O NASCEDOURO DAS CIÊNCIAS: O sêmen da Física na escola-de-pensamento de Demócrito, Epicuro & Lucrécio

Shiva no Hadron Cpolloder

Uma representação de Shiva, deus que dança, que decora a sede do CERN em Genebra, próximo à fronteira entre França e Suíça; é ali que fica o berço da World Wide Web (a Internet) e dos aceleradores de partículas como o LHC (Large Hadron Collider)

O  NASCEDOURO DAS CIÊNCIAS:

O sêmen da Física na escola-de-pensamento de Demócrito, Epicuro & Lucrécio

Deixemos os deuses sossegados! Não atormentemos com súplicas e orações aqueles que, distantes e alheios, não nos dão ouvidos! Lucrécio recomenda, para sermos mais felizes, que aniquilemos no peito estes dois gêmeos siameses: o medo e a esperança. Não há nada a temer ou esperar em relação aos deuses ou à morte, como mestre Epicuro ensinava. Há razão, isso sim, em viver de modo deleitável e prazenteiro, cultivando e colhendo “os doces frutos de um tempo bem vivido” [1], neste período que aos mortais é emprestado para que existam: entre o nascimento e o túmulo. Carpe diem, my friends! “Gather ye rosebuds while ye may”!

Não acreditemos demais na reputação, um tanto caluniosa, imposta a Lucrécio por seus detratores, que querem pintar um retrato do poeta como um niilista, um maníaco-depressivo, que morreu no desespero e na aflição. Quanto mais leio Lucrécio, mais o adoro e mais concluo que não é um pessimista que negue valor à existência e faça a defesa do péssimo, mas muito mais aquele que afirma que a finitude da existência não impede o florescimento da philia, da sophia, da ataraxia. Os finitos podem ser felizes. Epicuro aponta os rumos.

No livro V do poema, Lucrécio retoma um de seus temas recorrentes em Da Natureza e tece mais uma elegia em louvor a Epicuro. Epicuro, na ode lucreciana, aparece como indivíduo mais valoroso do que Hércules. Lucrécio celebra a excelência de Epicuro nas virtudes (aretê), sua capacidade de consolar os males dos mortais, sua influência benigna sobre todos aqueles que, através da convivência com sua doutrina, curam-se na companhia cálida deste terapeuta da Psiquê, deste médico das mentes. “Assim como é vã a medicina que não cura os males do corpo”, diz o Epicurismo, “também é vã a filosofia que não cura os males do espírito.”

Lucrécio sempre afirma-se discípulo fiel de um mestre que pessoalmente não conheceu, mas que acompanha-o como sombra amiga. A philia que Lucrécio nutre por Epicuro é tão intensamente manifestada que o leitor pode ficar com a impressão de que o poeta cai na idolatria, que faz do sábio um novo ídolo. O mundo greco-romano, afinal de contas, estava todo saturado pelo culto aos heróis. E Lucrécio põe sua verve e seu verbo numa heroicização de Epicuro, aquele que “primeiro descobriu a regra da existência que se chama agora sabedoria, aquele que transportou a nossa vida, por meio de sua arte, de tão grandes ondas e de tão grandes trevas, colocando-a em lugar tão tranquilo e em tão clara luz.” (LUCRÉCIO. Livro V) [2]

De modo similar à uma figura como Buda, Epicuro procura ser iluminante e benfazejo através de seus ensinamentos. Buda e Epicuro, ambos, foram geniais analistas da condição humana infeliz, compreenderam como poucos as causas do Samsara, da perturbação da alma. Epicuro quer ensinar o caminho para a serenidade feliz (a ataraxia) e é enfático em afirmar que não se pode voltar às costas à Phýsis. Organismos físicos somos todos nós, os vivos; negá-lo é contrariar a Natureza e nutrir ilusões perniciosas. Não estamos separados da Phýsis, pelo contrário: dela participamos. E dela temos muito a aprender.

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“Se pude enxergar mais longe, foi porque apoiei os pés sobre os ombros dos gigantes”, disse em frase lapidar Isaac Newton, aquele que tanto contribuiu para que decifrássemos o mistério do arco-íris. Quanto mais estudo sobre os filósofos atomistas da Grécia e de Roma – Demócrito, Epicuro e Lucrécio constituindo o triunvirato clássico – mais concluo que foram gigantes da antiguidade e que sobre os ombros deles as Ciências Naturais não cessaram de subir depois, com muito proveito. Pois continuam sendo capazes de fazer-nos, aqui-e-agora, enxergar mais longe do que a estreiteza das explicações comuns nos permite. O arco-íris, o relâmpago e o trovão, os tsunamis e tempestades, tudo isso é passível de explicação física, afirmam em coro Demócrito, Epicuro e Lucrécio; podemos superar as vãs quimeras da imaginação temerosa que julgava encontrar por detrás de cada fenômeno natural uma vontade divina.

Se há todo um esforço de desmistificação rolando, não se trata de sadismo da parte de torturadores do gênero humano que desejam privá-lo de suas adocicadas ilusões; trata-se muito mais de humanos que consideram-se benfeitores ao realizarem a crítica da mitologia como esquema de explicação do mundo. O Epicurismo, sem pegar em armas, combatente mas pacifista, declara guerras contra as opiniões falsas que o vulgo nutre sobre os deuses, crendo em um Zeus ou um Jove como capazes de fúrias e descontroles, responsáveis iracundos por grandes tragédias climáticas diluvianas e apocalípticas. Epicuro procura apaziguar os espíritos afirmando: não há deuses como estes que vós imaginais, ó mortais! Cessai de temê-los, cessai de adorá-los, cessai de incomodá-los com preces e sacrifícios!

O grande inimigo a derrotar, Lucrécio não cessa de repetir, é o medo que a superstição acarreta como seu necessário subproduto. A obra de André Comte-Sponville, um dos mais salutares mestres epicuristas-spinozistas de nossa época, soube bem comunicar em seus livros os vínculos entre o medo e a esperança – gêmeos siameses – e a prisão dolorosa do Samsara que acorrenta a grande maioria dos mortais. O medo ( e a esperança também é deles parteira: sempre tememos que não aconteça aquilo que esperamos), é um afeto triste e que diminui nossa potência de existir, faz murchar a flor do conatus (para flertar com a linguagem da Ética de Spinoza).

É justamente este medo, este pavor, este apavoro, esta ansiedade, que convêm transcender e superar. O poema de Lucrécio segue este caminho animado pelo exemplo de Epicuro: “é marchando nas suas pegadas que eu vou investigando!”, celebra Lucrécio o seu mestre  [V, pg. 97]. Ambos afirmam que a compreensão da Física vai servir como um pharmakon. Que a ciência vai dissipar as infelicidades. O poema lucreciano é entusiástico em seu desejo de conduzir-nos ao porto tranquilo da ataraxia, para bem longe das tormentas cruéis do Samsara.

ATARAXIA

“Uma ciência é requerida para assegurar a paz, a felicidade do desejo em um mundo apaziguado. Esse saber é físico, ele constitui, por suas explicações, e por suas hipóteses, uma natureza. Natureza vista, tocada, sentida, plena de emanações, de fragrâncias e de rumores, de amarguras e de salgas. Corpos conjuntivos trocam sinais conjuntivos com outros corpos conjuntivos. Os compostos de átomos encontram-se mutuamente. (…) Se você morre, é que a conjunção se desfaz. Mas nada é mais refinado do que os sentidos, mais exato, mais preciso, mais fiel. (…) Ninguém pode conceber receptor mais sofisticado, máquina mais elaborada que os órgãos sensoriais.” (SERRES, pg. 164) [3]

Michel Serres torna explícitos os vínculos entre a física e a ética em Lucrécio e no conjunto da doutrina Epicurista. Nas antípodas do platonismo, que considera os cinco sentidos como enganadores e ilusórios, recomendando o “salto” para o reino dos ideais imorredouros, paradigmas incorruptíveis e imortais dos quais as coisas sensíveis e mortais não passam de cópias decaídas, Epicuro e Lucrécio irão afirmar a plenitude da realidade objetiva, irão defender os direitos da Phýsis no seio de quem nascemos e conectada a quem sempre necessariamente existimos.

Platão delirava com o sobrenatural, pirava com suas abstrações descarnadas, lançando anátemas sobre as portas da percepção, esta ponte real que existe no mundo material para intercâmbio entre organismos atômicos. A filosofia materialista é repleta de vias de fluxo, de estradas de comunicação, onde viajam átomos e informações: o espaço está repleto de simulacros voadores que são emanados dos objetos materiais. No cinema do real, as coisas de fato existentes emanam de suas superfícies um simulacro, uma imagem-de-si, que veloz atravessa os ares e penetra aparelhos perceptivos de organismos atômicos conscientes e relativamente abertos às influências de seu meio externo, natural e social. Ouçamos Serres:

“A teoria dos simulacros (…) voando no espaço de objetos em objetos, ou de emissores a receptores, é uma teoria da comunicação… Carapaças finas descolam-se dos objetos para fins de emissão. E sabemos com qual velocidade elas atravessam o espaço de comunicação. No final, na recepção, o aparelho sensorial entra em contato com esse fino envoltório. Então a visão, o olfato, a audição, e assim por diante, não são senão toques. A sensação é um tato generalizado. O mundo não está mais à distância, está na proximidade, tangível. (…)

Como todos os filósofos apaixonados pelo real objetivo, Lucrécio tem o gênio do tato e não da visão… Saber não é ver, é tomar contato, diretamente, com as coisas: de outro lugar elas vêm a nós. A ciência de Afrodite é uma ciência de carícias. Os objetos, à distância, trocam sua pele, mandam-se beijos. (…) Fenomenologia da carícia, saber volúpia.”  (SERRES, pg. 166) [4]

Bosch - Jardim das delícias terrenas

Bosch – Jardim das delícias terrenas

Revalorização dos sentidos, pois, contra a calúnia platônica contra a carne, prolongada por dois milênios pelos monoteísmos. Em Epicuro e Lucrécio, não há porque recusar-se a viver plenamente o corpo, já que este é a verdade, aquilo através do qual participamos da Phýsis, do Cosmos, da Natureza como um todo. Toda a tradição atomista-materialista irá afirmar uma indissolúvel conexão e inter-dependência entre corpo e espírito, soma e psique, de modo que Demócrito, Epicuro e Lucrécio são os clássicos na história do pensamento que fundamenta-se nos sólidos alicerces da unidade psico-somática. Mais à frente, na história da filosofia, tanto Spinoza quanto Nietzsche, para ficar em dois exemplos potentes, irão subir sobre os ombros destes gigantes.

“A substância do espírito é composta de um corpo submetido ao nascimento e não pode durar incólume por um tempo sem fim”, escreve Lucrécio (IV, p. 98). C’est fini, Monsieur Platon!  O Epicurismo é totalmente incompatível com o Platonismo, já que este instaura um dualismo corpo-alma (que Sócrates herda de Pitágoras e que Platão sacramenta na história da filosofia ocidental), cindindo a unidade, postulando o fantasma imaterial como hipótese metafísica. Epicuro e Lucrécio varrem a metafísica do mapa e dizem que a física é o suficiente. Tudo é físico, até mesmo o espírito e os deuses. Eis a revolução científica em seu nascedouro. Eis o sêmen da Física que jorra sobre Gaia. Eis Vênus querendo reclamar supremacia sobre Marte.

A importância histórica do Epicurismo e sua relevância contemporânea (e talvez sempiterna) está em seu convite para que consolidemos uma aliança com a Natureza. O Epicurismo é uma Philia pela Phýsis, é a sabedoria de estar amigado com o natural. Na civilização grega tão marcada pela violência, pela guerra, pela rivalidade, pelo ágon que se manifesta em Olimpíadas e em Ilíadas, em Concursos Competitivos de toda sorte e em Guerras de Tróia e outras carnificinas, Epicuro luz como força pacifista e pacificadora. Sobre isso, Michel Serres, formulador do conceito de Contrato Natural em seu livro neo-clássico, também encontrou bela expressão:

“Epicuro abandonou as armas. A nova aliança com a natureza de Epicuro fecha com o período heraclitiano, no qual a guerra é a mãe de todas as coisas, no qual a física permanecia sob o império de Ares. Logo, Lucrécio critica Heráclito com severidade, mas Empédocles com deferência (este último adivinhara o surgimento do contrato, por sua introdução da Amizade ou do Amor, face ao Ódio ou a Discórdia; a alegre Afrodite já se levantara. Epicuro e Lucrécio depuseram as armas, colocaram Marte fora da física.” (SERRES, pg. 177) [5]

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O Cosmos não é mais Marte, mas sim Shiva – com o perdão deste bizarro sincretismo. Se é benfazejo, benéfico e prazenteiro frequentar o Jardim do Epicurismo, é também pois ali está o nascedouro de uma outra ciência, de uma física amorosa, sob o signo de Vênus e não de Marte. Pois hoje já podemos perceber à que ruína catastrófica trouxe-nos o projeto da ciência control-freak, antropocêntrica, platônico-cartesiana: “Na aurora da ciência moderna”, lembra Serres, fomos desencaminhados por pensadores como Bacon e Descartes:

“Descartes decreta que é preciso tornarmo-nos senhores e possuidores da natureza. A batalha recomeça e a natureza é o adversário.  (…) É a lei da caça, para a colocar em xeque-mate. Epicuro acaba de fracassar, assim como a Afrodite de Lucrécio. O método [cartesiano] é um jogo mortal e não um coito. Retorno de Hércules em Bacon… Se o saber funciona para a morte e para a destruição, é que Marte ou o militar, o comandante de Bacon, o senhor e possuidor cartesianos, disso cuidam desde o começo. (…)

Com Epicuro e Lucrécio, a sabedoria helênica atinge um de seus pontos maiores. Onde o homem é no mundo, do mundo, na matéria e da matéria. Aí ele não é um estranho, mas um amigo, um familiar, um comensal e um igual. Ele mantém com as coisas um contrato vênero. Muitas outras sabedorias e muitas outras ciências são fundadas, ao contrário, sobre a ruptura do contrato. O homem é um estranho ao mundo, à aurora, ao céu, às coisas. Ele as odeia, ele luta contra elas. Seu meio é um inimigo perigoso a combater, a manter na sujeição. Nevroses marciais, de Platão a Descartes, de Bacon a nossos dias. (…) Já Epicuro e Lucrécio vivem um universo reconciliado.” (SERRES, pgs. 177, 181 e 203) [6]

A SER CONTINUADO…

Eduardo Carli de Moraes / Goiânia Goyaz / Junho de 2015

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Michel Serres

Michel Serres

[1] EPICURO. Carta a Meneceu (Sobre a Felicidade).
[2] LUCRÉCIO. Da Natureza Das Coisas (De Rerum Natura). Livro V. Pg. 97. In: Os Pensadores, Abril Cultural.
[3] [4] [5] [6] SERRES, Michel. O Nascimento da Física No Texto de Lucrécio. Trad. Péricles Trevisan. São Paulo: Editora UNESP; São Carlos: EdUFSCAR, 2003.

VÍDEOS RECOMENDADOS

Michel Serres entrevistado no Roda Viva da TV Cultura

Filme completo: Ponto de Mutação (Mindwalk), da obra de Fritjof Capra

Por um Materialismo da Multiplicidade (por Eduardo Carli de Moraes @ A Casa de Vidro.com)

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POR UM MATERIALISMO DA MULTIPLICIDADE

Por Eduardo Carli de Moraes

“Pensar no corpo antes de pensar na alma
é imitar a natureza que fez um antes do outro.”
LA METTRIEDiscours Sur Le Bonheur
(Ed. Fayard, Paris, 1987, p. 271)

Seria uma tolice transplantar para o âmbito da Filosofia o maniqueísmo, esquema mental típico das ideologias religiosas carniceiras, que cortam a realidade em dois (Bem e Mal, Mundo e Deus, Corpo e Alma). No trato com a história da filosofia, não se trata de um julgamento onde devemos condenar ou celebrar as diferentes doutrinas e então enfiá-las à força no campo das boas ou das más filosofias. Muito mais fecundo para o amelhoramento da vida é lidar com mente aberta e coração alerta com as múltiplas e diversas filosofias nascidas nestes mais de 2.500 anos de história da philia pela sophia. Filosofia não foi feita pra fechar a mente no casulo dos dogmas, mas para abri-la como uma vasta janela que nos entrega à vivência da vastidão da matéria-em-devir – ela, que em seu seio carrega, móvel e mutante, a teia da vida em evolução (e em perigo). Filosofar é perigoso e inquietante, ou então não é filosofar, mas sim adormecer no colo dos dogmas.

No Abecedário, Gilles Deleuze sublinha que a palavra filosofia carrega em seu seio a amizade, philia, um dos nomes gregos do Amor. Filosofia não é culto à racionalidade fria, “pura”, des-apaixonada; filosofia é amizade pela sabedoria, amor ao conhecimento que é útil para o bem-viver e o bem-agir. No Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, André Comte-Sponville reflete minuciosamente, em seu capítulo de encerramento sobre o Amor, sobre a tríade grega composta por Eros, Philia e Agapé. Não se trata, no caso da filosofia, de sentir eros pela sabedoria, como se esta nos incitasse à luxúria dos abraços carnais e dos prazeres sensíveis; o que não significa que a filosofia não possa ser atividade profundamente hedônica, deleitosa e aprazível, especialmente quando, como em Nietzsche ou Epicuro, em que vemos o pensamento fazendo suas festas, curtindo a animação de seus jardins, embriagando-se com seus vinhos, cantando seus evoés… 

A senhorita sophia, que filósofos e filósofas perseguem e cortejam, não instiga somente o ímpeto erótico, calcado no biológico, simbolizado pelo termo Eros, mas convoca a um relacionamento duradouro, amigável, mutuamente recompensador. A filosofia se situa, de preferência, nem no âmbito do erótico-pulsional (Eros) nem no da caridade egosacrificante (Ágape), mas sim no seio de Philia, o amor-amizade ou o amor feliz (pois os há, eis um fato da existência! E a raridade dos amores felizes jamais provou que fossem impossíveis… Os amores felizes, em suma, são raros mas possíveis). Sophia quer entrar conosco em uma relação de philia, o que significa que esta dama quer de nós não somente um one night stand, não somente uma transa casual e esquecível, mas um compromisso de fidelidade. Porém é impossível ser fiel à tudo: sempre escolhe-se ser fiel àquilo que a vida-em-nós sente como benéfico, aumentador da potência de existir (como dirá Spinoza), e no meu caso sinto-me impelido à fidelidade a uma tradição filosófica em específico, o materialismo. Aqui entendido, para usar a expressão de Comte-Sponville, como “um monismo da matéria”.

Sem sermos maniqueístas, tentemos refletir sobre o materialismo enquanto tradição filosófica que atravessa seus 25 séculos de devir histórico. Não adianta tacar pedras e tomates sobre o materialismo achando que uma agressão, um ataque, uma ofensiva violenta, é um argumento. Depredar o materialismo com truculência é o esporte predileto de muita gente rasa e fanática, que confunde os socos verbais que desfere com uma refutação minimanente válida. Dito isso, sustento a tese discutível que estou aqui para defender: o materialismo não foi refutado. Em termos mais particulares: Epicuro, Lucrécio, Diderot, Marx etc. – pensadores pertencentes à “linha de Demócrito”, como dizia Lênin (que opunha a tradição Democritiana à “linha de Platão” [1]) – esta tradição milenar do materialismo prossegue vivíssima e decerto terá um longo futuro (caso a humanidade o tenha, o que é de se duvidar em nossos tempos de tão vastos ecocídios…).

O primeiro equívoco a evitar é igualar materialismo e capitalismo. Até com uma certa frequência, ouve-se os detratores do capitalismo lançando seus anátemas e condenações contra os sujeitos demasiado “materialistas” de nossas sociedades industriais de alto consumo, como se a devastação ecológica global pudesse ser compreendida como culpa da “conduta materialista” do capitalistão egocêntrico e concentrador-de-riqueza, voluptuoso gozador de prazeres sensíveis sem fim, que ignora e despreza a penúria e a miséria que sabe existir em profusão no mundo. É preciso compreender materialismo como doutrina filosófica, ética, sócio-política, para além do uso pejorativo frequente do termo.

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“É sabido que a palavra materialismo é empregada principalmente em dois sentidos, um trivial, outro filosófico. No sentido trivial, designa certo tipo de comportamento ou de estado de espírito, caracterizado por preocupações “materiais”, isto é, no caso, sensíveis ou baixas. Querer ganhar muito dinheiro, gostar da boa mesa, preferir o conforto do corpo à elevação do espírito, buscar os prazeres em vez do bem, o agradável em vez do verdadeiro… tudo isso é materialismo, no sentido trivial, e vê-se que essa palavra é usada sobretudo pejorativamente. O materialista é, então, o que não tem ideal, que não se preocupa com a espiritualidade e que, buscando apenas a satisfação dos instintos, sempre se inclina para seu corpo, poderíamos dizer, em vez de para sua alma. Na melhor das hipóteses, um bon vivant; na pior: um aproveitador, egoísta e grosseiro.” [2]

O materialismo, para além de seu sentido pejorativo, é uma tradição de pensamento que não é somente crítica das ilusões idealistas, espiritualistas ou religiosas, mas também guia ético e político para uma existência transformadora e congregadora. Quando acusa-se alguém de materialista por “não ter ideais”, cai-se no ridículo: figuras como Karl Marx, Piotr Kropotkin ou Vladimir Lênin, não obstante serem materialistas convictos em matéria filosófica, não deixavam por isto de serem motivados por um ideal de justiça social e de convivência intersubjetiva “camarada” que, de tão incomuns, merecem mesmo ser ditas “ideais”. O comunismo ou o anarquismo são ideais, no sentido de que neles encontra-se formulada uma situação inexistente no presente concreto do mundo, mas diferem dos ideais dos idealistas / espiritualistas pois são ideais da imanência, ideais que jamais deixam o solo da história e da física. O Céu com que sonham as pessoas-de-fé, e que julgam acessível só após à morte, e somente aos bons e aos justos (aos que passarem na prova do Julgamento Final), é também um ideal, mas lançado para a transcendência do além-túmulo. O materialismo, portanto, não é ausência de ideal, mas o ideal de melhorar este mundo, no curso desta História. O ideal materialista histórico “localiza-se” no futuro e não no além. 

Em matéria de ética, o materialista costuma dar a primazia ao corpo (mortal) e não a um espírito supostamente imortal. O bem do corpo é o que importa mais, o que não significa que o materialista seja um crasso perseguidor de volúpias imediatas, já que o bem do corpo envolve necessariamente a saúde física e mental. Materialismo: primazia da saúde, do bem-estar, o que não impede de exercitar as virtudes da temperança, da prudência, da generosidade, da justiça… Na frase da epígrafe, La Mettrie sugere que a natureza fez o corpo antes da alma: tese autenticamente materialista, já que aquilo que chamamos de “alma” é tido pela tradição do materialismo como algo que surge posteriormente, no tempo, à base material corporal. Para muitos materialistas, dá-se o nome de “alma” a algo que está no corpo, que participa das atividades do corpo, que nunca existiu nem pode existir independente do corpo. Materialismo, portanto, é doutrina da alma mortal, ou seja, da Psique temporária, da vida individual fugaz. Filosofia do reconhecimento pleno de nossa mortalidade inelutável.

Não faltaram, entre os pensadores idealistas, aqueles que procuraram depredar o materialismo: Leibniz é um dos principais detratores das “más doutrinas dos que crêem que a alma é material” ou que o ser humano “não passa de um corpo” [3]. O ataque de Leibniz contra alguns dos maiores representantes do materialismo filosófico (o Pangloss das Mônadas julga, por exemplo, “má e falsa” a doutrina de Epicuro) serve-nos como síntese da compreensão rasa e medíocre que os idealistas costumam ter do materialismo. De fato, o materialismo também se caracteriza, escreve Comte-Sponville, “pela rejeição do espiritualismo, se por esta última palavra entendermos a afirmação de que existe uma substância espiritual (a alma ou o espírito), independente da matéria, que seria, no homem, princípio de vida ou de ação. […] O materialismo também é, contra todas as filosofias da alma, uma filosofia do corpo.” [4]

O materialismo, desde a Antiguidade greco-romana conectado às físicas atomistas de Demócrito, Epicuro, Lucrécio etc., é um monismo físico (em oposição ao dualismo idealista, que cinde o real em dois, impondo uma cisão, por exemplo, entre o natural e o sobrenatural). O materialismo defende a tese de que a Matéria (ou seja, para sermos fiéis à tradição Democritiana-Epicurista, os átomos em movimento no espaço), é a substância única – e tudo que chamamos de “espírito” é derivado das “danças” imensas e múltiplas dos átomos. “Nenhum filósofo, é evidente, pode negar absolutamente a existência do pensamento: seria negar a si mesmo e pensar que não pensa. O monismo dos materialistas”, esclarece Comte-Sponville, “não é portanto a negação da existência do pensamento, mas apenas a negação da sua independência ou, se preferirem, da sua existência autônoma: não se trata de dizer que o pensamento não existe, mas simplesmente (se é que isso pode ser simples!) que ele é tão material quanto o resto…” [5]

No caso do Marxismo, o materialismo dito histórico/dialético propõe uma solução para aquela que Engels sugere ser a questão fundamental de toda filosofia (que é “a questão da relação entre o pensamento e o ser, entre o espírito e a natureza”): “o materialismo considera a natureza [material] a única realidade.” [6] A matéria é realidade objetiva, e dela participamos; a própria História é material, e a matéria é histórica pois eternamente móvel. Em outros termos: é a matéria que pensa, é a matéria que sente, é a matéria que compõe sinfonias, que pinta quadros, que ergue catedrais e fábricas, que escreve tratados de filosofia etc. Todo gênio da história da arte criou através de seu corpo material, todo grande pensador fez o que fez pelas ações (materiais, físicas, naturais) de seu cérebro, de sua sensibilidade, enfim de seu organismo material vivo. A Fenomenologia do Espírito A Crítica da Razão Pura são também frutos de corpos. O que se chama de “espírito” não passa de um dos produtos – decerto um dos mais complexos, intrigantes e múltiplos – da matéria. A palavra “Matéria”, pois, não deve ser entendida como sinônimo de algo homogêneo, mas sim como imensa diversidade e inumerável riqueza de formas, cores, velocidades, aromas, sons. Uma orquestra que toca uma sinfonia, pássaros que cantam em uma floresta, ondas oceânicas golpeando praias e rochas, tudo isso é do âmbito da materialidade – o que nos abre para um problema suplementar, o de como diferenciar o materialismo do panteísmo.

No palco da História, sempre cheio de som e fúria, o materialismo está envolto com as hostilidades, os antagonismos, os conflitos: é uma “filosofia de combate” que, como observa Marcel Conche, “supõe um adversário” (o idealismo, o espiritualismo…) e “se define em função desse adversário” [7]. É por isso que às vezes o materialismo fica preso na rede de conceitos do inimigo – e precisa adotar o vocabulário dualista ou maniqueísta de seu adversário no sentido de tentar convencer ou persuadir o oponente idealista/espiritualista. A síntese que Comte-Sponville nos fornece do materialismo é a seguinte:

“Chama-se materialismo a doutrina que afirma que tudo é matéria ou produto da matéria (salvo o vazio) e que, por conseguinte, os fenômenos intelectuais, morais ou espirituais (ou assim supostos) têm realidade secundária e determinada. […] O materialismo se caracteriza assim, negativamente, pela rejeição do dualismo e do espiritualismo (não existe nem mundo inteligível nem alma imaterial), do ceticismo e do criticismo (a realidade em si não é inconhecível), enfim e em geral do idealismo. É incompatível […] com toda crença num Deus imaterial, criador ou legislador. […] O materialismo, repitamos, é antes de mais nada um pensamento de recusa, de combate. Trata-se (Lucrécio, La Mettrie e Marx não cansaram de lembrar) de vencer a religião, a superstição e, em geral, a ilusão. O materialismo é uma empresa de desmistificação. […] O materialismo permanece submetido, e cada vez mais, ao desenvolvimento das ciências naturais, desenvolvimento esse que ele teve primeiro de antecipar (o atomismo antigo) e que agora se contenta, na maioria das vezes, com acompanhar. O essencial não está aí: o materialismo, considerado em seu impacto máximo, é sobretudo uma teoria do espírito. Trata-se de explicar o espírito por outra coisa que não ele mesmo e, em especial, explicar este ou aquele fenômeno mental, cultural ou psíquico por processos materiais, sejam eles de ordem cerebral (La Mettrie), econômica (Marx), sexual (Freud) ou outros. Daí vários tipos de materialismo… A pluralidade das doutrinas e dos métodos, aqui, apenas reflete a pluralidade, talvez irredutível, do real… O materialismo é um monismo pluralista: se tudo é matéria, tudo é múltiplo.

Explicar o superior pelo inferior (o espírito pelo corpo, a vida pela matéria inanimada, a ordem pela desordem…) é, de Demócrito a Freud, a conduta constante do materialismo… Em todo o caso o materialismo sempre tem, como teoria, essa tendência a descer, isto é, a buscar a verdade, como dizia Demócrito, no fundo do abismo, quer esse abismo seja o da matéria e do vazio (os atomistas), o do corpo (La Mettrie, Diderot…), o da infra-estrutura econômica (Marx) ou o de nossos desejos inconscientes (Freud)… Essa descida, na teoria, tem por contraponto uma subida, no real ou na prática. […] O pensamento materialista, percorrendo ao revés o aclive do real, tudo o que faz, ao longo da sua descida, é pensar a ascensão que a torna possível. ‘É da terra ao céu que se sobe aqui’, escreviam Marx e Engels em A Ideologia Alemã, e a imagem pode ser generalizada. A história se inventa de baixo para cima… 

Se a vida se explica pela matéria inanimada, é que a matéria produz a vida, como uma novidade que ela decerto determina mas que não possui… A matéria, nesse sentido, é criadora, e não cessa de gerar o novo… Daí dois pólos, que podemos chamar de desespero e beatitude, necessários um e outro, e que definem o campo do materialismo filosófico. A verdade está no fundo do abismo, dizia Demócrito; mas a filosofia, diz também Lucrécio, ‘nos eleva até o céu…’ Desespero e beatitude, abismo e céu, teoria e prática… no fim das contas são uma só e mesma coisa (como o nirvana e o samsara, de acordo com Nagarjuna)…” [8]

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

[1] LÊNIN. Matérialism et empiriocriticisme. Oeuvres complètes, t. 14, Paris-Moscou, 1962, p. 132.

[2] COMTE-SPONVILLE. O Que É Materialismo? In: Uma Educação Filosófica, Ed. Martins Fontes, p. 104.

[3] LEIBNIZ. Réplique aux réflexions de Bayle (1702). Ed Janet, 1866, p. 583.

[4] COMTE-SPONVILLE. Op Cit. p. 109.

[5] Idem. P. 111.

[6] ENGELS, F. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Paris, 1968, I, p. 23.

[7] CONCHE, M. Orientation philosophique. P. 174.

[8] COMTE-SPONVILLE. Op Cit. p. 120-126.

E.C.M., Dezembro de 2014

Budismo – Curso em 24 aulas de 30 min. com o Prof. Malcolm David Eckel (vídeos em H.D.)

buddha-thousands-of-candles“This course is a survey of the history of Buddhism from its origin in India in the sixth century B.C.E. to contemporary times. The course is meant to introduce students to the astonishing vitality and adaptability of a tradition that has transformed the civilizations of India, Southeast Asia, Tibet, China, Korea and Japan, and has now become a lively component in the cultures of Europe, Australia, and the Americas.

To understand the Buddha’s contribution to the religious history of the world, it is important to know the problems he inherited and the options that were available to him to solve them. In ancient India, before the time of the Buddha, these problems were expressed in the Vedas, the body of classical Hindu scriptures. The Vedas introduce us to scholars and ritual specialists who searched for the knowledge that would free them from the cycle of death and rebirth. The Buddha inherited this quest for knowledge and directed it to his own distinctive ends.

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“Born as Siddharta Gautama into a princely family in northern India about 566 B.C.E., the Buddha left his father’s palace and took up the life of an Indian ascetic. The key moment in his career came after years of difficult struggle, when he sat down under a tree and “woke up” to the cause of suffering and to its final cessation. He then wandered the roads of India, gathering a group of disciples and establishing a pattern of discipline that became the foundation of the Buddhist community. The Buddha helped his disciples analyze the causes of suffering and chart their own path to nirvana. Finally, after a long teaching career, he died and passed quietly from the cycle of death and rebirth.

After the Buddha’s death, attention shifted from the Buddha himself to the teachings and moral principles embodied in his Dharma. Monks gathered to recite his teachings and produced a canon of Buddhist scripture, while disputes in the early community paved the way for the diversity and complexity of later Buddhist schools. Monks also developed pattern of worship and artistic expression that helped convey the experience of the Buddha in ritual and art.

The Buddhist King Asoka, who reigned from about 268 to 239 B.C.E., sent the first Buddhist missionairies to Sri Lanka. Asoka left behind the Buddhist concept of a “righteous king” who gives political expression to Buddhist values. This ideal has been embodied in recent times by King Mongkut (18 October 1804 – 1 October 1868) in Thailand and Aung San Suu Kyi, who won the 1991 Nobel Peace Prize for her nonviolent resistance to military repression in Burma.

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Aung San Suu Kyi (born 19 June 1945), Nobel Peace Prize Winner – Wikipedia Bio: “Influenced by both Mahatma Gandhi’s philosophy of non-violence and more specifically by Buddhist concepts, Aung San Suu Kyi entered politics to work for democratization…”

Buddhism entered China in the second century of the common era, at a time when the Chinese people had become disillusioned with traditional Confucian values. To bridge the gap between the cultures of India and China, Buddhist translators borrowed Taoist vocabulary to express Buddhist ideas. Buddhism took on a distinctively Chinese character, becoming more respectful of duties to the family and ancestors, more pragmatic and this-worldly, and more consistent with traditional Chinese respect for harmony with nature. During the T’ang Dynasty (618-907), Buddhism was expressed in a series of brilliant Chinese schools, including the Ch’an School of meditation that came to be known in Japan as Zen.

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Since the end of the 19th century, Buddhism has become a respected part of life in countries far beyond the traditional home of Buddhism in Asia. The teaching that began on the plains of India 2.500 years ago has now been transformed in ways that would once have been unimaginable, but it still carries the feeling of serenity and freedom that we sense in the image of the Buddha himself. In its 2.500-year history, from the time of the Buddha to the present day, Buddhism has grown from a tiny religious community in  northern India into a movement that now spans the globe. It has shaped the development of civilizations in India and Southeast Asia; has had a major influence on the civilizations of China, Tibet, Korea, and Japan; and today has become a major part of the multi-religious world of Europe and North America.

In the following lectures (watch the videos below) we’ll explore the Buddhist tradition as the unfolding of a story. It is the story of the Buddha himself and the story of generations of people who have used the model of the Buddha’s life to shape not only their own lives but the societies in which they live…”

Professor Malcolm David Eckel, Course Guidebook. 

INFO ON THE AUTHOR:  Professor Malcolm David Eckel holds two bachelor’s degrees, one in English from Harvard University and a second in Theology from Oxford University. Professor Eckel earned his master’s degree in theology at Oxford University and his Ph.D. in the Study of Comparative Religion at Harvard University. He held teaching positions at Ohio Wesleyan University, Middlebury College in Vermont, and the Harvard Divinity School, where he served as acting director of the Center for the Study of World Religions. At Boston University, Professor Eckel teaches courses on Buddhism, comparative religion, and the religions of Asia. In 1998, Professor Eckel received the Metcalf Award for Teaching Excellence, the university’s highest award for teaching. In addition to writing many articles, Professor Eckel has published two books on Buddhist philosophy: “To See the Buddha: A Philosopher’s Quest for the Meaning of Emptiness” and “Buddhism: Origins, Beliefs, Practices, Holy Texts, Sacred Places”. – www.thegreatcourses.com

to be continued…

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