verde – uma entidade que eu imagino parecida com o Muro entre EUA e México, a famigerada La Migra.

O conflito lancinante e alucinatório que atravessa o psiquismo do protagonista do romance, o atormentado D-503, tem a ver também com sua posição desconfortável no meio de um cabo-de-guerra entre Estado e Revolução.

Pois D-503 é um tecnocrata importantíssimo para o Estado Único e tem sob sua responsabilidade o projeto aeroespacial Integral, mas acaba se apaixonando por uma moça, número I-330, que integra o movimento de resistência clandestino. É um tema que depois Bradbury replicará em Farenheit 451 através do romance entre Montag e Clarice.

Por força dos magnetos poderosos do amor, D-503 é arrastado, por parte da travessia que registra em seus diários, à rota da rebelião. Ou pelo menos a atos de insubmissão aos ditames do Estado. D-503 descobre então que “só se pode amar o insubmisso” (p. 105).

Em tempos em que o amor é proibido, amar se torna um ato revolucionário.

Porém D-503 não é um revolucionário, mas um funcionário do Estado, e nem mesmo a força magnética do amor é capaz de vencer o cabo-de-guerra em prol da revolução: o Benfeitor acaba sendo mais poderoso. D-503, que flerta com a revolução, termina no peleguismo. Prefere a cumplicidade com o establishment à insurreição transformadora. Orwell foi ao ponto nevrálgico:

Quando a rebelião irrompe, parece que os inimigos do Benfeitor são, de fato, muito numerosos, e que, além de tramar a derrubada do Estado, eles se entregam, no momento que as cortinas estão abaixadas, a vícios tais como fumar cigarros e beber. D-503 acaba por fim se salvando das consequências de sua própria loucura. As autoridades anunciam a descoberta da causa das recentes desordens: alguns seres humanos sofrem de uma doença chamada imaginação. Agora, o centro nervoso responsável pela imaginação foi localizado, e a doença pode ser curada por meio de um tratamento de raio-X. D-503 é operado e então se torna fácil fazer o que sabia ser sua obrigação desde o início – a saber, denunciar seus cúmplices à polícia. Com total equanimidade, ele observa I-330 ser torturada com gás comprimido sob uma redoma… (ORWELL, p. 320)

O narrador D-503 revela-se um anti-herói. A “terapia” pela qual ele passa para limpar sua psiquê evoca procedimentos da barbárie psiquiátrica, como a lobotomia e o eletrochoque. É como se, na sociedade que Nós descreve, todos os súditos do Estado Único tivessem que ser lobotomizados. Um processo de normalização autoritária, de imposição de uma norma única. À fórceps, enfia-se o conformismo nos comportamentos por meio de um procedimento de dano cerebral patrocinado pelo Estado Único.

Já os rebeldes, os insubmissos, os revolucionários, esses são considerados como matáveis, extermináveis, liquidáveis, como se fossem a escória do mundo – eis o título, aliás, do excelente livro de Eleni Varikas, publicado pela Ed. Unesp, que analisa a figura do pária através da história.

Impossível não lembrar do triste fim dos desviantes, dos transviados das normas sociais vigentes, em obras também distópicas como Laranja Mecânica (livro de A. Burgess, filmado por Stanley Kubrick) e Um Estranho no Ninho (livro de Ken Kesey, filmado por Milos Forman).

Na sociedade retratada em Nós, reina suprema a rítmica do trabalho de Taylor e tudo se justifica com apelo à sacrossanta Razão. Os bem ajustados ao sistema consideram-se ultra-racionais e desejam estar isolados da selvageria que há do outro lado do Muro Verde, onde reina aquele “insensato e repugnante mundo das árvores, pássaros, animais” (p. 132).

O ser humano segregado de sua matriz natural é aquilo que esta civilização consagra. Tanto que o protagonista D-503 julga que os sonhos noturnos representam uma patologia, devido à irrupção do irracional (p. 141-142), e ele desejaria que sua consciência fosse blindada contra o mundo onírico.

O tipo de personalidade que é considerada normal e louvável nos faz lembrar dos ensinamentos do psicólogo social Wilhelm Reich, formulador do conceito de Couraça do Caráter. O Estado Único deseja súditos encouraçados, duros como diamantes, que não devem nunca se deixar derreter por emoções malsãs como o amor e a piedade.

Em uma cena memorável, o foguete Integral está sendo testado e, no processo, um acidente acarreta a morte de 10 pessoas. Porém, “ninguém se abalou”, já que 10 mortos não são nada diante dos 100 milhões que constituem a massa do Estado Único: “só os antigos conheciam a compaixão iletrada: pra nós ela é cômica.” (p. 150)

A ideologia corrente reza que “o amor mais difícil e elevado é a crueldade” (p. 169). E o Grande Benfeitor não tarda a dar amostras deste amor cruel: no Dia da Unanimidade – aquilo que conhecemos por Eleições – o chefe de Estado massacra os que não se juntam ao coro uníssono que o celebra.

A tal Unanimidade é manufaturada a golpes de chacinas contra os que são dissidentes. As eleições só são unânimes pois não fica vivo ninguém daqueles votam contra. O massacre institucionalizado é praticado contra os que denunciam no Grande Benfeitor um crápula e um malfeitor, expondo o reverso de sua máscara de Cidadão de Bem.

A ideologia dominante no Estado Único pede que se imagine a Justiça assim: há dois pratos na balança, o prato do EU e o prato do NÓS. Ora, não é difícil de ver, mesmo que você não seja um gênio da matemática, que o EU não pesa quase nada, é equivalente a 1 grama, enquanto o NÓS pesa mais de 1000 toneladas.

Esta moral simplista quer que nenhum eu tenha direito à sua singularidade e que o nós seja um organismo único, homogêneo, descrito de maneira biologicista como um corpo dotado de milhões de cabeças. Cada súdito é uma célula deste Grande Corpo.

Nos anos 1920, Zamiátin já previa, em contornos gerais, muitos dos elementos da doutrina eugenista-racista do III Reich hitlerista, onde o anti-semitismo genocida estava conexo a uma noção do Povo Alemão, do Volk, como um corpo que precisava ser “purificado” de uma infecção: os inimigos da saúde do corpo coletivo eram judeus, ciganos, comunistas, doentes incuráveis etc.

Em Nós, quem fala pela segunda pessoa do plural? Quem é este sujeito coletivo que se expressa em uníssono? Quem seria senão a voz altissonante da ideologia da classe dominante? “Somos um organismo único com milhões de células”, mas estas células não podem ter autonomia alguma: devem se submeter ao projeto do Estado, que deseja uma massa homogênea, unânime, sem diversidade.

Por isso o “processo eleitoral” descrito em Nós é a negação mais crassa da Democracia. É o consentimento aterrorizado de Todos ao reinado inconteste do Um. É a farsa pública sempre repetida de ritos ensaiados onde a Unanimidade deve sempre ser re-afirmada. Aqueles que destoam, ou seja, que impedem a unanimidade de se constituir, devem ser tratados com máxima severidade pois são doentes: “anormalidade e doença são as mesma coisa”, lê-se na página 179.

A Democracia é uma polifonia, o totalitarismo é uma monofonia. Só se chega à monofonia – negação da música, reinado atordoante da monotonia! – através do silenciamento e do assassinato das vozes dissonantes. Isto fica claro quando o protagonista de Nós descreve a monofonia eleitoral, seu “grandioso uníssono”:

Amanhã assistirei ao mesmo espetáculo que se repete ano após ano e cada vez emociona de uma maneira diferente: o poderoso Cálice do Consentimento, as mãos erguidas em reverência. Amanhã é o dia anual do Benfeitor. Amanhã voltaremos a confiar ao Benfeitor as chaves da inabalável fortaleza da nossa felicidade.

Sem dúvida, isso não é parecido com as eleições confusas e desorganizadas dos antigos, quando – é engraçado dizer – o resultado das eleições sequer era conhecido de antemão. Construir um governo sobre causalidades inteiramente incalculáveis, às cegas – o que pode ser mais sem sentido? E ainda assim, foram necessários séculos para entender isso.

Seria importante dizer que, tanto nisso como em tudo o mais, não temos lugar para quaisquer casualidades, o inesperado não é possível. As próprias eleições têm um significado mais simbólico: recordar que somos um organismo único, poderoso, de milhões de células, que somos, nas palavras do ‘Evangelho’ dos antigos, uma única Igreja. Isso porque a História do Estado Único não conhece um incidente em que, nesse dia solene, uma única voz tenha ousado perturbar o grandioso uníssono. (ZAMIÁTIN, p. 188)

Ora, pouco tempo depois de nosso protagonista dizer ao leitor que a unanimidade está garantida, que sempre foi e sempre será assim, irrompe na cena o imprevisto. O uníssono manifesta-se como farsa quando a resistência insurrecional manifesta sua dissonância.

A ideologia dominante segue justificando que assassinar friamente os que se recusam a juntar-se a Nós é uma medida de higiene, uma política sanitária, destinada a limpar o organismo coletivo de um “pequeno distúrbio provocado pelos inimigos da felicidade” (p. 202), como as autoridades fazem publicar no jornal oficial, a Gazeta do Estado Único.

Autoritário com seus súditos, de quem espera submissão total e consenso unânime (as votações, nesta civilização, são uma farsa completa), o Estado Único, diante de seus opositores e contestadores, mostra a sua face totalitária e genocida.

Isso se explicita quando o Estado Único pratica a tortura e faz uso frequente de uma guilhotina hi-tech. O instrumento para execução da pena capital chama-se “A Máquina do Benfeitor” e há momentos do romance em que Zamiátin rivaliza com Kafka em sua capacidade de pintar um pesadelo judicial que evoca a absurdidade de O Processo ou A Colônia Penal. Orwell impressionou-se:

Há muitas execuções na utopia de Zamiátin. Elas ocorrem publicamente, na presença do Benfeitor, e são acompanhadas pelas odes triunfais recitadas pelos poetas oficiais. A guilhotina, evidentemente, não é aquele antigo e grosseiro instrumento, mas um modelo muito aprimorado, que literalmente liquida a vítima, reduzindo-a a fumaça e uma poça de água límpida em um instante. Com efeito, a execução é um sacrifício humano, e a cena que a descreve recebe deliberadamente a cor das sinistras civilizações escravocratas do mundo antigo. É esta apropriação intuitiva do lado irracional do totalitarismo – sacrifício humano, crueldade como um fim em si, idolatria de um Líder a quem se atribui características divinas – que faz do livro de Zamiátin superior ao de Huxley (Brave New World). – ORWELL (p. 321)

Denúncia de um totalitarismo que depois Hannah Arendt se devotaria a explicar e elucidar em seus clássicos estudos como Eichmann em Jerusalém As Origens do Totalitarismo, a obra de Zamiátin permanece atualíssima, infelizmente.

Pois ainda pende sob nossas cabeças a espada de Dâmocles da guilhotina totalitária, desta vez sob a forma de uma espécie de fundamentalismo de mercado, anarco-capitalista e neoliberal, globalizado e sem controle, que encontrou em Naomi Klein uma de suas críticas mais penetrantes e perspicazes. A Doutrina do Choque é um manual essencial para a compreensão de nossos tempos. Tempos estes em que podíamos dizer a recém-chegados de outro planeta: Bem-Vindos à Distopia do Real! (Zizek)

Muito antes de Naomi Klein, Arundhati Roy ou de Zygmunt Bauman nos fornecerem muitas das chaves para a decifração da sociedade capitalista atual, Zamiátin denunciou a intentona totalitária de inventar um mundo onde o único está em guerra contra o múltiplo, o homogêneo em guerra contra o diverso, e o autoritarismo dos lucros em guerra contra as liberdades civis… Tudo disfarçado por trás de uma fachada alegre como Mickey Mouse ou Ronald McDonald: a máscara da Sociedade da Felicidade.

Vale ressaltar, para terminar, que nada tenho contra a noção de Felicidade Pública como conceito político – a Bolívia sob Evo Morales é um exemplo da possibilidade de um socialismo focado na felicidade pública e na sabedoria Pachamâmica. Mas o sistema atualmente hegemônico, nosso status quo, fala de uma felicidade como possibilidade apenas para indivíduos isolados e em competição por este recurso escasso. Prega que o acesso à felicidade se dá pelas escadarias estreitas e acessos limitados da Meritocracia, a Sociedade das Áreas VIP.

Hoje vivemos sob a ditadura “branda” de um fundamentalismo capitalista neoliberal que, anti-democrático e excludente, concentrador de capital de maneira exorbitante, prefere dizer que a Felicidade é para poucos, para escolhidos, exclusivo para empreendedores capitalistas.

Apenas algumas migalhas caem da mesa para os microempreendendores do neocapitalismo, com seu trabalho Uberizado, em que ter uma máquina de cartão de débito permite que você “seja seu próprio chefe” e onde somos convidados a engolir o capim de uma ideologia que diz: “conquiste para si sua felicidade, e pague em 12 prestações no cartão de crédito com pequeno juro mensal!”…

Aquela felicidade que hoje em dia nos pregam os apóstolos do Livre Mercado e do Estado Mínimo está historicamente vinculada a um modelo de regime social que não costuma gostar do processo democrático, visto que adora subir ao poder depois de perversos golpes de Estado. Foi assim na instalação do Laboratório Neoliberal em 1973, no Chile, com a derrubada violenta da União Popular de Salvador Allende; e todas as ditaduras militares instauradas antes disso na América do Sul (Guatemala, 1954; Brasil, 1964; Argentina, 1976) tiveram a ideologia dos Chicago Boys – os neoliberais ao estilo Milton Friedman e Gary Becker – como motor do empreendimento golpista.

Hoje em dia, é difícil não cair na gargalhada, ou não se indignar com a má fé, daqueles que dizem que o neoliberalismo respeita a democracia…

Hoje, Zamiátin ensina-nos a desconfiar de toda sociedade que busque decretar o fim da História e procure tornar o mundo homogêneo. Querem hoje que sejamos todos consumidores, e não mais cidadãos; espectadores, e não mais agentes.

Pode-se dizer que Zamiátin criou uma obra irrotulável, um livro difícil de domar: não é nada fácil colar uma etiqueta classificatória neste livro, até mesmo porque ele reúne uma mescla de ideários que, de maneira um pouco simplista, poderíamos dizer que se enquadram no antagonismo que opõe Liberalismo e Comunismo através da história.

O Liberalismo clássico, aquele de figuras como Locke, Stuart Mill e Tocqueville, era um movimento burguês contra a tirania e o despotismo do Antigo Regime. Reivindicava os direitos civis individuais, entre eles o direito à privacidade, compreendido como o direito de não ser incomodado pelo monstro do Estado – o Leviatã conceituado por Thomas Hobbes – em excesso.

De certo modo, Nós denuncia uma sociedade em que os direitos reivindicados pela tradição liberal não existem, como provam as casas de vidro e as tábuas das horas, sinal de uma gestão estatal invasiva e altamente despótica. Uma leitura liberal de Nós pode apontar as similaridades entre o Estado Único e o Estado Bolchevique, então em sua constituição primordial. O argumento seguiria sendas trilhadas, muitas décadas depois de Zamiátin, por Paulo Leminski, que falará de uma “unanimidade compulsória” que teria marcado o bolchevismo.

Mas Nós não é um panfleto pró-liberal, como são os livros de Ayn Rand. Nós quer também debater a tese comunista, em atuação na época histórica onde Zamiátin escreveu, na plena vigência e efervescência do regime que decretou “todo poder aos sovietes!”

A ideologia dominante, em que o Grande Benfeitor parece-se muito com a figura do velho Czar, diz que qualquer levante revolucionário é inútil: “é uma loucura como tapar a boca do cano de uma arma com a mão e achar que é possível deter o tiro.” (p. 221)

Por séculos, o czarismo disse aos seus súditos que ele era inderrubável, que jamais seria vencido, até que em 1917 tudo colapsou e um mundo novo começou a ser forjado, com os bolcheviques liderando as massas proletárias russas a partir dos escombros do velho mundo.

Escrevendo ainda nos tempos em que Lênin encabeçava o empreendimento revolucionário bolchevique, o livro de Zamiátin é também célebre por veicular a tese bastante Trotskysta da revolução permanente. É óbvio que, tendo sido escrito antes da contra-revolução Stalinista tomar conta dos processos revolucionários desencadeados em 1917, o livro de Zamiátin não poderia ter como intenção a denúncia da URSS pós-1929.

Se este livro pode ser dito visionário, é pois foi capaz de criticar o Stalinismo sem nem saber que o estava fazendo, foi anti-stalinista avant la lettre: Zamiátin lançou em 1920 palavras que, nos anos 1930, atingiam em cheio o coração do pesadelo burocrático e genocida que transformou Stalin em um “Benfeitor” que, na real, enterrou a revolução real – internacionalista e permanente – com a mesma brutalidade com que lidou com Trotsky, liquidando-o fisicamente e buscando depois apagá-lo da História…

No fim das contas, o romance de Zamiátin comunica fortemente a noção de que as revoluções não vão parar. Não há o pretenso “fim da História” pregado por Fukuyamas e congêneres – a História segue, e no futuro talvez ninguém mais vá se lembrar de que houve alguém chamado Fukuyama. Enquanto houver tirania, opressão, espoliação, injustiça, as revoluções serão infinitas.

D-503: Isso é inconcebível! Um absurdo! Por acaso não está claro que o que você está começando é uma revolução?

I-303: Sim, uma revolução! Por que isso é absurdo?

D-503: É um absurdo porque uma revolução não é possível. Porque a nossa revolução foi a última. E não é possível haver outras revoluções. Todo mundo sabe disso.

I-303: Meu querido: você é um matemático. Inclusive mais do que isso: um filósofo da matemática. Então: fale-me sobre o último número… O último, o mais elevado, o maior.

D-503: Mas, I, isso é um completo absurdo. Os números são infinitos, que último número é esse que você quer?

I-303: E que última revolução é essa que você quer? Não há última, as revoluções são infinitas. Último é para as crianças: o infinito as assusta, e é imprescindível que as crianças durmam tranquilamente à noite… (ZAMIÁTIN, p. 236)

Nós, que não somos mais tão crianças, já acordamos para o fato de que as tiranias nunca se instalam sem resistência, que as opressões nunca reinam sem insurreições, que as ditaduras nunca deixam de suscitar guerrilhas: nós sabemos que nenhuma das configurações societárias é imutável, pois tudo é dialético e dinâmico, pois tudo está em disputa e os dados ainda estão rolando. De modo que vivemos na certeza e no entusiasmo de que, como diz a rebelde de Zamiátin, ecoando Trótsky e prenunciando Che Guevara, as revoluções são de fato infinitas.

Eduardo Carli de Moraes
http://www.acasadevidro.com

 

P.S. Soube pelo site A Escotilha que Existe um filme de 1982, inspirado no romance, criado pela rede de televisão alemã ZDF, chamado Wir e disponível na íntegra no Youtube com legendas em inglês: