Uma leitura feminista da peça “Mãe Coragem e Seus Filhos”, de Bertolt Brecht (1898 – 1956) || por Eduardo Carli

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“…a pearl on the pathway of war she was,
And a pearl all genuine, too.
Though sometimes laughable she might be,
More oft was honor her due.”

A song by Runenberg, Lotta Svärd
(From “Songs of Ensign Stal”, 
New York, G.E. Stechert, 1925)

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INTRODUÇÃO

Tenho imensa admiração por Bertolt Brecht (1898 – 1956). Como dramaturgo, poeta e pensador político, Brecht é de um brilhantismo raro. Sua arte é de alto impacto e influenciou profundamente a posteridade, algo que sente-se claramente, por exemplo, no cinema de Lars Von Trier, ou em certas fases da carreira de Chico Buarque de Hollanda, em especial “A Ópera do Malandro”, uma adaptação da “Ópera dos Três Vinténs” de Brecht e Weill.

Compartilho aqui um artigo que escrevi na tentativa de interpretar uma de suas célebres peças, “Mãe Coragem e Seus Filhos”, sob um viés feminista. Tento compreender o militarismo e o belicismo como uma patologia do patriarcado. Estabeleço conexões com filmes – como “Nascido Para Matar” de Stanley Kubrick, e “A Corrida do Ouro” de Chaplin – e canções, como “Only a Pawn In Their Game”, de Bob Dylan.

Também procuro apontar similaridades entre a dramaturgia brechtiana e a tragédia grega, em especial “Ifigênia em Áulis” de Eurípides e “Oréstia” de Ésquilo. É um texto bastante extenso, mas senti que não poderia fazer justiça a uma obra tão complexa sem entrar em explorações minuciosas da trama. “Mãe Coragem” é uma experiência teatral inesquecível – mesmo para aqueles que, como eu, nunca puderam presenciá-la encenada e só tiveram contato com o texto. Confiram!

À direita: a atriz Meryl Streep interpreta Mãe Coragem. Saiba mais sobre esta produção assistindo ao filme (altamente recomendado!) “Theather of War” (download)

I. AS MÃES E AS GUERRAS

Ela está decidida a não atirar suas pérolas aos porcos. Ou melhor: esta mãe bate o pé e diz não ao Poder. Não vai permitir, sem resistência e sem luta, que seus filhos lhe sejam sequestrados, tragados para a guerra, roubados do ninho, para virar carne moída!

Infelizmente, as guerras às vezes são mais fortes que as vontades das mães.

Para citar um exemplo da atualidade: aprenderam sua impotência, através de amargas experiências, as mães de 400 mães de Gaza que, durante a ofensiva israelense de 2014, tiveram os frutos de seus ventres trucidados pelas bombas sionistas. Que a Mãe Coragem de Brecht possa ajudar-nos a aquecer a chama da empatia, com tanta frequência adormecida no peito, e nos leve a perceber cada vida ceifada pela guerra como o aniquilamento de uma individualidade única, insubstituível, cuja extinção causa desastres afetivos e existenciais em todos aqueles que constituíam com a pessoa morte uma teia de relações.

Às vezes mães são impotentes para impedir a carniceria que lhes transforma os filhos em cannon fodder (carne de canhão). Mãe Coragem é uma pacifista por uma razão bem simples, bem menos refletida e teoricamente refinada do que as doutrinas de um Mahatma Gandhi ou de um Martin Luther King: seu pacifismo de mãe nasce mais das vísceras do que do intelecto. Ela odeia a guerra pois não quer ver seus filhos sendo assassinados nela. Mas o que ela pode fazer contra a mega-maquinaria bélica?

Os tempos são terríveis: ela olha ao seu redor e quase todo mundo está só “pele e ossos”. A fome é imensa, disseminada e sem misericórdia. Para dar uma noção dessa miséria, digamos que se assemelha àquela de Carlitos quando ele decide assar e comer sua própria bota, em uma das cenas imortais de Charlie Chaplin em A Corrida do Ouro (The Gold Rush). No primeiro ato, cena 2, Mãe Coragem declara sobre as pessoas ao seu redor: “Elas estão tão esfomeados que arrancam raízes da terra para comer. Eu poderia ferver um cinto-de-couro e faria com que suas bocas salivassem.” (pg. 35)

Carlitos janta as próprias botas em "A Corrida do Ouro" (The Gold Rush), clássico do cinema mudo.

Carlitos janta as próprias botas em “A Corrida do Ouro” (The Gold Rush), clássico do cinema mudo.

Esta feminista espontânea não precisou ler Judith Butler ou Beatriz Preciado, nem ouvir Pussy Riot ou riot girrrls, para perceber os males que faz a elefantíase de testosterona nos neurônios e nas sociedades. Até tenta rebelar-se contra o Patriarcado e sua mania de belicismo. Mas seu poder é pouco, como foi pouco o poder somado de todas as mães de Guernica, de todas as mães de Nagasaki, de todas as mães de Gaza (e assim por diante…).

Mãe Coragem não é uma pacifista de academia, de cátedra, de discursinhos na ONU. Ela é uma pacifista de sangue quente, sem rede de proteção, que atravessa um fio estendido sobre o abismo, um pouco como o tight-rope dancer de Assim Falou Zaratustra, aquele que fez do perigo sua vocação. Mãe Coragem talvez preferisse uma vida tranquila, sem preocupações, mas calhou de nascer em tempos perigosos, sombrios, fratricidas. Não pediu nem escolheu, mas a guerra a rodeia com sua fúria e sua insanidade, obrigando-a a lidar com as potências mortíferas com um rebolado improvisado, na urgência da prática cotidiana. A Guerra, como Cronos na mitologia grega, devora um a um os rebentos de Mãe Coragem.

Albert Camus chamou um de seus melhores livros  L’Homme Revolté (O Homem Revoltado), e uma das poucas falhas de livro tão magistral é sugerir em seu título que a revolta é coisa exclusivamente masculina. Mas é claro que há uma revolta feminina – Emma Goldman, Simone Weil ou Arundhati Roy exemplificam-na bem – que é digníssima de nossa atenção e admiração! Mãe Coragem, parece-me, tem também algo do espírito destas rebeldes-de-saia, mas é de uma rebeldia que parece irradiar de seu útero: em intensa angústia materna, ela suspeita que a guerra irá privá-la de seus filhos, provavelmente arrebatá-los pra sempre. Ela se levanta em resistência ao draft militar, logo na primeira cena, interpondo-se entre o Exército e seus filhos como se defendesse a prole, no ninho, contra um abutre predador.

O mais desesperador desta cena é que o leitor ou espectador percebe que Mãe Coragem é apenas uma frágil tocha de feminilidade em um oceano de macheza. É uma voz solitária clamando pela paz em meio ao barulho ensurdecedor dos tambores de guerra, das explosões de bombas e do ribombar das balas cuspidas pelos rifles.

Os próprios filhos acabam “fisgados” pela ideologia do militarismo e começam a convencer-se de que a guerra não irá matá-los. Passam a crer que vão dar um jeito de escapar dos ataques dos adversários e que vão acabar sendo aureolados com renome glorioso. A epidemia da peste bélica se esparrama pois muitos se deixam fisgar pela isca que é a promessa de Glória nos feitos militares. Fazem poses de heróis por antecipação enquanto caminham para as batalhas urrando: “é preciso bem mais do que uma guerra para me assustar!”

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Em Nascido Para Matar (Full Metal Jacket), Stanley Kubrick escancarou o quanto o militarismo está conectado com um comportamento machistóide. Os soldados do exército dos EUA, que estão sendo preparados para suas missões no Vietnã, marcham sob o comando feroz da disciplina do comandante, berrando obscenidades com voz grossa. Cotidianamente, são humilhados e judiados, inclusive com socos no saco e outras delicadezas, para que fiquem muito machos. Preparar alguém para a guerra significa aniquilar quaisquer tendências às compaixões feminis, todos ímpetos “maricas” à empatia ou à misericórdia…

O resultado desse processo de condicionamento e lavagem cerebral, que Kubrick narra magistralmente na primeira parte do filme, é simbolizado pelo soldado suicida, que explode seus miolos no banheiro. Este sistema perverso – vale sempre lembrar que o orçamento militar dos EUA é, disparado, o mais alto do mundo – gera genocídios e massacres, seja no Vietnã (outrora) ou no Oriente Médio (hoje), e a morte precoce de muitos jovens cooptados para o belicismo. Mãe Coragem, de Brecht, permanece um estandarte ainda atual que nos lembra que o ímpeto guerreiro, civilização agonística, não cessa de gerar mães, emocionalmente destroçadas, que chorarão torrentes ao receberem do governo os caixões de seus filhos, envolvidos pela bandeira da pátria, junto com uma carta de condolências assinada pelo Ministro da Guerra.

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Em muitos campos de batalha, através da história, já largaram seus defuntos, para serem comidos por aves-de-rapina, inumeráveis desses “heróis” tão “corajosos” que se cadastram e se alistam e marcham obedientes para a guerra. Às vezes quem se acha corajoso está, de olhos vendados, correndo para um túmulo precoce, desperdiçando a vida em uma contenda desnecessária, que não precisaria ser resolvida na violência. É uma das características mais bizarras da criatura humana: muitas vezes, as pessoas escolhem uma morte precoce mas que acreditam ornada de valor e significado, a uma vida prolongada mas sem nenhum heroísmo. É o que daria para chamar de O Complexo de Aquiles (o que explorei em no seguinte artigo: Do Corpo Efêmero à Glória Imorredoura – Reflexões Sobre a Bela Morte na Companhia de Jean-Pierre Vernant).

Em sua leitura sobre o filme de Stanley Kubrick, em The Pervert’s Guide to Ideology (documentário de Sophie Fiennes), Slavoj Zizek destaca bem o quanto de sadismo está presente nestes rituais militares onde se leva até o delírio a idéia de que a masculinidade é um valor inestimável, e que é possível prová-la nos campos de batalha, através de atos de bravura e temeridade, aos quais se prometem a recompensa de troféus, reputações gloriosas, quiçá até gordos cheque-de-pagamento ou permissões para a pilhagem.

Por isso julgo que aquilo que une a Guerra de Tróia e a Guerra do Vietnã, apesar de suas diferenças e do abismo de tempo que as separa, é uma mentalidade que subjaz e justifica a guerra, propagandeada e vendida como caminho para a glória. Idéia de macho – e, se me perguntarem, direi também: idéia de jerico. Idéia retardada e bárbara. Idéia de quem pensa com os testículos. Idéia das mais destrutivas que a humanidade já teve a infelicidade de parir e disseminar.

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Meryl Streep as the title character in The Public Theater 2006 production of "Mother Courage and Her Children", as featured in John Walter's documentary THEATER OF WAR.  Photo credit: The Public Theater / Michael Daniel.

Meryl Streep como personagem principal de “Mãe Coragem e Seus Filhos”, em  espetáculo de 2006, filmado em documentário por John Walter no filme “THEATER OF WAR”. Photo credit: The Public Theater / Michael Daniel.

A mãe, na peça de Brecht, percebe a insanidade do Patriarcado Briguento, que a rodeia com a força de um monstro, faminto por filhos. Infelizmente, ela é só uma mulher, que precisa sobreviver em tempos de crise, vender suas mercadorias para que não passe fome. Ela não tem os meios para revolucionar uma instituição social, muito menos uma civilização.

O filho mais velho de Mãe Coragem, Eilif, é-lhe roubado no meio da rua pelos senhores da guerra. Mãe e filho só vão se encontrar novamente dois anos depois. Dois anos em que Eilif não cessa de ouvir o comandante do exército berrar em sua orelha: “ó feliz guerreiro, você está participando de algo heróico, está servindo ao Senhor em uma Guerra Sagrada, e vai ganhar um bracelete de ouro quando nós tomarmos a cidade do inimigo!” (Cena II, p. 35) Promessas vãs, não mais que promessas mentirosas: a realidade é a fome, uma fome tamanha que os bifes que restam para alimentar a população em guerra estão fedendo de putrefação, como se a vaca tivesse morrido há um ano. O cozinheiro do exército mentir: “Que nada! Este bife aqui só tem um dia de idade, ontem mesmo era uma vaca que vi andando por aí.” Ao que Mãe Coragem, que não é desprovida de pontiagudo sarcasmo, responde: “Então essa vaca deve ter começado a feder antes mesmo de morrer.”

A guerra faz com que a atmosfera fique saturada com o fedor da putrefação. Eis um “argumento” fortíssimo que Mãe Coragem tem para seu pacifismo: além de irradiar do útero, de nascer de sua angústia materna, de seu amor umbilical aos filhos, seu pacifismo visceral é também uma reação das narinas, uma recusa em permitir que o cheiro da morte seja mais forte que o aroma das flores.

Mãe coragem “rebola”, dribla, insubordina-se, tenta escapar do jogo que lhe é imposto pelo poder, um pouco como uma personagem de Kafka, tentando se debater pra se libertar de uma opressão social sentida como tenebrosa. Em Brecht, porém, há muito mais humor do que em Kafka. Uma profusão de situações cômicas, que explodem com sua graça dionisíaca no ambinte dark desta peça-bélica, iluminam o construto Brechtiano com uma poesia cálida. É como se fosse possível ouvir o canto de um poeta lírico, entoando um hino em louvor ao Feminino, em Mãe Coragem encarnado, ainda que Brecht saiba também pintá-la em sua humanidade cheia de defeitos e em suas motivações bastante “mundanas”. Mãe Coragem não é heróica: faz o que pode para sobreviver, dá um jeito de prosseguir e atravessar os lutos, mas está longe de ser revolucionária; é vítima de poderes maiores, crushing powers. Mãe Coragem e seus filhos acabam parecendo como aqueles peões de que fala Bob Dylan em “Only a Pawn In Their Game”.

Mãe Coragem, a peça de Brecht, é um retrato da guerra como esta é vivenciada por uma mãe que tem seus filhos dela “arrancados” por uma pavorosa maquinaria, de criação e gestão masculina, que aniquila vidas humanas em contendas sangrentas, mortíferas, insanas. Ela, porém, não pode se dar ao luxo de virar uma pacifista com carteirinha de ONG, com direito à guarda-costas e carro-blindado: Mãe Coragem é pobre, desprovida, vulnerável, presa à urgência de sobreviver.

Em meio à guerra, ela tenta ser uma comerciante, com leros mercantis de convencimento:  seduz como pode para que os outros comprem seus pães, que se interessem pela carne que carrega em sua carroça. Atravessa os anos em meio à devastação da guerra, sempre carregando tudo o que possuí no mundo: a carroça que serve como loja itinerante e casa ambulante ao mesmo tempo. Como uma tartaruga, que carrega sua casa no próprio lombo, podendo adentrar em seu casco para puxar um ronco em qualquer lugar que aprecie, Mãe Coragem é tão despossuída quanto estes carregadores de papelão tão comuns em nossos centro urbanos. .

Como comerciante, Mãe Coragem é muito desconfiada: ela morde as moedas que recebe, pra checar com os dentes se são legítimas; já lhe passaram a perna algumas vezes no passado, e ela foi ficando esperta. Está bem claro que ela está acostumada a muita pilantragem rolando no comércio, mas o que pode fazer? Seu meio de vida é este e ela prossegue nele, mesmo em meio à guerra, mesmo durante o terrível processo de sentir os filhos escorregando por entre seus dedos, como grãos de areia, sugados pelo monstro feroz da belicosidade máscula.

Sua carroça, é evidente, anda lerda como tartaruga. Estamos ainda no século 17, em 1624, na Suécia. Imagino um mood similar ao das peças nórdicas de Shakespeare – o Hamlet, por exemplo – envolvendo as ocorrências que Brecht nos narra. Ademais, uma personagem como Mãe Coragem parece-me ter uma estatura trágica, assemelhando-se a uma figura como Clitemnestra, a mãe de Ifigênia. Este paralelo me parece possível pois Ifigênia, a filha de Clitemnestra, foi sacrificada pelo próprio pai Agamênon, o chefão do exército dos aqueus, lunático a ponto de crer que o sacrifício da primogênita geraria bons ventos para a campanha militar contra Tróia.

Euripides

Na peça de Eurípides, Clitemnestra é um pouco como a Mãe Coragem de Brecht: ambas são incapazes de impedir que a Máquina de Guerra – Masculina e Prepotente – arranque de seus braços os filhos, para na sequência devorá-los. No caso da mãe de Ifigênia, o delírio de dor e luto irá transformar-se em intento vingativo: em outra peça, o Agamenon de Ésquilo (publicado no Brasil pela Zahar como parte da trilogia Oréstia), Clitemnestra dá o contra-golpe contra seu tão odiado esposo, assassino da própria filha. Ao retornar cheio de poses de glória, celebrando-se como heróico vencedor após a década de carniceria em Tróia (narrada em minúcias por Homero na Ilíada), Agamênon encontra seu karma: é retalhado como um bode expiatório e morre horrendamente nas mãos de Clitemnestra e Egisto.

A peça de Brecht também lida com crimes graves, mas sem que estes sejam inter-familiares. Mãe Coragem passa por traumas-de-mãe semelhantes aos de Clitemnestra, e ambas tem um inimigo em comum, o militarismo associado ao patriarcado, esta a ideologia que faz propaganda em prol da guerra, este jogo fatal inventado pelos homens em seus ímpetos incontroláveis de agressão e domínio… Mãe Coragem implora aos próprios filhos: não caiam nesta armadilha, não se deixem enganar pelo lero-lero dos Senhores da Guerra, usem a cabeça e recusem-se a ir ao morticínio! No entanto, ela sabe do poder, devastador, invasivo, da “ideologia”: os soldados, os generais, não param de tentar convencer as crianças e os adolescentes que a glória está lá para ser colhida na guerra, e que quem se recusa a ela é um maricas, um efeminado que merece uma sova, alguém que tem o defeito de “não ser macho o suficiente”.

A jornada de Mãe Coragem em tempos de guerra multiplica-lhe as amarguras: ela não tem só seus rebentos roubados pela guerra, ela vê em ação um “mecanismo ideológico” que transforma seus filhos em assassinos. Não sofre só a amargura terrível do temor constante que um filho morra na guerra, mas a amargura suplementar de saber que o filho pode matar outros. As mães não costumam gostar quando seus rebentos tem como profissão matar filhos de outras mães. Algo de crucial se diz na peça de Brecht não somente sobre esta guerra e esta mãe em particular, mas sobre guerras e mães em geral. Aquilo que se elogia como virtude – coragem e virilidade – e aquilo que se promete como recompensa – glória e riqueza – talvez sejam embustes, falsificações grotescas, que os soldados só desvendarão como miragens quando estiverem agonizando nos campos de batalha.

Mãe Coragem adoraria se seus filhos fossem covardes vivos ao invés de corajosos mortos. Ela acha que aquilo que os militares consideram como covardia e coisa de maricas é na verdade bom senso e sabedoria prática. Mãe Coragem parece encarnar a voz da cautela, da defesa da vida, que tenta convencer aqueles a seu redor de que somos preciosos demais para nos tratarmos como açougueiros fazem nos matadouros de porcos. Só os másculos militares e seus cérebro-de-titica, que pensam com os testículos e estão inebriados por excesso de testosterona (em Grego, se não me engano, isso chama-se húbris), acreditam na conjunção entre matanças sádicas e gloriosas recompensas. A Mãe Coragem, não: em sua dor de mãe amputada, ela mantêm-se como ilha luminosa de lucidez em um oceano de cega brutalidade.

No tempo presente da peça, aliás, a Mãe Coragem cria sozinha seus filhos pois o Pai Coragem morreu na guerra há um tempão atrás. Agora os Filhos Coragem também seguem pelo mesmo caminho, sugados pelo mesmo fatal magnetismo, como se fosse um buraco negro. As gerações sucedem-se mas a sabedoria parece que não aumenta; a carnificina prossegue realizando suas ceifas fatais. A mãe tentou educá-los para o pacifismo e para a prudência, é claro, inclusive utilizando a pedagogia das canções, mas infelizmente as canções às vezes não são tão fortes quanto o barulho das bombas (mesmo John Lennon não foi ouvido quando imaginou all the people living life in peace, quando pediu “Give Peace a Chance”, e findou seus dias assassinado por um psicopata…). Eilif, o filho mais velho da Mãe Coragem, sabe de cor a cantiga ensinada pela mãe, mas ainda assim age muito mais como este soldado que, na canção, não presta atenção à sábia voz feminina e prefere caminhar correndo para o próprio túmulo:

THE SONG OF THE WISE WOMAN AND THE SOLDIER

“A shotgun will shoot and a jack-knife will knife,
If you wade in the water, it will drown you,
Keep away from the ice, if you want my advice”,
Said the wise woman to the soldier.

But that young soldier, he loaded his gun,
And he reached for his knife, and he started to run:
For marching never could hurt him!
From the north to the south, he will march through the land
With his knife at his side and his gun in his hand:
That’s what the soldier told the wise woman.

Woe to him who defies the advice of the wise!
If you wade in the water, it will drown you!…
But that young soldier, his knife at his side
And his gun in his hand, he steps into the tide:
For water never could hurt him!

The wise woman spoke: you will vanish like smoke
Leaving nothing but cold air behind you!
And the lad who defied the wise woman’s advice,
When the new moon shone, floated down with the ice:
He waded in the water and it drowned him.

The wise woman spoke, and they vanished like smoke,
And their glorious deeds did not warm us.
Your glorious deeds do not warm us!”

BERTOLT BRECHT.  Mother Courage and Her Children.
English version by Eric Bentley. New York: Grove Press, 1966.

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A fé como suspensão da ética – O mito de Abraão e Isaac segundo Søren Kierkegaard e José Saramago (por Eduardo Carli de Moraes)

Com a faca afiada colada a seu pescoço, prestes a ser degolado, o que passava pela mente do pequeno Isaac? Com o coração apavorado, golpeando com violência as paredes do tórax, que tipo de opinião sobre a fé e sobre a paternidade podem ter ocorrido ao garoto ao perceber-se na posição de ovelha-de-sacrifício? Eis algumas questões intrigantes que me ocorrem ao fim da leitura de Temor e Tremor, de Søren Kierkegaard (1813-1855), obra de tom altamente interrogativo, mas que pode ser complementada pelo leitor com uma multiplicação de novos pontos de interrogação.

Na pintura de Caravaggio, que retrata o momento em que Abraão vai sacrificar Isaac mas é impedido por uma intervenção angélica, enxergo uma cena de tortura. Na pintura, foquemos o olhar sobre o rosto de Isaac, contorcido pela angústia extrema, oprimido pela violência das mãos viris de Abraão: o que nos contam estes olhos infantis aterrorizados pela lâmina da faca ameaçadora? Diante deste quadro, é quase como se desse para ouvir o grito de Isaac, um berro quase Munchiano, reação visceral de uma criança incapaz de compreender o desatino do mundo encarnado na loucura de seu pai. Eu diria, Camusianamente, que Isaac está aí representado em pleno confronto com o Absurdo. Pois Abraão encarna nesta cena o famoso creio pois é absurdo.

Edvard Munch,

Edvard Munch, “O Grito”

KierkNo prelúdio de seu livro, Kierkegaard pinta com palavras o retrato de Isaac abraçado aos joelhos de Abraão, caído aos pés do pai, implorando por sua jovem vida. Mas é algo bem diferente da misericórdia ou da ternura o que o filho descobre na atitude, a um só tempo intransigente e resignada, de Abraão-da-faca-na-mão. Este é um dos momentos cruciais desta narrativa mítica que nos mostra uma figura que, embriagada pela fé, acaba por suspender a ética: o velho está prestes a cometer um crime hediondo, o assassinato de seu próprio filho, pois acredita que os céus o ordenaram. A fé é uma das forças psíquicas capazes de varrer do quadro as mais básicas das atitudes éticas: não matar cessa de valer quando o crente acredita-se requisitado por seu deus a assassinar o ímpio ou a sacrificar a vítima apontada pelo dedo invisível do divino.

Diante de Abraão, não há como evitar a questão: estamos diante de um santo ou de um louco? Eis um herói a ser celebrado, ou então um psicopata perigoso digno de ser metido no hospício? Devemos louvar esta heróica demonstração de obediência à vontade divina, ou lamentar a psicopatologia que levou este demente senil às beiras de cometer um ato grotesco? Devemos imitar o exemplo desta obediência pia e estrita aos ditames de um deus suposto, ou devemos ler esta narrativa como um símbolo dos perigos que há nestes vícios (humanos, demasiado humanos!) da idolatria e do fanatismo?

Nossa tendência é lidar com a história de Abraão e Isaac, narrada no Gênesis, com a tranquilidade daqueles que já conhecem seu “final feliz”: sabemos que tudo não passou de um teste, de um julgamento, uma espécie de “trote” divino. Ufa, tudo não passou de um blefe! Sabemos que Abraão não consuma seu ato sacrificial sangrento e que só pode ser acusado de um quase-assassinato. Além do mais, a tradição judaico-cristã inteira posteriormente tratou de desenhar auras de santidade sobre a cabeça do “Pai da Fé”: somos todos convidados a imitá-lo como modelo, já que nada apraz mais ao deus único, criador ex nihilo de tudo, do que uma criatura que sacrifica a autonomia de seu intelecto para tornar-se plenamente obediente aos ditames do céu…

O que mais me emociona no prelúdio de Temor e Tremor é o modo como Kierkegaard pinta a perspectiva da vítima: voltando para casa depois do quase-sacrifício, pai e filho, rumando ao reencontro com a mãe Sarah, estão caminhando lado a lado, mas separados por um intransponível abismo. Isaac, escreve Kierkegaard, “tinha perdido a fé.” [1] Para Isaac, não houve final feliz coisa nenhuma, apenas a vivência traumática de uma tortura absurda; para Isaac, o episódio com certeza fez com que se rompesse a confiança que um filho deposita na boa vontade de seu pai, e é de se suspeitar que nunca mais, depois daquilo, Isaac conseguirá permanecer na presença de Abraão sem o temor e tremor que sente alguém diante de um psicopata perigoso.

Rembrandt, Sacrifício de Isaac, 1635

Temor e Tremor, é claro, não é um livro sobre a perda da fé, mas muito mais um tratado psicológico que se debruça sobre Abraão, descrito como o “cavaleiro da fé” [the knight of faith, na tradução inglesa], tão crente que está disposto a extinguir a vida do próprio filho amado se Deus assim ordenar. Kierkegaard escreve mais como poeta do que como pregador, questionando mais do que dogmatizando, ainda que no geral o tom seja de elogio e admiração à figura de Abraão. Tanto é assim que o segundo capítulo é um panegírico onde o leitor é convidado a empatizar com o sofrer de Abraão, que tanto havia ansiado por um filho, que conquistou somente em sua velhice, e que descobre-se ameaçado de perder o rebento que ama tão intensamente pois a divindade exige seu sacrifício.

Alguns dos trechos mais belos do livro são aqueles em que Kierkegaard, ainda que timidamente, ousa questionar os supostos ditames do criador, perguntando: que diabos de deus é este capaz de exigir que um homem, já com os cabelos brancos, aniquile aquilo que mais ama neste mundo, seu filho único? “Não há compaixão alguma pelo venerável idoso, nenhuma pela criança inocente?” [2] Interrogações como estas, porém, são raras em Temor e Tremor, obra que não chega a questionar seriamente a existência deste deus que Abraão supõe como ordenante do sacrifício. Leitores ateus, agnósticos e céticos podem perguntar-se: e se tudo não passa de um delírio subjetivo de Abraão? E se a “voz de Deus” não for nada além de uma ilusão psíquica que acomete o cérebro senil do patriarca? Se Deus não existe, há qualquer possibilidade de sustentar que Abraão agiu de modo “heróico”? Ou ele foi nada mais do que um fanático que só não tornou-se assassino por um triz?

Na tragédia grega, podemos encontrar um caso semelhante ao de Abraão e Isaac: em Ifigênia em Áulis, Eurípides narra as ocorrências que precederam o início da Guerra de Tróia. Os exércitos chefiados por Agamemnon já estão a postos, preparados, ansiosos por embarcar para a carnificina. Mas as intempéries impedem as naus de navegar a contento rumo às terras de Príamo, onde Helena encontra-se após ser sequestrada (ou seduzida?) por Páris. Apesar das diferenças consideráveis entre o politeísmo grego e o monoteísmo judaico-cristão, há um certo paralelismo: tanto Ifigênia quanto Isaac são escolhidos como vítimas sacrificiais pois acredita-se que assim ordena o divino. A maior diferença entre Agamemnon e Abraão não é tanto entre um crente politeísta e um crente monoteísta, mas entre um homicida consumado e um quase-homicida. Ifigênia, a filha mais velha de Agamemnon e Clitemnestra, irmã de Orestes e Electra, não tem a sorte de Isaac: ela não escapa da faca. É um episódio que o poeta-filósofo Lucrécio descreve, em seu Da Natureza, com o horror que sente o homem lúcido diante das atrocidades cometidas por mentes transtornadas pela superstição:

Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770), O Sacrifício de Ifigênia

Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770), O Sacrifício de Ifigênia

“Na maior parte das vezes foi exatamente a religião que produziu feitos criminosos e ímpios. Foi assim que em Áulis os melhores chefes gregos, escol de varões, macularam vergonhosamente com o sangue de Ifigênia o altar… E em nada podia valer à infeliz, em tal momento, ter sido a primeira a dar ao rei o nome de pai. Foi levantada pelas mãos dos homens e arrastada para os altares, toda a tremer, não para que pudesse, cumpridos os ritos sagrados, ser acompanhada por claro himeneu, mas para, criminosamente virgem, no tempo em que deveria casar-se, sucumbir, triste vítima imolada pelo pai, a fim de garantir à frota uma largada feliz e fausta. A tão grandes males pode a religião persuadir.” LUCRÉCIO. Da Natureza das Coisas. [3]

A tragédia grega mostra o ato de Agamemnon em todo seu horror, como violação de um preceito ético fundamental, e as consequências dele para este família serão desastrosas: como narrado na trilogia de Ésquilo, Oréstia, a mãe de Ifigênia, Clitemnestra, transtornada pelo luto e pela ira, tratará de vingar-se de seu marido, o assassino da primogênita do casal. Assim que ele retornar de Tróia, triunfante na guerra porém esquecido de que deixou em casa alguém que o odeia intensamente, Agamemnon será por sua vez trespassado pelo punhal da vendeta. O ciclo de violências multiplica-se: a vingança de Clitemnestra contra Agamemnon alimenta a fúria de Orestes, que encaminha-se então para o matricídio… O theatrum mundi inunda-se de sangue.

Em Temor e Tremor, Kierkegaard não ousa penetrar tão fundo na sondagem das relações entre fé e violência: no livro, quase não aparecem palavras como “superstição” e “fanatismo”, tão aptas a descrever o tipo de demônio que traz Abraão sob seu domínio. Em sua Expectoração Preliminar, porém, faz esta interessante reflexão: alguém que ouvisse, na missa de Domingo, um padre a narrar o mito de Abraão e Isaac, poderia sair dali convencido de que não há melhor prova de amor à Deus do que sacrificar na terra a pessoa que mais ama. Impelido pelo sermão, levantaria o punhal contra o próprio filho e depois diria à polícia, enquanto é conduzido ao presídio ou ao hospício, que agiu sob a influência da edificante parábola que ouviu na igreja. Se a imitação de Abraão se transformasse em algo epidêmico, em que mundo viveríamos? Não é perigoso acreditar que a fé tem o direito de suspender a ética? Que sociedade resulta da disseminação da crença em uma divindade transcendente faminta por sacrifícios e imolações?

O que Kierkegaard destaca de modo recorrente é o paradoxo que se manifesta no mito de Abraão e Isaac, em que Deus exige o crime e a tentação consiste em agir eticamente. É nesse contexto que Kierkegaard mobiliza o conceito de absurdo, tão caro aos pensadores existencialistas, especialmente Albert Camus: há um paradoxo incontornável em um deus que exige do devoto que corte a goela do filho que adora, já que então revela-se como um deus anti-ético. Ora, se este deus é compreendido como tendo como atributos a justiça, a bondade e o amor, como compreender que exija de Abraão algo de tão absurdo quanto a violação explícita do preceito evangélico não matarás? Um deus que exige beber o sangue das crianças será mesmo um deus autêntico ou somente um demônio disfarçado?

A multiplicação de tais dúvidas teológicas só nos conduz ao exacerbamento da sensação de absurdo e de paradoxo – e talvez não haja saída deste labirinto a não ser pela via do ateísmo: um deus malvado é uma contradição, um paradoxo, uma impossibilidade, e desta aporia só escapamos ao concluir que este deus das carnificinas nunca existiu fora das imaginações humanas. É um argumento sintetizado belamente por José Saramago, em artigo publicado logo após os atentados de 11 de Setembro de 2001:Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou.” [4] Em um de seus últimos romances, o autor português faz seu Caim sintetizar uma posição atéia, de rebeldia contra o deus bíblico que é tão frequentemente um genocida, praticante do assassinato em massa pela via dos dilúvios e das hecatombes, deixando vivos só um punhado de eleitos:

caim-jose-saramago

“A vida deram-ma meu pai e minha mãe, juntaram a carne à carne e eu nasci, não consta que deus estivesse presente no acto”, sustenta Caim, que quando confrontado com a tese de que “Deus está em todo o lado”, replica: “Uma só criança das que morreram feitas tições em Sodoma bastaria para o condenar sem remissão.” [5] Se evoco aqui a obra literária e o pensamento anti-teísta do Prêmio Nobel de Literatura lusitano é para melhor ilustrar o “tremendo paradoxo da fé” que Kierkegaard explora em Temor e Tremor: como é possível a transformação do homicídio em um ato sacro? Só por ser cometido com fé, o homicídio deixa de ser um pecado para tornar-se uma prática santa que agrada aos céus?

KierkeA ética, sustenta Kierkegaard, é universal, aplica-se a todo mundo, o tempo todo: não há época histórica ou localização geográfica onde não seja uma atrocidade, do ponto de vista ético, o homicídio dos inocentes – como aquele que perpetra Medéia contra suas crianças. Em outras palavras: a ética prescreve, como mandamento universal, o dever maternal e paternal que proíbe tratar os filhos como sacrificáveis. O problema, portanto, está na reputação cheia de honra e glória de que goza Abraão, como pai da fé e patriarca do monoteísmo, quando o mesmo Abraão é um violador da ética, já que ergueu a lâmina para assassinar Isaac. Eis o paradoxo e o absurdo: a divindade demanda a suspensão da ética; deus é o mandante de um crime; a fé é o heroísmo maluco e a loucura sagrada através do qual alguém peca contra o universal.

Se Abraão simboliza tão bem o que significa ter fé, é pois leva ao extremo a fidelidade cega e a obediência absoluta à divindade (ou ao que supõe ser a “vontade do deus”). Sua submissão é tão total que ele está pronto a obedecer a um deus que ordena assassinatos ao invés de rebelar-se contra ordens que ofendem radicalmente a consciência moral. Recusar-se a cumprir o sacrifício do primogênito seria uma atitude bastante razoável de qualquer pai apegado ao filho de sua carne e motivado pela chama do amor paternal. Abraão só tornou-se tão célebre por seu extremismo, por sua intransigência, por esta extraordinária teimosia na fé e que merece ser chamada, apesar de Kierkegaard não fazê-lo jamais, de fanatismo. 

 A absurdidade do mito consiste nisto: a divindade, que se presume o princípio criador do Bom, do Belo e do Justo, exige do homem-de-fé que cometa um ato hediondo, horrendo e injusto. Se este deus é amor, como é possível que exija, como prova de fé, um ato que é transgressão obscena do amor? A tentação, para Abraão, é justamente a ética: respeitar o dever universal, que exige de um pai a proteção e o cuidado para com seu(s) filho(s), equivale neste caso à desrespeitar o mandamento divino. O que falta em Temor e Tremor é justamente um questionamento mais amplo e sistemático da possibilidade de que Abraão esteja alucinando, que tudo não passe de um delírio senil, que o absurdo está na cabeça de um velho e não no ser das coisas. Para ser bem rude com a obra de Kierkegaard, eu perguntaria: para que gastar tanta palavra de interpretação teológica deste mito, se em algumas páginas seria possível argumentar que este deus em que Abraão crê não passa de um déspota imaginário fabricado pela fantasia de um velho crédulo?

É uma interrogação inescapável: aquilo que se chama de “amor à deus” é realmente a maior de todas as virtudes e deve ser colocado acima de todo e qualquer dever ético? O Novo Testamento fornece-nos também razões de sobra para desconfiar que um paradoxo pernicioso, prenhe de consequências sangrentas, está alojado e embrenhado na ideologia religiosa de nossa tradição judaico-cristã: em Lucas (14: 26 e 33), Jesus de Nazaré exige: “Se alguém vier a mim, e não odiar a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e ainda também a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. […] Qualquer de vós, que não renuncia a tudo quanto tem, não pode ser meu discípulo.” [6]

É essa a religião que querem nos vender como amorável e caridosa? É este o profeta que devemos honrar de joelhos nas igrejas? Kierkegaard viu bem que estamos lidando com um conceito de deus que requer um amor absoluto que se expressa através da renúncia a amar pessoas de carne-e-osso. Eis um deus que exige ser amado mais que tudo, na exclusão de tudo, e que como prova de fé demanda que o amor entre pai-e-filho seja aniquilado em um altar. A um deus destes eu me recuso a tirar meu chapéu. Não acho que mereça minha devoção. E mais: bateria boca com Kierkegaard, que quer pintar auréolas sobre Abraão e dizer que a fé é a mais elevada das paixões humanas. Aquele que é capaz de levantar a lâmina fatal contra o próprio filho não me parece um herói a ser celebrado, mas um caso clínico; não um adorável modelo de conduta mas um nocivo psicopata; não a ilustração dos caminhos que o sábio deve seguir mas o contra-exemplo que nos conta daquilo que faremos bem em evitar: o fanatismo, a obediência cega, a fé que dá licença à suspensão da ética e ao cortejo das atrocidades.

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“…o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isaac… atou o filho e colocou-o no altar, deitado sobre a lenha. Acto contínuo, empunhou a faca para sacrificar o pobre rapaz e já se dispunha a cortar-lhe a garganta quando sentiu que alguém lhe segurava o braço, ao mesmo tempo que uma voz gritava, Que vai você fazer, velho malvado, matar o seu próprio filho, queimá-lo, é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro e acaba-se por assassinar aquele a quem mais se deveria amar… Sou Caim, sou o anjo que salvou a vida de isaac… e não compreendo como irão ser abençoados todos os povos do mundo só porque abraão obedeceu a uma ordem estúpida.” [7]

Um dos méritos maiores da obra de Saramago está na coragem quase punk em que ele escancara os absurdos da fé com sua sagaz mordacidade atéia, desfazendo alguns dos mais arraigados preconceitos ainda hegemônicos em nosso mundo, como por exemplo a ideia de que crimes obscenos e horrendos são realizados por gente “sem fé no coração”. Tais comentários ateofóbicos que pretendem explicar os ímpetos criminosos a partir de um déficit de fé em Deus caem por terra quando atentamos para o fato de que a fé é com frequência a justificativa e a motivação para atos criminosos – e não somente no âmbito mítico, como vimos nos casos de Abraão e Agamemnon.

Para retornar ao tema do artigo saramaguiano publicado logo após o 11 de Setembro de 2001, é explícito neste caso o quanto os atentados terroristas foram realizados por homens cheios de fé, e que se imolaram nos ataques camicase na esperança de que Alá os aplaudiria e já preparava para eles um paraíso de delícias e privilégios no Além. De modo bastante similar, a resposta militar dos EUA e seus aliados, na invasão do Afeganistão e do Iraque, baseou-se largamente em justificativas teológicas, com o uso e abuso da noção maniqueísta de um Eixo do Mal (islâmico) a ser derrotado pelas forças do Bem (cristãs) – como se os bombardeios genocidas e as torturas institucionalizadas nas prisões (como Abu Ghraib e Guantánamo) fossem suspensões da ética completamente válidas, já que seus praticantes estavam a serviço do Deus verdadeiro (além de favorecendo com suas bombas e matanças um outro deus… a Mão Invisível do Mercado, que não funciona jamais sem seu aliado, o punho-de-ferro das violências coercitivas e da pilhagem do petróleo alheio…). “Se Deus não existisse”, sugere um personagem de Dostoiévski, “tudo seria permitido”; ora, a experiência histórica nos conduz a pensar, ao contrário, que na verdade são aqueles para quem Deus existe indubitavelmente, os cavaleiros da fé que jamais duvida de si, que agem na base do “tudo é permitido”.

Em suma: a versão oficial do mito de Abraão e Isaac nos conta de uma intervenção divina que, na hora H (a hora do Homicídio), salva Isaac da faca, salvando ao mesmo tempo Abraão de transformar-se em assassino e salvando o deus em que ele crê de virar um mandante de um crime hediondo. Para encerrar este texto, repleto de blasfêmias sadias e heresias essenciais, eu sugeriria uma interpretação mais realista do mito: não foi uma angélica aparição o que impediu Abraão de consumar o sacrifício, mas um lampejo súbito de bom senso, um clarão salvífico de dúvida, uma hesitação providencial de último instante, um insight da absurdidade daquilo que ele estava prestes a cometer. Se a fé de Abraão tivesse sido de fato imperturbável, irremovível, intransigente, Isaac teria sido transformado de criança em cadáver. No último instante, porém, Abraão deve ter duvidado de deus e de si: e se eu estiver louco? E se meu deus não for senão delírio? E se eu tiver compreendido mal seus ditames? E se não houver ninguém nos céus mas apenas um desarranjo e um desatino nos meus miolos?

A fé teria assassinado Isaac; a dúvida acabou por salvá-lo.

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Dezembro de 2014

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] KIERKEGAARD, S. Fear and Trembling. Princeton, 2013. Pg. 43.

[2] KIERKEGAARD, S. Op cit. Pg. 52. Na tradução inglesa de Walter Lowrie, o trecho ficou assim:“Who is he that would make a man’s gray hairs comfortless, who is it that requires that he himself shall do it? Is there no compassion for the venerable oldling, none for the innocent child?” (pg. 52)

[3] LUCRÉCIODa Natureza. Livro I. In: Os Pensadores: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca, Marco Aurélio. Abril Cultural, 3ª ed., 1985.Pg. 33.

[4] SARAMAGO, J. Folha de São Paulo, 2001.

[5] SARAMAGO, J. Caim. Cia das Letras, 2009. pg. 135.

[6] NOVO TESTAMENTO. Lucas 14:26 e 33.

[7] JOSÉ SARAMAGO. Caim.  Pg. 80-81.

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