Fred Di Giacomo: “Seguimos insistindo nesse estranho vício de transformar dor e morte em arte.” || Entrevista à Casa de Vidro

A CASA DE VIDRO ENTREVISTA FRED DI GIACOMO

Em 4 vídeos, o escritor revela suas vivências, processos criativos e críticas à conjuntura contemporânea

Por Eduardo Carli de Moraes

Com 8 livros publicados, Fred Di Giacomo Rocha descreve-se como um “caipira punk”, nascido em Penápolis/SP, em 1984, mas que atinge em 2020 a plena maturidade enquanto artista cosmopolita e polímata – como o classificou a reportagem da revista Vice (EUA). De fato, Fred exerce sua criatividade irrefreável em várias áreas: escreve contos, poemas, reportagens, ensaios históricos, crítica musical etc.

Seu romance de estréia, o impressionante Desamparo (Editora Reformatório, 2018, 248 pgs), inspira-se no realismo mágico celebrizado por Garcia Márquez para realizar uma radiografia da colonização do interior paulista no começo do século XX, em obra que “une a precisão ágil do jornalismo com a prosa poética” e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.

Seu livro de estréia, Canções Para Ninar Adultos (Editora Patuá, 2012), foi prefaciado por Xico Sá, responsável pela seguinte síntese da prosa giacomiana: “Fred Di Giacomo faz um free-jazz que junta o repertório de vasta leitura com a velocidade fragmentada da sua geração.” Algumas das influências de Fred – autores como Bukowski, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Nelson Rodrigues – integram o time de personalidades literárias homenageadas nesta ilustração do livro:

Ilustração por Leonardo Mathias

Fred ainda encontra tempo para compor e tocar na banda Bedibê (com dois álbuns lançados: Envelhecer [2016] América [2019]); para investigar os caminhos da felicidade na companhia de sua esposa Karin Hueck no Projeto Glück; para colaborar como designer de games interativos (o mais famoso deles, Filosofighters, desenvolvido em parceria com a Superinteressante); e pra arriscar-se como crítico de cinema – como fez na provocativa análise do Coringa publicada pelo UOL. Já foi também coordenador pedagógico da escola e agência de jornalismo ÉNóis.

Um caipira em Berlim: Fred Di Giacomo, que tem várias vivências na capital da Alemanha, esteve recentemente lá participando de uma das mais importantes feiras literárias do mundo, a Feira do Livro de Frankfurt. Saiba mais na Farofafá @ Carta Capital.

Nesta entrevista exclusiva que Fred Di Giacomo concedeu à Casa de Vidro, direto de Berlim, explora o tema da descolonização e as ressonâncias de teorias e práticas decoloniais nas obras literárias e jornalísticas que escreve. Reflete também sobre o conceito de escrevivências proposto pela Conceição Evaristo. Fala sobre o cenário de literatura brasileira contemporânea, explorando as similaridades e diferenças entre escritores já bem conhecidos, como Férrez e Paulo Lins, em relação a artistas hoje em atividade e que estão marcando a produção literária do Brasil – gente como Micheliny Verunschk, Mailson Furtado, Ana Paula Maia, Anderson França, Luisa Gleiser, Itamar Vieira Jr, dentre outros. Fred garante que “das bordas do Brasil nasce uma revolução literária no hemisfério sul.”

Fred Di Giacomo, escritor multimídia e polímata, é hoje uma das vozes críticas e contestadoras mais potentes do jornalismo e da literatura no Brasil. Em artigo para a revista Cult, falando sobre o que significa fazer arte em tempos de Bolsonaro, com o incremento assustador das práticas de censura, silenciamento e auto-exílios, Di Giacomo escreveu: “Eles não querem que existamos, que escrevamos nossos histórias, que cantemos nossas canções e façamos nossos filmes. Mas mesmo que estejamos longe de casa e de nossas raízes, seguimos insistindo nesse estranho vício de transformar dor e morte em arte.”

A CASA DE VIDRO ENTREVISTA FRED DI GIACOMO
Assista aos vídeos:

PARTE 1 – Apresentação

PARTE 2 – Descolonizando a Cultura

PARTE 3 – Escrevivências e Renovações dos Cânones

PARTE 4 – Censuras e Artistas na Resistência

Créditos do vídeo: Edição por Eduardo Carli de Moraes. Trilha Sonora: Bedibê.

“Não haveria cultura nem história sem inovação, sem criatividade, sem curiosidade, sem liberdade sendo exercida ou sem liberdade pela qual, sendo negada, se luta.” (Paulo Freire em “Pedagogia da Indignação”)

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 PAULO FREIRE
Pedagogia da Indignação
Ed. UNESP, pg. 16
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“Não haveria cultura nem história sem inovação, sem criatividade, sem curiosidade, sem liberdade sendo exercida ou sem liberdade pela qual, sendo negada, se luta. Não haveria cultura nem história sem risco, assumido ou não, quer dizer, risco de que o sujeito que o corre se acha mais ou menos consciente. Posso não saber agora que riscos corro, mas sei que, como presença no mundo, corro risco. É que o risco é um ingrediente necessário à mobilidade sem a qual não há cultura nem história. Daí a importância de uma educação que, em lugar de procurar negar o risco, estimule mulheres e homens a assumi -lo. É assumindo o risco, sua inevitabilidade, que me preparo ou me torno apto a assumir este risco que me desafia agora e a que devo responder. É fundamental que eu saiba não haver existência humana sem risco, de maior ou de menor perigo. Enquanto objetividade o risco implica a subjetividade de quem o corre. Neste sentido é que, primeiro, devo saber que a condição de existentes nos submete a riscos; segundo, devo lucidamente ir conhecendo e reconhecendo o risco que corro ou que posso vir a correr para poder conseguir um eficaz desempenho na minha relação com ele.

Sem me deixar cair na tentação de um racionalismo agressivo em que, mitificada, a razão “sabe” e “pode” tudo, insisto na importância fundamental da apreensão crítica da ou das razões de ser dos fatos em que nos envolvemos. Quanto melhor me “aproximo” do objeto que procuro conhecer, ao dele me “distanciar epistemologicamente”, tanto mais eficazmente funciono como sujeito cognoscente e melhor, por isso mesmo, me assumo como tal. O que quero dizer é que, como ser humano, não devo nem posso abdicar da possibilidade que veio sendo construída, social e historicamente, em nossa experiência existencial de, intervindo no mundo, inteligi-lo e, em conseqüência, comunicar o inteligido. A inteligência do mundo, tão apreendida quanto produzida e a comunicabilidade do inteligido são tarefas de sujeito, em cujo processo ele precisa e deve tornar-se cada vez mais crítico. Cada vez mais atento à rigorosidade metódica de sua curiosidade, na sua aproximação aos objetos. Rigorosidade metódica de sua curiosidade de que vai resultando maior exatidão de seus achados.

Se a mudança faz parte necessária da experiência cultural, fora da qual não somos, o que se impõe a nós é tentar entendê-la na ou nas suas razões de ser. Para aceitá-la ou negá-la devemos compreendê-la, sabendo que, se não somos puro objeto seu, ela não é tampouco o resultado de decisões voluntaristas de pessoas ou de grupos. Isto significa, sem dúvida, que, em face das mudanças de compreensão, de comportamento, de gosto, de negação de valores ontem respeitados, nem podemos simples mente nos acomodar, nem também nos insurgir de maneira puramente emocional. É neste sentido que uma educação crítica, radical, não pode jamais prescindir da percepção lúcida da mudança que inclusive revela a presença interveniente do ser humano no mundo.

(…) Exemplo histórico de retrocesso é a luta perversa contra a reforma agrária, em que os poderosos donos das terras e que querem continuar donos das gentes também, mentem e matam impunemente. Matam camponeses como se fossem bichos danados e fazem declarações de um cinismo estarrecedor. “Não foram os nossos seguranças que atiraram nos invasores, mas caçadores que andavam pelas redondezas.” O menosprezo pela opinião pública revelado neste discurso fala do arbítrio dos poderosos e da segurança de sua impunidade. E isto no fim do segundo milênio… E ainda se acusam os Sem-Terra de arruaceiros e baderneiros porque assumem o risco de concretamente denunciar e anunciar. Denunciar a realidade imoral da posse da terra entre nós e de anunciar um país diferente.

Com a experiência histórica os Sem-Terra sabem muito bem que, se não fosse por suas ocupações, a reforma agrária pouco ou quase nada teria andado.

Na intimidade de seus assentamentos devem emocionar-se com a sensibilidade do poder tão preocupado com ouvir e seguir o apelo do Papa…

Mas o que quero dizer é o seguinte: na medida em que nos tornamos capazes de transformar o mundo, de dar nome às coisas, de perceber, de inteligir, de decidir, de escolher, de valorar, de, finalmente, eticizar o mundo, o nosso mover-nos nele e na história vem envolvendo necessariamente sonhos por cuja realização nos batemos. Daí então, que a nossa presença no mundo, implicando escolha e decisão, não seja uma presença neutra. A capacidade de observar, de comparar, de avaliar para, decidindo, escolher, com o que, intervindo na vida da cidade, exercemos nossa cidadania, se erige então como uma competência fundamental. Se a minha não é uma presença neutra na história, devo assumir tão criticamente quanto possível sua politicidade. Se, na verdade, não estou no mu ndo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá -lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas para participar de práticas com ela coerentes.

(…) Não importa o tema que se discute nestas cartas elas se devem achar “ensopadas” de fortes convicções ora explícitas, ora sugeridas. A convicção, por exemplo, de que a superação das injustiças que demanda a transformação das estruturas iníquas da sociedade implica o exercício articulado da imaginação de um mundo menos feio, menos cruel. A imaginação de um mundo com que sonhamos, de um mundo que ainda não é, de um mundo diferente do que aí está e ao qual precisamos dar forma.

Não gostaria de ser homem ou de ser mulher se a impossibilidade de mudar o mundo fosse algo tão óbvio quanto é óbvio que os sábados precedem os domingos. Não gostaria de ser mulher ou homem se a impossibilidade de mudar o mundo fosse verdade objetiva que puramente se constatasse e em torno de que nada se pudesse discutir.

Gosto de ser gente, pelo contrário, porque mudar o mundo é tão difícil quanto possível. É a relação entre a dificuldade e a possibilidade de mudar o mundo que coloca a questão da importância do papel da consciência na história, a questão da decisão, da opção, a questão da ética e da educação e de seus limites.

A educação tem sentido porque o mundo não é necessariamente isto ou aquilo, porque os seres humanos são tão projetos quanto podem ter projetos para o mundo. A educação tem sentido porque mulheres e homens aprenderam que é aprendendo que se fazem e se refazem, porque mulheres e homens se puderam assumir como seres capazes de saber, de saber que sabem, de saber que não sabem. De saber melhor o que já sabem, de saber o que ainda não sabem. A educação tem sentido porque, para serem,  mulheres e homens precisam de estar sendo. Se mulheres e homens simplesmente fossem não haveria porque falar em educação.

A consciência do mundo, que viabiliza a consciência de mim, inviabiliza a imutabilidade do mundo. A consciência do mundo e a consciência de mim me fazem um ser não apenas no mundo mas com o mundo e com os outros. Um ser capaz de intervir no mundo e não só de a ele se adaptar. É neste sentido que mulheres e homens interferem no mundo enquanto os outros animais apenas mexem nele. É por isso que não apenas temos história, mas fazemos a história que igualmente nos faz e que nos torna portanto históricos.”

“Canção Óbvia”, por Paulo Freire. Do acervo de Ana Maria Araújo. Freire