A TEORIA CRÍTICA DIANTE DAS CALAMIDADES TRIUNFAIS [Estudos Filosóficos, Parte 01] (acasadevidro.com)

A TEORIA CRÍTICA DIANTE DAS CALAMIDADES TRIUNFAIS

“A imagem de uma justiça completa não poderá jamais realizar-se na história, pois ainda que uma sociedade melhor substitua a desordem atual e se desenvolva, a miséria do passado não se transformaria em bem e o sofrimento da natureza circundante não seria transcendido.”

“Se por Luzes (Aufklärung) e progresso intelectual pretendemos dizer libertar o homem da crença supersticiosa em forças malignas, nos demônios e fadas, no destino cego, enfim, emancipá-lo de todo medo, então a denúncia do que comumente chamamos razão é o maior serviço que a razão pode lhe prestar.”

MAX HORKHEIMER

Olgária Matos, pensadora brasileira, professora de filosofia na FFLCH/USP

Olgária Matos, pensadora brasileira, professora de filosofia na FFLCH/USP

O século XVIII, a “era das Luzes”, celebrava a si mesma como “a época da emancipação do homem através da realização do potencial da razão”, como diz a professora Olgária Matos da faculdade de filosofia da USP. Porém, autores como Adorno, Horkheimer, Benjamin, Marcuse, Erich Fromm ou Wilhelm Reich sabiam muito bem que a emancipação, longe de ter sido completada com sucesso, continuava uma tarefa por fazer, uma esperança ainda não desabrochada plenamente, que segue sendo um potencial, uma promessa, diante de uma realidade repleta de “calamidades triunfais” (para citar uma expressão da “Dialética do Esclarecimento” de Adorno & Horkheimer).

Nada em nossa experiência individual ou coletiva nos permite afirmar que a humanidade está progredindo sempre, subindo em rumo à luz da plena sabedoria: na verdade está sempre aberta a possibilidade de regressão, de irrupções de destrutividade, de recaídas na barbárie. Eis, parecem-me, alguns dos ensinamentos da Escola de Frankfurt: convenhamos que nem Auschwitz, nem Hiroshima, nem a Guerra do Vietnã, nem Chernobyl, nem Fukushima, nem a atual hecatombe ambiental brasileira nas Minas Gerais (e no Espírito Santo, e no Oceano Atlântico…), nem muitas outras atrocidades hi-tech, podem ser tidos como exemplos de sucesso civilizatório e frutos do progresso compulsório. Pelo contrário, não são poucos os horrores – de holocaustos e a guerras mundiais – de que é responsável nossa tão louvada civilização capitalista, tecnocrática, dominadora da phýsis, que é supostamente “avançada”, “desenvolvida” e”civilizada”, perenemente em progresso e em triunfante marcha de aprimoramento perpétuo, mas que gerou o Antropoceno e o ticking clock da catástrofe climática iminente… 

Theodor Adorno duvidará muito que possamos celebrar e comemorar o caminho tecnológico-científico quando este é aplicado ao militarismo e ao belicismo: não há festa a fazer diante do processo que nos levou “do estilingue à bomba atômica de megatons“. Poderíamos dizer o mesmo, talvez, sobre a civilização viciada em combustíveis fósseis, fábricas poluentes, automóveis (que mal se movem nos engarrafamentos), desmate de florestas ancestrais, poluição irreversível de rios, extinção maciça de espécies, dentre outras ocorrências de que somos contemporâneos. Valeu tanto a pena vir da bicicleta ao foguete, da roda primitiva ao tanque de guerra, se era tudo para enfim afundarmos nesse lodaçal de drones mortíferos e tecnologias ecocidas?

Vítimas do Holocausto. Clique para ver em tamanho maior.

Vítimas do Holocausto. Clique para ver em tamanho maior.

Esses pensadores da Escola de Frankfurt são contemporâneos (e, de certo modo, também vítimas) de forças titânicas de alto poder destrutivo. Talvez a crítica ao Iluminismo seja neles efeito dos tempos sombrios, de que fala Hannah Arendt, e talvez eles mesmos sejam animados por uma chama iluminista que não foi totalmente morta pelo que vivenciaram. Voltaire já havia conclamado seus contemporâneos a uma convivência mais tolerante, para uma relação com a alteridade menos calcada em fundamentalismos e sectarismos, para que chacinas como a Noite de São Bartolomeu nunca voltassem a acontecer; similarmente, Adorno vê como meta de sua ação, enquanto filósofo e educador, o imperativo de evitar que Auschwitz se repita.

Talvez possamos dizer que o Iluminismo é uma utopia que colapsou, uma promessa que falhou em se cumprir, uma doutrina que prometeu as flores da igualdade, da liberdade, da fraternidade, e acabou por entregar-nos uma “calamidade triunfal”, para citar o início da obra de Adorno e Horkheimer, a Dialética do Esclarecimento, em que eles investigam o grau de sucesso ou de fracasso do “programa do esclarecimento” cuja “meta era o desencantamento do mundo, dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber”.

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“A desumanidade terá um grande futuro…”
PAUL VÁLERY

Os cogumelos atômicos de Hiroshima e Nagasaki. Os campos de concentração e extermínio do III Reich nazista (Auschwitz, na Polônia, o mais célebre deles). As gulags na Sibéria construídas pelo stalinismo soviético. A tortura institucionalizada e a execução de adversários políticos nas Ditaduras Militares latino-americanas (rebentos da Doutrina do Choque, exposta no brilhante livro de Naomi Klein e no documentário de M. Winterbottom). Há exemplos em profusão da proliferação de fascismos em nossa história recente. Infelizmente, a barbárie e a violência, o etnocentrismo aniquilador da alteridade, a deflagração dos ódios irracionais, são estrupícios que têm marcado o caminhar da carruagem política da humanidade “ultimamente”. Agir e educar para que o(s) fascismo(s) não se repita(m), eis a missão da época, segundo Adorno. A tarefa é evitar que as monstruosidades ocorridas no século XX voltem a acontecer. Em “Educação Após Auschwitz” – texto presente no livro Educação e Emancipação (Ed. Paz e Terra) – sentimos que a pena de Adorno indigna-se e geme, lamentando, em temor e tremor, a “persistência da possibilidade de que se repita a monstruosidade”.

MORAES, Eduardo Carli de. SIGA LENDO @ A CASA DE VIDRO: PARA QUE O FASCISMO NÃO SE REPITA! – Por uma educação devotada à auto-reflexão crítica [Notas sobre “Educação Após Auschwitz” de Theodor Adorno]

Hans Jonas achará a expressão mais emblemática dos perigos da civilização industrial, supostamente esclarecida e progressista, dominadora e triunfante em sua tecnê científica, equiparando-a à figura mítica de Prometeu, mas desta vez libertado das correntes. A obra Princípio de Responsabilidadeapesar de não estar vinculado diretamente à Escola  de Frankfurt, também soma uma voz forte e argumentos poderosos à denúncia daqueles que puseram a razão, a ciência, a tecnologia – as meninas-dos-olhos da Civilização Ocidental! – não a serviço da emancipação, mas sim na construção de fábricas da morte e campos de concentração, e que atualmente empurram-nos, goelas a baixo, catástrofes ecológicas, crises climáticas e infindáveis guerras (ao Terror, às Drogas, Pelo Petróleo…).

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Walter Benjamin, em 1940, fugindo dos nazis, tentando atravessar fronteiras nacionais em uma época de anti-semitismo irracional, insano e epidêmico, prefere o suicídio à sua captura pelos fardados sanguinários, funcionários obedientes do III Reich em pleno gás genocida. A “era de Extremos” de que fala o historiador Eric Hobsbawn nada tinha de um concreto e efetivo mundo emancipado pelas Luzes. Ao contrário, estávamos plenamente chafurdados na barbárie mais trevosa, nos holocaustos mais horrendos, nos cogumelos atômicos mais retardados…

Adorno, em um dos textos que integra o livro Educação e Emancipação (Ed. Paz e Terra), formulará para o pensamento uma nova exigência, um imperativo categórico que Kant jamais sonhara: é preciso fazer tudo para que Auschwitz não se repita. Tornou-se irrecusável missão para a filosofia contribuir para que não nasçam os Hitlers do futuro, que não possa ocorrer de novo a tragédia coletiva como aquela que produziu a Shoah, o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, os desastres radioativos (de Chernobyl a Goiânia) e as catástrofes ecológicas antropogênicas…

Pode ser uma experiência comovente e emocionante entrar em contato, através da leitura, com a potência do pensamento destes autores que integram a Escola de Frankfurt, pois há ali um confronto direto com uma situação histórica dramática e trágica. A crítica empreendida por eles vai à raiz do ideal iluminista, faustiano, que anima a tal da Modernidade supostamente “emancipada” pelo avanço das Luzes de uma razão triunfante. Esses autores sabem muito bem que a razão, se instrumentalizada, se posta a serviço da dominação de classe, se pervertida por crendices racistas ou ideologias xenófobas, podia gerar muitos monstros.

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“Foi preciso que a face opressora do trabalho se mostrasse inteira na miséria gerada pela desigualdade social, que a brutalidade da 1ª Guerra Mundial abalasse a crença no estabelecimento definitivo do reino da razão tecnológica, para que se abrisse o espaço da crítica de um ideal de racionalidade no qual os valores humanos já não apareciam como finalidade. O movimento conhecido como Escola de Frankfurt surge, portanto, num cenário dramático, e seus integrantes não tardarão a se tornar vítimas da violência que procuravam desmascarar.

escola-de-frankfurtEscola de Frankfurt é a denominação tardia do Instituto Para A Pesquisa Social, fundado em 1923 pelo economista austríaco Carl Grunberg, editor do Arquivo para a História do Pensamento Operário, que visavam preencher uma lacuna nas ciências sociais: a história do movimento operário e do socialismo. O Instituto, a que originariamente se cogitou chamar Instituto de Marxismo, revela a vocação para integrar a questão socialista no âmbito das reflexões acadêmicas e universitárias, pois esteve ligado à Universidade de Frankfurt.

A partir de 1931 é Max Horkheimer (1895-1973) quem assume a direção do Instituto e, com a colaboração de diversos pesquisadores, como Theodor Adorno (1903-1969), Walter Benjamin (1892-1940), Herbert Marcuse (1898-1979), Erich Fromm, Lowenthal, constituiria um círculo de intelectuais voltados para o largo espectro da filosofia social. A Revista Para Pesquisa Social, órgão oficial do Instituto, foi publicado de 1932 a 1933 em Leipzig e, após a ascensão de Hitler ao poder, e o advento das perseguições nazistas a marxistas, judeus e socialistas, passou a ser editado em Paris (de 1933 a 1939), por causa do exílio dos intelectuais que nele publicavam seus ensaios. Entre 1939 e 1941, a revista foi publicada em Nova York e em língua inglesa, quando passou a denominar-se Estudos de Filosofia e Ciência Social.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA NOVA CULTURAL, de Bernadette Siqueira Abrão (São Paulo, 2004, Pg. 457 a 459)

Diante do que os tempos traziam de dramas, tragédias, esperanças de triunfo, lutas de classes, clashes de ideologias, parece emanar destes autores uma atividade crítica intensificada e visceral, que parece emanar do engajamento existencial da parte de pensadores – como Adorno, Horkheimer, Marcuse, Benjamin, ou mesmo de figuras similares como Lúkacs, Gramsci ou H. Jonas – que se insurgem contra poderes que sentem, na própria carne e no próprio espírito, como humilhação, opressão, desumanização… 

2622700Com isso quero dizer que, como diz brilhantemente o título de um dos livros de Hannah Arendt, trata-se de Homens Em Tempos Sombrios (Cia Das Letras): e não é à toa que Walter Benjamin é um dos biografados nesta coletânea de “retratos” que Arendt pinta  (Rosa Luxemburgo, Karl Jaspers e Bertolt Brecht são outras das figuras que a pena de Hannah descreve em seus confrontos com um tempo histórico ensombrecido e aterrador…). É como se fosse no auge da escuridão, no apogeu da barbárie, que Walter Benjamin responde, com o suicídio, ao dilema de Hamlet: “ser ou não ser, eis a questão”.

“Benjamin optou pela morte naqueles primeiros dias do outono de 1940 que, para muitos de sua origem e geração, marcaram o momento mais negro da guerra – a queda da França, a ameaça à Inglaterra, o ainda intacto pacto Hitler-Stálin, cuja consequência mais temida naquele momento era a íntima cooperação entre as duas forças policiais secretas mais poderosas da Europa.” HANNAH ARENDT (P. 165)

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Benjamin e Brecht jogam xadrez

critical_300Não seria justo cometer contra a Escola de Frankfurt a mutilação de impor a eles a lógica do rotulamento, do encaixotamento, enfiando-lhes na mesma caixa, domados e rotulados. É impossível encaixá-los na categoria de “intelectuais judeus” ou de “filósofos marxistas”, a começar pelo fato de que eles não primavam pelas ortodoxias. Tanto que o modo de expressão que tem primazia nos textos “frankfurtianos” é muito mais o ensaio do que o sistema. Eles pendem mais para escrever como Nietzsche do que a erigir castelos conceituais sistemáticos como um Liebniz ou Hegel. Um cabra como Walter Benjamin, como diz também Arendt, “foi provavelmente o marxista mais singular já produzido por esse movimento que teve seu quinhão completo de excentricidades” (p 176).

Entre Adorno e Marcuse também podem ser multiplicados os contrastes, as diferenças, os antagonismos. Em 1968, com os grandes levantes estudantis e operários em Paris (e os concomitantes levantes da Primavera de Praga e da Cidade do México nas Olimpíadas), foi principalmente com Marcuse, e não com Adorno, que os revoltosos e insurgentes se identificaram e viram como guia e mentor.

Talvez porque o discurso de Adorno era tido como demasiado pessimista para ser capaz de mobilizar entusiasmos de ativismo: quem lê Adorno desanima dos coquetéis molotov, das barricadas de rua, pois o inimigo tem bombas atômicas, é o dono de todas as prisões, patrão de todos os policiais… Já a Contracultura dos sixties, argumenta uma reportagem do The Guardian, beberia na fonte de Marcuse e sua verve libertária, mesclada à análise crítica da civilização tecnológica, de modo que em Marcuse poderiam-se haurir forças para lutar por um outro mundo possível, em que Eros padecesse menos que hoje, quando está acorrentado e diminuído, subjugado por repressões em excesso.

Herbert Marcuse e Angela Davis

Herbert Marcuse e Angela Davis

“Marcuse linked economic exploitation and the commodification of human labour with a wider concern about the ways in which generalised commodity production (Marx’s basic description of a capitalist society) was at one and the same time creating a massive surplus of wealth through economic and technological development and an acceleration of the process of reducing humanity down to the level of a mere cog in the machine of that production.”

PETER THOMPSON, The Guardian (click na imagem para ler o artigo na íntegra)

Marcuse no Guardian

Nos anos 1940, conta-nos a História da Filosofia da Editora Nova Cultural, os pensadores frankfurtianos serão impulsionados pelos tempos sombrios em que vivem a realizar uma genealogia do totalitarismo, uma compreensão dos fundamentos dos horrores de que foram contemporâneos: 

“Sob o impacto do nazismo e da 2ª Guerra Mundial, a teoria crítica iria procurar a genealogia do fenômeno totalitário não apenas na crise econômica, política e social, nem no erro tático ou estratégico das forças de esquerda alemãs, mas, de maneira original, em uma questão metafísica: é a própria noção de razão e de racionalidade a responsável pela produção do irracional fascista. Essa razão se funda na hostilidade ao prazer, na renúncia à felicidade, no ‘ascetismo do mundo interior’, no domínio e controle da natureza exterior e das paixões humanas. A natureza assim reprimida se vinga na forma de destrutitividade social. É dessa época – a década de 40 – a obra Dialética do Esclarecimento , fragmentos filosóficos de Adorno & Horkheimer. (…) Daí derivam as reflexões frankurtianas a respeito das tendências no mundo moderno para o totalitarismo, mundo homogêneo, uniforme, sem oposição, que suprime os indivíduos ao liquidar sua autonomia e a liberdade de ação na história.” (op cit, p. 461)

O Iluminismo havia prometido um porvir luminoso que o séc. XX foi obrigado a constatar que havia falhado ao encontro. A promessa não havia se cumprido, como provavam as câmaras de gás e fornos crematórios espalhados por um Europa totalmente devastada por guerras e holocaustos. Não era crível, em tal era sangrenta, a idéia de que a História fosse uma escadaria que sempre sobe rumo a um progresso mais alto, e que a Humanidade não cessava de triunfalmente subir estes degraus que conduzem ao El Dorado da Utopia encarnada… A filosofia de Adornos e Benjamins, de Marcuses e de Arendts, nasce na plena consciência de que a sociedade passa por “recaídas periódicas na barbárie” (Siqueira Abrão, p. 463).

A hýbris desta sociedade racionalista, tecnologizada, posta ao serviço da acumulação de capital em poucas mãos, chafurdada no consumismo alienado e ecologicamente predatório, trouxe-nos às beiras do colapso da biosfera terrestre. Vivemos hoje, na aurora do século 21, diante da perspectiva da caotização intensificada dos fenômenos climáticos e das catástrofes socioambientais. Nossa technê nos trouxe até aqui: a este ponto da História onde a Natureza, excessivamente transformada e dominada e poluída pelos seres humanos, acirra seus processos extremos e incontroláveis, que ameaçam a humanidade com inauditas hecatombes (como se já não fôssemos bastante capazes de, através de nossas lambanças, causarmos imenso mal a nós mesmos e nosso habitát, de Fukushima no Japão ao desastre em Minas Geras neste Novembro de 2015).

Brazilian Fukushima
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A Escola de Frankfurt não é só limitada à crítica das forças dominantes, do status quo, mas também inclui a reflexão sobre uma revolução possível. E talvez Walter Benjamin estivesse muito próximo da lucidez de que hoje necessitamos quando disse que as revoluções são como freios de emergência, que é preciso puxar quando as classes dominantes pilotam a sociedade – em nosso caso, o próprio planeta! – no rumo do colapso, com a estupidez notória de quem conduz-nos cegamente ao suicídio coletivo. “Marx afirma que as revoluções são a locomotiva da história”, escreve Benjamin, “mas talvez seja o contrário; pode ser que elas sejam o freio de emergência da humanidade que viaja nesse trem.”

Olgária Matos descreve bem a originalidade e a pertinência, ainda hoje válidas, da Teoria Crítica “frankfurtiana” ao situá-la em sua emergência histórica e em seu debate (fecundo) com o marxismo:

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“O Instituto para a Pesquisa Social surge na Alemanha em 1923 num período de êxito da revolução bolchevique na União Soviética. Trata-se de uma fase em que a Alemanha, depois de ser proclamada a República, em 1918, assiste a duas insurreições operárias, a de 1918 e a de 1923. A iminência da revolução proletária, nos termos clássicos, é vivida como uma realidade, sobretudo a influência do pensamento de Karl Korsch e Lukács marca muito os pensadores desse período. A referência básica é a idéia de que uma sociedade melhor, mais justa, mais feliz, só pode vir por meio da revolução social.

Num ensaio de 1937, considerado um panfleto da escola [de Frankfurt], Horkheimer, embora continue se afirmando marxista, e dizendo que acredita na idéia da revolução como única forma de redenção social, diz: ‘Essa idéia de Marx que só existe uma única classe social, sujeito de toda história, é uma utopia.’ Em outros termos, a idéia de que na luta de classes uma delas – o proletariado – é a preferencial, a que não apenas é a mais despojada, mais humilhada, mais oprimida, mas que também está encarregada de realizar o futuro livre da humanidade, a idéia, enfim, de classe como motor da história, é algo que Horkheimer já tem uma certa dificuldade em aceitar. (…) Desse modo, revolução não é progresso, não é sinônimo dele, mas sim justamente o meio pelo qual é possível realizar uma interrupção temporal, isto é, sair da linha de um progresso que acarretou consequências terríveis.

O distanciamento em relação ao marxismo já está sendo gestado no interior da teoria crítica. Além disso, na fase que vai de 1944 até a década de 1950, sobretudo com a obra Dialética do Iluminismo, de Horkheimer e Adorno, a idéia de classes e de luta de classes desaparece: passam a substituir a crítica da economia política pela crítica da civilização técnica. Assim, o tema agora é a crítica da racionalidade produtivista, da racionalidade de dominação, tanto a da ciência quanto a da técnica moderna.

Nesse período, a Alemanhanha deixa de ser a referência exclusiva. Os pensadores da escola [Adorno, Horkheimer] já tinham emigrado para os EUA, e estavam vivendo a experiência de uma civilização pragmática e altamente tecnológica. Tematizaram o ‘desencantamento do mundo’ e a perda do sentido da existência numa civilização que é inimiga da memória, do passado. Pensaram criticamente uma racionalidade que pode levar à destruição planetária. ” (OLGÁRIA MATOS)

O valor desta empreitada para o mundo de hoje torna-se explícito: a Razão que a Teoria Crítica almeja destronar, desmascarar, dela divergir, prossegue triunfante e levando-nos a um cortejo de calamidades triunfais. Tanto aqueles que pensam uma ética global e cosmopolita que nos torne responsáveis pelos viventes vindouros e pelo futuro da vida no planeta, na esteira de autores como Hans Jonas (autor de O Princípio Responsabilidade) e Michel Serres (autor de O Contrato Natural), tanto aqueles que militam na causa ecosocialista (mapeada com brilhantismo no livrinho de Michael Löwy), tem ainda muito a aprender bebendo na obra de Horkheimers e Marcuses, de Adornos e Benjamins…

Eu diria, pra terminar, que Escola de Frankfurt não constata a morte total do Iluminismo: ela encontra sua utopia enterrada sobre os escombros, como uma pequena brasa que resiste por baixo das cinzas. Mesmo na obra considerada como tão pessimista de Adorno e Horkheimer podemos sentir a chama de algumas fagulhas de esperança, já que havia, para eles, no passado algumas esperanças que ainda solicitavam serem realizadas, por exemplo o plano libertário de superar a cisão entre Eros e Logos, “tornados antagônicos pela civilização repressiva”:

“Para a teoria crítica, é preciso delinear uma nova figura da razão e da racionalidade que reconcilie o sujeito e o objeto, o homem e a natureza, o corpo e a alma. É preciso que se reunifiquem Eros e Logos, tornados antagônicos pela civilização repressiva. Daí a importância da dimensão estética”, escreve Bernadette Siqueira Abrão, que considera em sua História da Filosofia que a Escola de Frankfurt possui uma potência crítica que pode incidir sobre toda a tradição filosófica racionalista, antiquíssima, que vai de Sócrates e Platão, passa por Agostinho e Pascal, deixa suas marcas em Descartes, Kant e Hegel… Uma tradição que corre o risco de ter transformado uma certa concepção da Razão um ídolo, prostra-se para adorá-lo, achando que este novo deus exige em sua homenagem alguns sacrifícios: “a repressão do sensorial e do sensual, que na tradição racionalista são considerados fonte de erro e ilusão.”(BERNADETTE SIQUEIRA ABRÃO, op cit, p. 463)

Laços de solidariedade quase bacântica poderiam ser estabelecidos entre o pensamento de Nietzsche – que não acreditaria em um Deus que não pudesse dançar, nem julgava que uma vida sem música pudesse ser algo mais que um erro – e certas louvações das arte, de um senso estético desperto, de faculdades criativas em pleno desabrochar, que encontramos nos frankfurtianos. Tanto que Olgária Matos repete sempre que a idéia presente na afirmação de Schelling – “lá onde a filosofia desampara e não consola, aí começa a arte” – poderia ser integralmente reivindicada pela teoria crítica.

“A arte assim compreendida procurará reconciliar Logos, Eros e Chrono, apontando para uma nova concepção de tempo: não mais a dos cronômetros e relógios, tempo vazio e do trabalho abstrato que mede uma espera, mas sim a atemporalidade do desejo, a fim de criar as condições de sua realização, pois, nas palavras de Adorno e Horkheimer, “não se trata de recuperar o passado, mas de realizar suas esperanças.” (op cit. p. 464)

E.C.M., 25/11/2015
CONTINUA EM UM PRÓXIMO POST (EM BREVE)

BIBLIOGRAFIA

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Ed Zahar, Rio, 2006.

ARENDT, HannahHomens Em Tempos Sombrios. Ed. Cia de Bolso.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. Ed. Brasiliense.

MATOS, Olgária. Vestígios – Escritos de Filosofia e Crítica Social. Ed. Palas Athena, SP, 1998.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA. De Bernadette Siqueira Abrão. São Paulo, 2004.

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SIGA VIAGEM COM OS VÍDEOS:

Márcia Tiburi explica a Escola de Frankfurt e a Teoria Crítica, com foco em Adorno, Horkheimer, Benjamin e Flusser. TV Puc/Sp.

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Marcos NobreO Marxismo da Teoria Crítica

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Olgária MatosTempo Sem Experiência [41 min]

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO – “Além da Metafísica e do Niilismo: a Cosmovisão Trágica de Nietzsche” [Eduardo Carli de Moraes, UFG, 2013]

Resumo
Ficha2
Além da Metafísica e do Niilismo:
a Cosmovisão Trágica de Friedrich Nietzsche (1844-1900)

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PREFÁCIO DO AUTOR

Nietzsche: eis um pensador que – nas palavras de um de seus comentadores, Gianni Vattimo – “é decisivo para o nosso presente e ainda repleto de futuro.”

 Uma das frases mais célebres de Nietzsche está em Ecce Homo: “Eu não sou um homem, eu sou dinamite” [1]. Já o sub-título de Crepúsculo dos Ídolos traz outra imagem de impacto: “Como filosofar com o martelo”. Estes dois retratos que Nietzsche pinta de si mesmo mostram que o filósofo sabe do potencial explosivo de suas críticas e demolições. Mas não nos esqueçamos que a dinamite não serve apenas para destruir e arruinar, mas também para abrir terreno para novas construções [2]. E também que um martelo, nas mãos de um escultor, serve para transformar um bloco de pedra em uma obra-de-arte, e que um médico, por sua vez, utiliza o martelo como instrumento para um diagnóstico clínico.

Na minha investigação, procurei compreender a filosofia nietzschiana como um empreendimento em que as facetas crítica e a criativa são indissociáveis, em que o destruidor e o criador estão reunidos. Uma máxima de A Gaia Ciência expressa isso muito bem: “Somente enquanto criadores temos o direito de destruir!” [3] Não considero, portanto, que o pensamento de Nietzsche seja motivado por um ímpeto apenas iconoclasta, polêmico e aniquilador. Mas sim que procura contribuir para libertar-nos do jugo de morais autoritárias, valores anti-naturais, superstições daninhas, dogmas inquestionados etc. A sabedoria nietzschiana nos convida à afirmação e à celebração da existência, em prol do desabrochar de potencialidades ainda não efetivadas, em favor de uma vitalidade ascendente e transbordante.

Neste trabalho, procurei mostrar que Nietzsche realiza não apenas uma crítica devastadora dos sistemas filosóficos metafísicos, das religiões instituídas e dos valores morais sacrossantos. Mas que há também um esforço, por parte do filósofo, em compartilhar uma sabedoria cujas características procurei explorar e que inclui uma revalorização do corpo, da sensorialidade, do devir, da multiplicidade, da alteridade, da pluralidade de perspectivas etc.

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“Se Deus não existisse, tudo seria permitido.” – Ivan Karamázov, personagem de Dostoiévski (1821-1881)

Apesar de muitas vezes referir-se a si mesmo como um “imoralista”, isto não significa, como procurei argumentar, que Nietzsche faça apologia de um vale-tudo moral, onde é abolida toda e qualquer responsabilidade e dever. Seria  simplista e falsificador atribuir a Nietzsche a célebre idéia do personagem de Dostoiévski, Ivan Karamázov, que sustenta que “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Procurei mostrar que a morte de Deus, em Nietzsche, é vista como acontecimento potencialmente libertador, como ocasião para a emergência de novos valores e estilos-de-vida.

“As consequências mais próximas [da morte de Deus], suas consequências para nós, não são, ao inverso do que talvez se poderia esperar, nada tristes e ensombrecedoras, mas antes são como uma nova espécie, difícil de descrever, de luz, felicidade, facilidade, serenidade, encorajamento, aurora… De fato, nós filósofos e ‘espíritos livres’ sentimo-nos, à notícia de que ‘o velho Deus está morto’, como que iluminados pelos raios de uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, assombro, pressentimento, expectativa – eis que enfim o horizonte nos aparece livre outra vez, posto mesmo que não esteja claro, enfim podemos lançar outra vez ao largo nossos navios, navegar a todo perigo, toda ousadia do conhecedor é outra vez permitida, o mar, o nosso mar, está outra vez aberto, talvez nunca dantes houve tanto ‘mar aberto’…” (A Gaia Ciência, 343)

Procurei destacar a ruptura que Nietzsche realiza com uma das correntes hegemônicas da filosofia ocidental, o platonismo, em especial a cisão do real em dois “mundos” (o Sensível e o Inteligível), o que Nietzsche considera uma “fábula”. A ideia de um mundo metafísico, sobrenatural, suposta morada do absoluto e do imutável, seria, segundo o pensamento nietzschiano, um dos mais duradouros equívocos da história da filosofia. Procurei argumentar que, em Nietzsche, todos os conceitos abstratos da razão, forjados a partir da experiência empírica, permanecem tendo uma existência derivada, como produção de cérebros humanos necessariamente vinculados a corpos animados pela vontade. Procuramos elucidar, portanto, o quanto a filosofia de Nietzsche procura refletir sobre a base fisiológica e psico-somática de onde emergem os conceitos abstratos, os valores morais, as doutrinas religiosas etc. Trata-se, como indica Patrick Wotling, de “denunciar as interpretações falíveis que desde Platão triunfam na tradição filosófica, interpretações idealistas, que esquecem seu estatuto e sua fonte produtora, o corpo.” [4]

Procurei elucidar que Nietzsche se mostra contrário a todas as moralidades baseadas no ideal ascético, ou seja, que negam valor ao corpo, ao desejo, às paixões, ao tempo, à esfera dita “mundana”. A ascese, isto é, o esforço auto-mortificante de purificação, baseia-se em geral na crença em uma alma imortal, que supõe-se destinada a um destino glorioso no além-túmulo. Nietzsche diagnostica neste ideal ascético uma hostilidade contra a vida, uma “calúnia” contra a realidade terrena, um anátema lançado contra o corpo e seus instintos, uma incapacidade de afirmação da existência em sua real finitude e em seus incontornáveis tormentos. Como diz Oswaldo Giacóia, o ideal ascético, como se manifesta por exemplo no platonismo e no cristianismo, “leva a efeito um movimento de completa desvalorização da imanência em proveito da transcendência. (…) Representa, assim, a desvalorização absoluta do ‘mundo’ e da ‘vida’ em proveito de uma vida imaginária, de um ‘além-do-mundo’.”[5]

O esforço de crítica da moral que Nietzsche empreende, portanto, tem como intenção possibilitar uma libertação das energias vitais que foram sufocadas, reprimidas e culpabilizadas por doutrinas morais ascéticas que oprimem os corpos, condenam os prazeres e pregam a hipertrofia de uma razão tirânica contra as paixões. Como diz Tongeren, “mediante uma crítica à moral, Nietzsche pretende abandonar intencionalmente o caminho aplainado e descobrir a abertura para aquilo que é possível para além desse horizonte, a abertura para ‘muitas auroras que ainda não brilharam’.” [6]

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Em meu trabalho destaco também que Nietzsche confere muita importância ao senso histórico, isto é, a um pensamento filosófico sempre atento ao ininterrupto fluir do tempo. Nietzsche forjou seu método genealógico no intento de compreender como vieram-a-ser as instituições, legislações, valores morais, costumes e crenças com que hoje nos deparamos. Compreender a origem histórica dos valores morais e relacionar seu surgimento a conflitos sociais de classe e jogos de dominação equivale a mostrar quão infundada e ilegítima é a pretensão das morais e das religiões de possuírem uma verdade eterna de fonte divina. Em Humano, Demasiado Humano, por exemplo, Nietzsche critica um defeito de muitos filósofos, que:

“Involuntariamente imaginam o homem como uma verdade eterna, como uma constante em todo o redemoinho, uma medida segura das coisas. Muitos chegam a tomar a configuração mais recente do homem, tal como surgiu sob a pressão de certas religiões e de certos eventos políticos, como a forma fixa de que se deve partir. Não querem aprender que o homem veio a ser, e que mesmo a faculdade de cognição veio a ser…  Tudo veio a ser, não existem fatos eternos, assim como não existem verdades absolutas. – Portanto, o filosofar histórico é doravante necessário, e com ele a virtude da modéstia.” [7]

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“Tudo flui. Não se entra duas vezes no mesmo rio.” – Heráclito de Éfeso (535 a.C. – 475 a.C.)

Quis mostrar que a filosofia de Nietzsche combate, portanto, a idéia de que existem valores morais, sistemas filosóficos ou doutrinas religiosas de validade eterna, verdade absoluta ou universalidade legítima. A própria Humanidade é concebida como um fenômeno histórico, re-inserida na Natureza que lhe deu origem, de modo que Nietzsche rompe também com a noção criacionista de uma origem sobrenatural para o homem. Por estar “embarcado” na correnteza da história, e por ser uma espécie animal dentre milhões de outras que co-existem no seio da Natureza em fluxo, o homem é inescapavelmente um ser mutante, que integra um cosmos eternamente movediço. Quer aceite este seu destino, quer lute contra ele, cada um de nós, para usar a expressão da canção de Raul Seixas, é uma “metamorfose ambulante”. Procuro compreender o pensamento de Nietzsche, portanto, como fiel ao preceito do filósofo grego Heráclito, que sustentava que “tudo flui” e que “é impossível entrar duas vezes no mesmo rio”.

Considero ainda que Nietzsche jamais sugeriu “fazer tábula rasa do passado”, nunca elogiou o esquecimento da História ou o aniquilamento de seus legados, mas sim uma relação dinâmica e fecunda com o passado: como escreve Karl Jaspers, “em nenhuma parte Nietzsche estima o ato de esquecer o que foi transmitido pela história e recomeçar a partir do nada… Toda sua obra é penetrada por seu intercâmbio com a grandeza do passado, mesmo daquele que ele rejeitou.”[8]

Prova desta relação frutífera com o passado é o modo como Nietzsche reativa a potência do mundo grego pré-socrático, como por exemplo os ritos dionisíacos e a obra dos poetas trágicos (em especial Ésquilo e Sófloces). Nietzsche formulou assim uma sabedoria, que encarna em seu Zaratustra ou nos espíritos livres, cujas características procuramos explorar nessa pesquisa: trata-se de um sujeito afirmador de sua vontade e de seu corpo, criativo e questionador, capaz de superar todo ressentimento através do amor fati, que jamais se acomoda em seu estado atual e procura sempre superar-se, e que age no mundo mais como sátiro do que como santo, mais como dançarino do que como estátua. Em A Gaia Ciência, por exemplo, Nietzsche pinta o retrato do espírito livre, que seria dotado de “uma alegria e uma força de soberania  (…) em que o espírito recusaria toda fé, todo desejo de certeza, tendo prática em manter-se sobre as cordas leves de todas as possibilidades e até mesmo em dançar à beira do abismo. Esse seria o espírito livre por excelência.” [9]

Para Nietzsche, as convicções e os dogmas são inimigos do filósofo e prejudicam-nos em nossa aventura de conhecimento. Quem quer de fato tornar-se amigo da sabedoria tem de ousar libertar-se de certezas apaziguadoras, crenças reconfortantes e tomadas-de-partido inquestionadas. Como diz em Aurora: “A serpente que não pode mudar de pele perece. O mesmo ocorre com os espíritos que se impedem de mudar de opinião; cessam de ser espíritos.” [10] O filósofo autêntico, de acordo com Nietzsche, é uma figura em que se encarna um certo ímpeto heroico de busca pelo saber. Relembremos as palavras de Aurora:

“Nosso impulso ao conhecimento é demasiado forte para que ainda possamos estimar a felicidade sem conhecimento ou a felicidade de uma forte e firme ilusão. (…) A inquietude de descobrir e solucionar tornou-se tão atraente e imprescindível para nós (…) que o conhecimento transformou-se em paixão que não vacila ante nenhum sacrifício e nada teme, no fundo, senão sua própria extinção…” [11]

Um clássico comentário do pensamento de Nietzsche escrito por Karl Jaspers

Um clássico comentário do pensamento de Nietzsche escrito por Karl Jaspers

A filosofia, afinal, não é uma busca interesseira por ideias apaziguadoras ou convicções agradáveis, nem por um cômodo repouso no colo de verdades imutáveis, mas um heróico navegar, em mares perigosos, em busca de um saber sobre o real que nada garante que terá um sabor doce ou que vá nos tornar felizes. O filósofo autêntico, para Nietzsche, segundo nossa interpretação, é aquele que ousa ir à conquista de um saber, ainda que este possa ter um gosto amargo e ainda que acarrete consequências trágicas; é aquele que, como diz Karl Jaspers, tem a coragem de entrar no labirinto, como fez Teseu, mesmo sabendo que terá que defrontar-se com o Senhor Minotauro. [12]

Consideramos que o efeito do convívio com a obra Nietzsche é a de um tônico para a vontade-de-viver. Eis uma filosofia, enfim, onde há muita sabedoria a assimilar, em especial por aqueles que, como diz Giacóia, “não temem fazer dos abismos do sofrimento uma fonte inestimável de conhecimento.” [13]

Em suma: procuramos mostrar o pensamento de Nietzsche como superação tanto da metafísica quanto do niilismo, culminando numa cosmovisão trágica que, longe de ser pessimista, significa uma celebração dionisíaca da existência como ela é, sem exclusão de seus aspectos mais dolorosos e problemáticos. Arqui-inimigo da apatia da vontade, do niilismo desalentador, do ascetismo auto-mortificante, Nietzsche, através de sua obra, canta um hino à vida que inclui um louvor à alegria, aquele afeto que, segundo Spinoza, aumenta nossa potência de existir. Como diz Zaratustra: “Desde que existem homens, o homem se alegrou muito pouco: apenas isso, meus irmãos, é nosso pecado original!” [14] Já em Humano, Demasiado Humano, Nietzsche escreve: “Eis o melhor meio de começar cada dia: perguntar-se ao despertar se nesse dia não podemos dar alegria a pelo menos uma pessoa. Se isso pudesse valer como substituto do hábito religioso da oração, nossos semelhantes se beneficiariam com tal mudança.” [15]

Para concluir este prelúdio, cito mais uma instigante idéia de Nietzsche, que me parece um belo emblema de sua “fidelidade à Terra”, em oposição à idolatria religiosa de ídolos sobrenaturais ou metafísicos: “Não há no mundo amor e bondade suficientes para que tenhamos direito de dá-los a seres imaginários.” [16]

Eduardo Carli de Moraes,
Goiânia – 08/11/2013
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REFERÊNCIAS:


[1] NIETZSCHE, Ecce Homo. Por Que Sou um Destino, §01.

[2] É o que aponta Martha Nussbaum: “Indeed, this was the whole purpose of genealogy as Nietzsche, Foucault’s precursor here, introduced it: to destroy idols once deemed necessary, and to clear the way for new possibilities of creation.” Citada por Brobjer, Nietzsche’s Ethics of Character, Pg. 49.

[3] NIETZSCHE. A Gaia Ciência, §58.

[4] Ibid. Pg. 155.

[5] GIACOIA, O. Labirintos da Alma: Nietzsche e a Auto-Supressão da Moral. Pg. 13-38.

[6] TONGEREN, P.V. A Moral da Crítica de Nietzsche à moral. Pg. 43-44.

[7] NIETZSCHE. Humano, Demasiado Humano. Capítulo 1, §2.

[8] JASPERS. Nietzsche: Introduction à sa Philosophie. Pg. 445.

[9] NIETZSCHE. A Gaia Ciência. §347.

[10] NIETZSCHE. Aurora.  §573.

[11] Ibid, §429.

[12] JASPERS. Op Cit. Pg. 231.

[13] GIACOIA. O Humano Como Memória e Como Promessa. Pg. 183.

[14] NIETZSCHE. Assim Falou Zaratustra. Op cit. Livro II, Dos Compassivos. Pg. 84.

[15] NIETZSCHE. Humano Demasiado Humano, §589.

[16] Humano, Demasiado Humano, § 129. Citado a partir de Lou Andreas-Salomé, op cit, Pg. 139: “Il n’y a pas assez d’amour et de bonté dans le monde pour avoir licence d’en rien prodiguer à des êtres imaginaires.”

Souvenir da banca na companhia de Adriana Delbó, Maria Cristina Franco Ferraz e Adriano Correia.

Um souvenir fotográfico da banca – com Adriana Delbó, Maria Cristina Franco Ferraz e Adriano Correia.

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P.S. – nos próximos meses, tentarei desmembrar este mestrado em 3 ou 4 artigos, a serem publicados em revistas de filosofia, se possível, ou aqui no blog mesmo, pra “socializar” a pesquisa e “pôr na roda” o conhecimento. Em breve!

Siga viagem…

HANNAH ARENDT – O FILME (DIREÇÃO: MARGARETHE VON TROTTA) [ASSISTA NA ÍNTEGRA OU FAÇA O DOWNLOAD]

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Hannah Arendt (1906-1975)
Um filme de Margarethe von Trotta
Estrelado por Barbara Sukowa
Completo e legendado em português:

DOWNLOAD TORRENT

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LEIA TAMBÉM:

Hannah5 “Origens do Totalitarismo”
Download do e-book
(Cia das Letras, 1990, pdf)

“A incisiva e inesgotável sugestividade do abrangente pensamento de Hannah Arendt torna este livro […] ponto de referência indispensável para a reflexão político-filosófica no mundo contemporâneo.” Celso Lafer

“Um formidável instrumento de análise, aqui e agora, para desvendar os elementos de autoritarismo, de opressão, que sobrevivem no liberalismo dos regimes democráticos ou no socialismo que se liberaliza.”Paulo Sérgio Pinheiro

SINOPSE:  “Origens do Totalitarismo” tornou-se um clássico logo depois de sua publicação, e até hoje a obra é considerada a história definitiva dos movimentos políticos totalitários. Hannah Arendt primeiro elucida o crescimento do antissemitismo na Europa Central e Ocidental nos anos 1800 e prossegue com a análise do imperialismo colonial europeu desde 1884 até a deflagração da Primeira Guerra Mundial. A última seção discute as instituições e operações desses movimentos, centrando-se nos dois principais regimes totalitários da nossa era: a Alemanha nazista e a Rússia stalinista. Arendt considera a transformação de classes em massas, o papel da propaganda para lidar com o mundo não totalitário e o uso do terror como fatores essenciais para o funcionamento desse tipo de regime. E no brilhante capítulo de conclusão, ela avalia a natureza de isolamento e solidão como precondições da dominação total.

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“A Vida do Espírito” (Relume Dumará, 1992, 21 MB, PDF)
Download e-book

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“A Condição Humana”
Download e-book

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Arendt Eichmann“Eichmann en Jerusalén – Un estudio sobre la banalidad del mal”
Download e-book

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Arendt“Men in Dark Times”
Download ebook

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“O mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. É isto o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois de nós. Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao advento e à partida das gerações na medida em que tem uma presença pública. É o caráter público da esfera pública que é capaz de absorver e dar brilho através dos séculos a tudo o que os homens venham a preservar da ruína natural do tempo. (…) Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar.” HANNAH ARENDT em “A Condição Humana” (Compartilhar via Facebook)

“Além da metafísica e do niilismo: a cosmovisão trágica de Nietzsche” (Mestrado // Eduardo Carli de Moraes)

Mestrado

Pessoal, disponibilizei na íntegra no portal Academia.edu a dissertação que nasceu como fruto dos meus 2 anos de Mestrado, na faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás – UFG: (voilà!) >>> http://bit.ly/1wvIY0b. Evoé, Friedrich Nietzsche!!! Este mestrado foi defendido em Novembro de 2013 diante da banca ilustre composta por Adriano Correia, Adriana Delbó e Maria Cristina Franco Ferraz. Agora, o arquivo está aí, compartilhado e liberado pra ser lido na Internet, baixado de graça e “pirateado” livremente (é filosofia copyleft…); todo e qualquer feedback será bem-vindo! Eis o link para download em PDF (menos de 2 megabytes).

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MORAES, E. C. Além da metafísica e do niilismo: a cosmovisão trágica de Nietzsche. Dissertação (Mestrado em Filosofia), Universidade Federal de Goiás. 2013.

Esta dissertação de mestrado tem por objetivo refletir sobre a filosofia de Friedrich Nietzsche (1844-1900), compreendida como tentativa de superação tanto da metafísica quanto do niilismo. Destaca-se a valorização nietzschiana de um pensamento dotado de senso histórico, fiel ao devir ininterrupto do real, o que implica em uma cosmovisão semelhante à de Heráclito. Defende-se que a posição peculiar de Nietzsche na história da filosofia moral consiste na análise crítica da multiplicidade de diferentes valorações morais, sempre remetidas a suas fontes humanas (demasiado humanas). Através da atenção às circunstâncias e condições de surgimento, desenvolvimento e ocaso dos diversos ideais, valores morais e doutrinas religiosas, procuramos mostrar como Nietzsche constitui uma filosofia que rompe com a noção de valores divinos e imutáveis, além de des-estabilizar crenças em verdades absolutas. De modo a ilustrar o método genealógico nietzschiano em operação, investigam-se fenômenos como o ressentimento e o ascetismo, re-inseridos no fluxo histórico e compreendidos a partir de seus pressupostos psicológicos, fisiológicos e sócio-políticos. Com base em ampla pesquisa bibliográfica da obra de Nietzsche e comentadores (como Jaspers, Wotling, Rosset, Giacoiua, Moura, Ferraz, dentre outros), argumenta-se que a filosofia nietzschiana realiza uma ultrapassagem da cisão platônico-cristã entre dois mundos, além de uma superação do dualismo entre corpo e espírito. Procura-se descrever como a filosofia anti-idealista de Nietzsche, avessa ao absolutismo e ao sobrenaturalismo, age como uma “escola da suspeita”, convidando-nos a um filosofar liberto de subserviência, credulidade e obediência acrítica à tradição. Explora-se também a temática da “morte de Deus” e da derrocada dos valores judaico-cristãos, além da concomitante escalada do niilismo, no contexto de uma filosofia que busca sugerir e abrir novas vias para a aventura humana ao mobilizar conceitos como amor fati, além-do-homem e “fidelidade à terra”. Nietzsche é compreendido não somente em seu potencial crítico, demolidor da tradição idealista e metafísica, mas também como criador de uma sabedoria trágica e dionisíaca que se posiciona nas antípodas tanto dos ideais ascéticos quanto dos ideários niilistas.

PALAVRAS-CHAVE: Friedrich Nietzsche, Sabedoria Trágica, Crítica à Metafísica, Niilismo, Ética.

LEIA / BAIXE: http://bit.ly/1wvIY0b

Dançando à Beira do Abismo: Nietzsche segundo Stefan Zweig

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Some remarks upon...

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STEFAN ZWEIG (1881-1942),
“The Struggle With The Demon – Kleist, Hölderlin and Nietzsche”
Introduction and Translation by Will Stone.
Hesperus Press, London, 2013.


stefan-zweig-nietzsche-le-combat-avec-le-demon_2254061-MArticle by Eduardo Carli de Moraes:

PART I. A DANGEROUS LIFE

Maybe the thrill in our veins when we read Nietzsche derives from the sense of danger that his words exhale: he’s inviting us to dance near the abyss, and without safety nets. Nietzsche desires life to be risky and full of surprises, and is furious against all tendencies of sheepish conformity. A true lover of art and poetry, Nietzsche was both a great thinker and a great artist – one who claimed that “we have art so that we might not die of the truth.” For him, an authentic “free spirit” doesn’t shy away from confrontation with the riddles of existence, even the most scary and painful ones: if you want knowledge, you’ll have to face the monsters of the abyss, and let the abyss stare into you!

As Karl Jaspers wrote on his awesome book about Nietzsche, the philosopher worthy of his task is a figure similar to Theseus: he enters boldily into the labyrinth, willing to be face the danger of being eaten by Minotaurs. In Stefan Zweig’s writings on Nietzsche we feel the emphasis falling upon the dangerousness of Nietzsche life and fate. In his introduction, Will Stone recalls how much Zweig’s book focuses on “the decisive abandonment of security by Nietzsche and his propensity to take an ever more self-destructive tightrope walk, where all safety nets are strictly forbidden.” (Will Stone, Introduction, XIX)

“Voluntarily, in all lucidity, renouncing a secure existence, Nietzsche constructs his unconventional life with the most profound tragic instinct, defying the gods with unrivalled courage, to experience himself the highest degree of danger in which man can live.” (Zweig, p. 6)

Few philosophy books can be said to be as exciting as a roller-coaster ride or a bungee-jump. I believe Nietzsche’s impact on posterity has to do, partly, with those adrenaline shots we receive from his writings. We can re-read his words many times because they provoke us, entice us, marvel us, enfuriate us – but hardly ever leave us indiferent. The flame of life, in each to us, seems to burn more brightly and intensely when we come to spend so time in company with Nietzsche’s flaming words. My experience as a reader of Nietzsche’s books leads me to cherish him as a powerful voice who affects people deeply – some may disagree with him, but this disagreement itself is usually so vehement and intense that it serves as a sign of the echoes, either consonant or dissonant, that Nietzsche’s words arouses. Philosophy in the 20th century was profoundly shaken and inspired by Nietzsche’s books, but in his life, as Zweig points out, he was eaten alive, bit by bit, by the demon of solitude.

Despite his attempts to make his voice be heard, many commentators point out that Nietzsche lived an utterly lonely, isolated existence – “a solitude deprived even of God”, writes Zweig. Nietzsche ended up “crushed by the world’s silence.” (pgs. 5-7) In the following lines, Zweig is less a biographer than a painter: he’s trying to get us in synch with the philosopher’s emotional mood: “One feels here is a man residing in the shadows, apart from all social conviviality, (…) a man who over the years has lost the habit of social interaction and dreads the prospect of being asked too many questions.” (pg. 10)

Nietzsche’s health can be seen as one reason for his choice of an isolated life-style, but it doesn’t explain why the philosopher chose to cut himself even from the most basic of relationships needed, for survival reasons, for someone in his condition: the relationship with a doctor! Nietzsche rarely sought aid of professionals in the medicine field: he mostly self-medicated. He kept away from alcoholic beverages, never drank cofee nor smoked cigarettes. His pension-room had always among its furnishing elements, according to Zweig’s lively description, “an horrifying arsenal of poisons and narcotics”:

 “On a shelf, innumerable bottles, flasks and tinctures: for headaches, which regularly occupy so many wasted hours, for stomach cramps, spasmodic vomiting, instestinal weakness, and above all, those terrible medicaments to control insomnia – chloral and veronal.” (11)

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A portrait of the philosopher by Norwegian painter Edvard Munch


Imagine Zweig as a painter, and his words as drawings in our imagination, and let’s hear how he further paints Nietzsche portrait: the philosopher’s eye-sight is poor, without his glasses he would be blind as a bat. But that seems to be no impediment to his will to devote so much energy into the activities of reading and writing (which demand so much eye-labor). Most nights, Nietzsche’s brain just won’t turn off, and he can only restore his energies by sleep if he ingests some kind of soporific medicine.

“Sometimes he spends the whole day confined to bed. And no one comes to his aid, not even a helping hand, no one to lay a cool compress on his burning brow. No one to read to him, to chat with him, to laugh with him… never a warm naked female body beside his own.” (p. 11-12)

A grim picture of disease and loneliness is painted before our eyes by these Zweigian words, but they serve merely as background for the main figure in the painting: a tragic hero in the realm of knowledge, Nietzsche himself, and the process by which he falls down into the abyss. Would we dare, right here and right now, rebelling against the silence that springs from his grave, delve into the mystery of Nietzsche’s life and death?

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Zweig seems to want his reader to pity the fragile and lonesome state of poor Nietzsche – friendless, abandoned, unloved. I couldn’t help imagining how Nietzsche himself would judge Zweig’s portrait. Nietzsche himself was never attracted by self-pity, and it may be argued that he chose voluntarily to lead a life in which we wouldn’t bother others with his health issues – as if he was trying to put to practise a radical attempt at self-reliance, even in the worst conditions. As Jacob Burckhardt points out, Nietzsche lived as if his task were “to increase independence in the world” (quoted by Zweig, pg. 89), and it’s hard to imagine a philosopher who took so seriously the task of being independent. The fluctuations of his health had profound impact upon his emotional state and the “mood” of his tought: by his own life-experience Nietzsche extracted awesome insights into the inner workings of the human mind. He’s arguably one of the greatest psychologists of the 19st century (he claimed to have learnt psychology mainly with Stendhal and Dostoivésvki), an certainly a pioneer in pre-Freudian times.

 Zweig’s book focuses a lot on Nietzsche’s life, especially the connection between his existential loneliness and his outstanding artistic and philosophical productions. It leads the reader to ask himself: why did this philosopher, who had demolished the moral ideals of asceticism (mainly in his Genealogy of Morals), chose to live in a condition of isolation similar to those hermits he criticised so much? What caused Nietzsche’s attitude of removal from sociability: was it arrogance or pride ? What could have acted as an impediment in the route to Alterity, in Nietzsche’s life? What was the obstacle he couldn’t trespass, keeping him from crying out for help and accepting the aid of human love? Were the people around him to blame for being indiferent and uncomprohensive?

According to Zweig, aways, everywhere he lived, Nietzsche was a foreigner. And that usually doesn’t make easier the task of building friendship. It can’t be said that friendship is highly valued in his books. And it doesn’t seem to me that Nietzsche pursued in his life, with much interest or passion, a quest for human warmth and love. Lou Salomé is maybe the sole female figure in Nietzsche’s life to have aroused in him some kind of dream about redemption by love, some passionate widening of his emotional chest to the realm of the Other, but we know well things didn’t turn out that rosely. Nietzsche couldn’t see la vie en rose and his passion for Lou Salomé turned out to be a devasting heart-break. After the rupture with Lou Salomé, facing what he calls “the greatest crisis of his life”, he writes Zarathustra, a work-of-art and an philosophical poem that carry the mark of something unique. His bond with Lou had collapsed, in ruins were all the bridges of dreams, and in utter solitude he set out to write a book about a character who spent ten years far from all human contact, and tries to re-descend among the humans, to reveal what he learned whilst dwelling in the wilderness, only to discover that everyone miscomprehends him. A book born out of Nietzsche’s abyss, filled with dancing stars, chaotic and colourful as life itself. 

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PART II. THE WOUND OF NO REPLY

“The year-in year-out lack of a really refreshing and healing human love, the absurd loneliness that it brings with it, to the degree that almost every remaining connection with people becomes only a cause of injury; all that is the worst possible business and has only one justification in itself, the justification of being necessary.” – Letter sent by Nietzsche to his friend Overbeck, 3.2.88

Much speculation about Nietzsche breakdown in Turin is to be found in dozens of books. To this pile of speculation, Zweig adds his own contribution:

“For 15 years this cave life of Nietzsche continues from rented room to rented room, while he remains unknown…. only the flight of Dostoyevsky, almost at the same moment in time, with equitable poverty and neglect, is illuminated by the same cold grey spectral light. Here, as there, the work of a titan conceals the gaunt figure of the poor Lazarus who daily expires from his despair and infirmity in solitude, as day by day, the miracle savior of creative will awakens him from the depths. For 15 years, Nietzsche emerges thus from the coffin of his room, moving upwards and downwards, with suffering upon suffering, death upon death, resurrection upon resurrection, until, over-heated by such a flood of energy, his brain breaks apart. (…) Un-accompanied and unkown, the most lucid genius of the spirit rushes headlong into his own night.” (13)

Tough Nietzsche suffered a lot, he didn’t turn angrily against life, nor did he sought final relief in suicide. His philosophy is born out of the dwellings of his mind with his pains: “pain always searches to know the causes, whilst pleasure remains in a fixed position and does not look backwards”, he wrote. “Mighty pain is the last liberator of the spirit; she alone forces us to descend into out ultimate dephts.” And elsewhere: “I know life better, because I have so often been at the point of losing it.” (p. 23)

“Nietzsche never sets up house, with a view to economizing and conserving, he builds no spiritual home; he wants (or perhaps he is forced by the nomadic instinct in his nature) to remain eternally without possessions, the solitary Nimrod who wanders with his weapons through all the forests of the spirit, who has no roof, no wife, no child, no servant, but who, on the other hand, has the thrill and pleasure of the hunt; like Don Juan, he adores not the enduring feeling but the fleeting moments of greatness and ecstasy. He is solely attracted by an adventure of the spirit, by that ‘dangerous perhaps’ that stimulates and excites as long as the chase is on but as soon as attainmet is reached loses its grip.” (29)

In Zweig’s perspective, Nietzsche sounds the alarms and alerts us – prophetically – against the ills of nationalism and praises cosmopolitism:

“Nietzsche is content to be without country, without home or possessions, cut off forever from that ‘parochialism of the fatherland’, from all ‘patriotic subjugation’. His perspective will be the lofty one of the bird in flight, of the ‘good European’, of that ‘essentially nomadic race of men who exist outside of nations’. (…) Once Nietzsche has established himself in the south, he steps definitively beyond his past; he is peremptorily de-Germanized, de-Christianized… the navigator to the realm of the future is too happy to be embarking on ‘the fastest ship to Cosmopolis’ to experience any nostalgia for his unilateral, uniform and univocal fatherland. That is why all attempts to re-Germanize him should be strongly condemned.

At the same time as de-Germanizing him, the south also serves to de-Christianize him completely. Whilst like a lizard he enjoys the sun on his back and his soul is lit right through to his innermost nerves, he ponders what exactly had left the world in shadow for so long, made it so anguished, so troubled, so demoralized, so cowardly conscious of sin, what had robbed the most natural, the most serene, the most vital things of their true value, and had prematurely aged what was most precious in the universe, life itself. Christianity is identified as the culprit, for its belief in the hereafter, the key principle that casts its dark cloud over the modern world.This ‘malodorous Judaism, concocted of Rabbinic doctrines and superstition’ has crushed and stifled sensuality, the exhilaration of the world and for fifty generationshas been the most lethal narcotic, causing moral paralysis in what was once a genuine life force. But now (and here he sees his life as a mission), the crusade of the future agains the cross has finally begun, the reconquest of the most sacred country of humanity: the life of the world.” (pg. 61-63)

Zweig also suggests that, with Nietzsche, it appears for the first time upon the high seas of German philosophy the black flag of a pirate ship. With Nietzsche, it dawns

“a new brand of heroism, a philosophy no longer clad in professorial and scholarly robes, but armed and armored for the struggle. Others before him, comparably bold and heroic navigators of the spirit, had discovered continents and empires; but with only a civilizing and utilitarian interest, in order to conquer them for humanity, in order to fill in the philosophical map, penetrating deeper into the terra incognita of thought. They plant the flag of God or of the spirit on the newly conquered lands, they construct cities, temples and new roads in the novelty of the unkown and on their heels come the governors and administrators, to work the acquired terrain and harvest from it the commentators and teachers, men of culture. But the final objective of their labours is rest, peace and stability: they want to increase the possessions of the world, propagate norms and laws, establish a superior order.

Nietzsche, in contrast, storms into German philosophy like the filibusters making their entrance into the Spanish empire at the end of the 16th century, a wild unruly swashbuckling swarm of desperados, without nation, ruler, king, flag, home or residence. Like them he conquers nothing for himself, or anyone following him, not for a god, or a king, or a faith, but uniquely for the pleasure of conquest, for he wants to acquire, conquer and possess nothig. He concludes no treaty nor build a house, he scorns the rules of war put in place by philosophers and he seeks no disciple… Nothing was more foreign to Nietzsche than to merely proceed towards the habitual objective of philosophers, to an equilibrium of feeling, to repose in a tranquilitas, a sated brown wisdom at the rigid point of a unique conviction. He spends and consumes successive convictions, rejecting what he has acquired, and for this reason we would do better to call him Philaleth, a fervent lover of Aletheia, truth, that chaste and cruelly seducing godess, who unceasingly, like Artemis, lures her lovers into an eternal hunt only to remain ever inaccesible behind her tattered veils.” (pg. 43)

In Nietzsche’s fate we can read the tragedy of someone who, tortured by disease and anguish, embarks head-on in Knowledge’s dangerous adventure. Alone and frail, but bold and curious, he’s a man who, like a serpent, exchanged skins thoughout his life. But, as Zweig points out, his only homeland was solitude. Wherever he lays his hat, there he’s alone. He journeys through the land, but doesn’t seem ever to leave loneliness behind. There’s a song by Portishead in which Beth Gibbons wails: “This loneliness just won’t leave me alone”. It’s quite possible Nietzsche knew a lot about this emotional mood. The philosopher has been acquainted with the blues. Sometimes, it seems, he tries to believe isolation is a merit and that the geniuses of humanity shouldn’t mix with the riff-raff – that’s why many nostrils can smell arrogance in Nietzsche attitude, some aristocratical eliticism, as if the man believes he shouldn’t wallow in the mud of common vulgarities.

This loner consoles himself, to lessen the pains of his solitude,  with the idea that posterity will understand and honour him. Free spirits yet to be born keep him company through his darkest hours. He warms himself by the fireside of his imagination of future glories. Zarathustra is filled with images, bursting from a mind intoxicated by poetry, of better days to come, of men who have outgrown mankind as we know it. The question I pose is: how maddening is it to seek human warmth on the imaginary realm? Can you cure yourself from loneliness with the dreamt shadow of future friends?

In Nietzsche’s final years, he gets increasing bombastic. Now he brags he’s dynamite. His previous books were almost completely ignored by the general population of the planet, and he can’t deal with this easily, emotionally speaking: he felt “only immutable solitude multiplied” and this is what, according to Zweig, “turns his soul gangrenous”: the wound of no reply.” (75)

 His descent into the abyss is portrayed by Zweig as a tragedy of utter solitude. Nietzsche sinks, his brain shatters, because the burden of the world’s indifference and deafness is too much to bear. Nietzsche’s own judgement of his past achievements, in Ecce Homo, may sound deeply narcisistic and self-glorifying: he believes, for example, that Zarathustra is the biggest gift ever given to humanity, the greatest book ever written, and that whole universities should be created and devoted to its study. Some chapters of Nietzsche’s intriguing auto-biography are filled with self-celebration and megalomania, as if he’s trampling modesty underfoot: Nietzsche explains to his readers why he  is so wise, how does he manage to write such great books, and considers himself to be an event in History that will divide it in two epochs. Zweig’s interpretation invites us to understand this as a symptom of his social isolation, of his frustration about the silence that surrounded his ideas, and which was so rarely broken in Europe during his life (only George Brandes, professor in Copenhagen, made an effort to spread Nietzsche’s ideas in academic circles during the philosopher’s life).

When he reached the period when he wrote his last books – among them are The Antichrist, Twilight of the Idols, Ecce Homo… –  Nietzsche seems to be increasingly furious, bombastic. He writes with outbursts of rage and indignation, striving to get some answer from the world around him. Even hostility from readers seems to him to be better than silent indifference. This is how Zweig describes this late Nietzschean works:

“There are contained the most unbridled scornful cries of rage and heavy groans of suffering, flayed from his body by the whip of impatience, a savage growling through foaming mouth and bared teeth… provoking his epoch so that they react and let go a howl of rage. To defy them still, he recounts his life in Ecce Homo with a level of cynicism which will enter into universal history. Never has a book exhibited such a craving, such a diseased and feverish convulsion of impatience for response, than the last monumental pamphlets of Nietzsche: like Xerxes insubordinately battling the ocean with a scourge, with insane bravado he wants the indifferent to be stung by the scorpions of his books, to defy the weight of immunity which enshrouds him. (…) In the glacial silence and lost in his own entrancement, he lifts his hands, dithyrambic his foot twitches: and suddenly the dance begins, the dance around the abyss, the abyss of his own downfall.” (p. 77)

Stefan Zweig’s book is filled with this kind of highly dramatical images, as if he’s trying to honour Nietzsche with a painting worthy of a tragic hero. It’s certainly a very impressive and sensitive portrayal of Nietzsche, tough in its less than 100 pages it doesn’t share many details of the philosopher’s life (this has been done by Curt Paul Janz, Rudiger Safranski and other biographers). Zweig’s perspective is filled with melancholia and he decribes the “struggles with the demon” experienced by Hölderlin, Kleist and Nietzsche as something he also has experienced in his own flesh. Zweig’s life, similarly to that of Nietzsche, can’t be said to have ended happily: he was living in Rio de Janeiro, Brazil, when he commited suicide in 1942. He had sought refuge from the horrors of the World War in Europe, a jew fleeing from the claws of the Holocaust. For a while, he believed Brazil to be “the country of the future”, a safe harbour where no racism or anti-semitism existed. In his book, Brazil – Country of The Future, he idealizes his new home with the eyes of the refugee who was leaving behind a world of intolerance, hatred and persecution. Then, frustration takes over, and he shoots himself in Petropolis. But that’s another story.

I believe Zweig’s Nietzsche is a book whose great merit lies in the description of Nietzsche’s existential position, one of social isolation of almost complete lack of community bonds. He’s downfall, according to an interpretation by Brazillian philosopher Oswaldo Giacoia, one of the leading figures in Nietzsche studies in Latin America, is deeply related the fact that he couldn’t belong to what Hannah Arendt used to call “a common world”. One of the most interesting psychological problems posed by Nietzsche’s fate, it seems to me, is this: how important for psychic health are the lived experienced of community bonds? What are the consequences of radical rupture with the whole dimension of alterity? Or, put more simply, what’s the price that pays the person who lives without any of the warmth provided by friendship and love? 

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Stefan Zweig, author of “The Struggle With The Demon – Hölderlin, Kleist and Nietzsche”. Click here to read an excerpt of the last chapter of Zweig’s book.

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TRIP ON:

Human All Too Human – BBC Series – Full Episode

Nietzsche: Além da Metafísica e do Niilismo…

nietzsche + munch

Nietzsche representado em pintura de Edvard Munch (1863–1944)

Na última sexta-feira, 08 de Novembro, defendi minha tese de mestrado, Além da Metafísica e do Niilismo: a Cosmovisão Trágica de Nietzsche, na Faculdade de Filosofia da UFG (Universidade Federal de Goiás). A banca foi integrada por meu orientador Adriano Correia, pela professora Adriana Delbó, ambos da própria UFG, além da convidada Maria Cristina Franco Ferraz (da UFF – RJ), autora dos livros O Bufão dos Deuses, Nove Variações Sobre Temas Nietzschianos e Homo Deletabilis – Corpo, Percepção e Esquecimento do século XIX ao XXI, dentre outros. Os três foram muito simpáticos, prestativos e generosos em suas falas e realmente me auxiliaram muitíssimo com este feedback sobre meu trabalho. Aproveito para agradecer a presença do público que apareceu para prestigiar esta defesa – valeu mesmo a todo mundo que compareceu! Minhas saudações agradecidas aos amigos Anna Paula Campos, Juliana Damázio, Juliana Marra, Kárita Melo, Lídia Freitas, Ramon Pereira, Éder David Freitas, Walquíria Batista, William Bento, e a meus pais João e Mara.

Pra mim este rito de passagem, coroação dos últimos dois anos de intensos estudos e escritos, foi uma experiência intensa, memorável, enriquecedora. O diálogo com a banca realmente abriu meus olhos para certos defeitos e imperfeições do meu trabalho, mas também me deixou satisfeito com a confirmação de seus méritos e com o reconhecimento de seus valores; e agora é seguir avante, investigando e suspeitando, descobrindo e re-questionando, porque o mergulho no pensamento de Nietzsche jamais foi para mim somente um interesse acadêmico, mas algo que seduz e convoca desde as vísceras – e prossigo com vontade de me aprofundar no contato com esta obra magnífica, perturbadora, urgente, tonificante…

Nada seria menos nietzschiano do que acomodar-se na crença de já conhecer Nietzsche, quando este pensador convida muito mais a que nunca estacionemos ou estagnemos em nenhum degrau do conhecimento, mas prossigamos subindo a aventurosa escada do saber – e do criar.  A superação do atual me parece uma convocação constante do pensamento nietzschiano, que repudia todo comodismo e toda estagnação, convidando-nos a uma postura existencial de procura contínua de superar o dado e criar o novo. E esta escada não leva ao céu, mas sim ao futuro – “a única transcendência do homem sem deus”, como diz Camus. Na sequência, compartilho o meu “discurso de abertura”, tentativa de “síntese” do que procuro explorar em mais detalhe e minúcia na tese, além de uma fotografia da banca, souvenir desta “manhã clara e nietzschiana”…

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Gianni Vattimo (1936 - ), pensador italiano, autor de "Diálogos com Nietzsch" (Ed. Martins Fontes),

Gianni Vattimo (1936 – ), pensador italiano, autor de “Diálogos com Nietzsche” (Ed. Martins Fontes),

Bom dia! Agradeço pela presença de todos. E aproveito para saudar os membros da banca e dizer que me sinto como um aprendiz diante de educadores que contribuíram muito com a minha formação durante este mestrado – e a quem manifesto desde já minha gratidão. Nestes 15 minutos iniciais, vou fazer uma breve introdução sobre minha pesquisa sobre Nietzsche – um pensador que, nas palavras de um de seus comentadores, Gianni Vattimo, é “decisivo para o nosso presente e ainda repleto de futuro.”

 Uma das frases mais célebres de Nietzsche está em Ecce Homo: “Eu não sou um homem, eu sou dinamite” [1]. Já o sub-título de Crepúsculo dos Ídolos traz outra imagem de impacto: “Como filosofar com o martelo”. Estes dois retratos que Nietzsche pinta de si mesmo mostram que o filósofo sabe do potencial explosivo de suas críticas e demolições. Mas não nos esqueçamos que a dinamite não serve apenas para destruir e arruinar, mas também para abrir terreno para novas construções [2]. E também que um martelo, nas mãos de um escultor, serve para transformar um bloco de pedra em uma obra-de-arte, e que um médico, por sua vez, utiliza o martelo como instrumento para um diagnóstico clínico.

Na minha investigação, procurei compreender a filosofia nietzschiana como um empreendimento em que as facetas crítica e a criativa são indissociáveis, em que o destruidor e o criador estão reunidos. Uma máxima de A Gaia Ciência expressa isso muito bem: “Somente enquanto criadores temos o direito de destruir!” [3] Não considero, portanto, que o pensamento de Nietzsche seja motivado por um ímpeto apenas iconoclasta, polêmico e aniquilador. Mas sim que procura contribuir para libertar-nos do jugo de morais autoritárias, valores anti-naturais, superstições daninhas, dogmas inquestionados etc. A sabedoria nietzschiana nos convida à afirmação e à celebração da existência, em prol do desabrochar de potencialidades ainda não efetivadas, em favor de uma vitalidade ascendente e transbordante.

Neste trabalho, procurei mostrar que Nietzsche realiza não apenas uma crítica devastadora dos sistemas filosóficos metafísicos, das religiões instituídas e dos valores morais sacrossantos. Mas que há também um esforço, por parte do filósofo, em compartilhar uma sabedoria cujas características procurei explorar e que inclui uma revalorização do corpo, da sensorialidade, do devir, da multiplicidade, da alteridade, da pluralidade de perspectivas etc.

karamazov

“Se Deus não existisse, tudo seria permitido.” – Ivan Karamázov, personagem de Dostoiévski (1821-1881)

Apesar de muitas vezes referir-se a si mesmo como um “imoralista”, isto não significa, como procurei argumentar, que Nietzsche faça apologia de um vale-tudo moral, onde é abolida toda e qualquer responsabilidade e dever. Seria  simplista e falsificador atribuir a Nietzsche a célebre idéia do personagem de Dostoiévski, Ivan Karamázov, que sustenta que “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Procurei mostrar que a morte de Deus, em Nietzsche, é vista como acontecimento potencialmente libertador, como ocasião para a emergência de novos valores e estilos-de-vida.

“As consequências mais próximas [da morte de Deus], suas consequências para nós, não são, ao inverso do que talvez se poderia esperar, nada tristes e ensombrecedoras, mas antes são como uma nova espécie, difícil de descrever, de luz, felicidade, facilidade, serenidade, encorajamento, aurora… De fato, nós filósofos e ‘espíritos livres’ sentimo-nos, à notícia de que ‘o velho Deus está morto’, como que iluminados pelos raios de uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, assombro, pressentimento, expectativa – eis que enfim o horizonte nos aparece livre outra vez, posto mesmo que não esteja claro, enfim podemos lançar outra vez a o largo nossos navios, navegar a todo perigo, toda ousadia do conhecedor é outra vez permitida, o mar, o nosso mar, está outra vez aberto, talvez nunca dantes houve tanto ‘mar aberto’…” (A Gaia Ciência, 343)

Procurei destacar a ruptura que Nietzsche realiza com uma das correntes hegemônicas da filosofia ocidental, o platonismo, em especial a cisão do real em dois “mundos” (o Sensível e o Inteligível), o que Nietzsche considera uma “fábula”. A ideia de um mundo metafísico, sobrenatural, suposta morada do absoluto e do imutável, seria, segundo o pensamento nietzschiano, um dos mais duradouros equívocos da história da filosofia. Procurei argumentar que, em Nietzsche, todos os conceitos abstratos da razão, forjados a partir da experiência empírica, permanecem tendo uma existência derivada, como produção de cérebros humanos necessariamente vinculados a corpos animados pela vontade. Procuramos elucidar, portanto, o quanto a filosofia de Nietzsche procura refletir sobre a base fisiológica e psico-somática de onde emergem os conceitos abstratos, os valores morais, as doutrinas religiosas etc. Trata-se, como indica Patrick Wotling, de “denunciar as interpretações falíveis que desde Platão triunfam na tradição filosófica, interpretações idealistas, que esquecem seu estatuto e sua fonte produtora, o corpo.” [4]

Procurei elucidar que Nietzsche se mostra contrário a todas as moralidades baseadas no ideal ascético, ou seja, que negam valor ao corpo, ao desejo, às paixões, ao tempo, à esfera dita “mundana”. A ascese, isto é, o esforço auto-mortificante de purificação, baseia-se em geral na crença em uma alma imortal, que supõe-se destinada a um destino glorioso no além-túmulo. Nietzsche diagnostica neste ideal ascético uma hostilidade contra a vida, uma “calúnia” contra a realidade terrena, um anátema lançado contra o corpo e seus instintos, uma incapacidade de afirmação da existência em sua real finitude e em seus incontornáveis tormentos. Como diz Oswaldo Giacóia, o ideal ascético, como se manifesta por exemplo no platonismo e no cristianismo, “leva a efeito um movimento de completa desvalorização da imanência em proveito da transcendência. (…) Representa, assim, a desvalorização absoluta do ‘mundo’ e da ‘vida’ em proveito de uma vida imaginária, de um ‘além-do-mundo’.”[5]

O esforço de crítica da moral que Nietzsche empreende, portanto, tem como intenção possibilitar uma libertação das energias vitais que foram sufocadas, reprimidas e culpabilizadas por doutrinas morais ascéticas que oprimem os corpos, condenam os prazeres e pregam a hipertrofia de uma razão tirânica contra as paixões. Como diz Tongeren, “mediante uma crítica à moral, Nietzsche pretende abandonar intencionalmente o caminho aplainado e descobrir a abertura para aquilo que é possível para além desse horizonte, a abertura para ‘muitas auroras que ainda não brilharam’.” [6]

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nietzsche (2)
Em meu trabalho destaco também que Nietzsche confere muita importância ao senso histórico, isto é, a um pensamento filosófico sempre atento ao ininterrupto fluir do tempo. Nietzsche forjou seu método genealógico no intento de compreender como vieram-a-ser as instituições, legislações, valores morais, costumes e crenças com que hoje nos deparamos. Compreender a origem histórica dos valores morais e relacionar seu surgimento a conflitos sociais de classe e jogos de dominação equivale a mostrar quão infundada e ilegítima é a pretensão das morais e das religiões de possuírem uma verdade eterna de fonte divina. Em Humano, Demasiado Humano, por exemplo, Nietzsche critica um defeito de muitos filósofos, que:

“Involuntariamente imaginam o homem como uma verdade eterna, como uma constante em todo o redemoinho, uma medida segura das coisas. Muitos chegam a tomar a configuração mais recente do homem, tal como surgiu sob a pressão de certas religiões e de certos eventos políticos, como a forma fixa de que se deve partir. Não querem aprender que o homem veio a ser, e que mesmo a faculdade de cognição veio a ser…  Tudo veio a ser, não existem fatos eternos, assim como não existem verdades absolutas. – Portanto, o filosofar histórico é doravante necessário, e com ele a virtude da modéstia.” [7]

heraclito

“Tudo flui. Não se entra duas vezes no mesmo rio.” – Heráclito de Éfeso (535 a.C. – 475 a.C.)

Quis mostrar que a filosofia de Nietzsche combate, portanto, a idéia de que existem valores morais, sistemas filosóficos ou doutrinas religiosas de validade eterna, verdade absoluta ou universalidade legítima. A própria Humanidade é concebida como um fenômeno histórico, re-inserida na Natureza que lhe deu origem, de modo que Nietzsche rompe também com a noção criacionista de uma origem sobrenatural para o homem. Por estar “embarcado” na correnteza da história, e por ser uma espécie animal dentre milhões de outras que co-existem no seio da Natureza em fluxo, o homem é inescapavelmente um ser mutante, que integra um cosmos eternamente movediço. Quer aceite este seu destino, quer lute contra ele, cada um de nós, para usar a expressão da canção de Raul Seixas, é uma “metamorfose ambulante”. Procuro compreender o pensamento de Nietzsche, portanto, como fiel ao preceito do filósofo grego Heráclito, que sustentava que “tudo flui” e que “é impossível entrar duas vezes no mesmo rio”.

Considero ainda que Nietzsche jamais sugeriu “fazer tábula rasa do passado”, nunca elogiou o esquecimento da História ou o aniquilamento de seus legados, mas sim uma relação dinâmica e fecunda com o passado: como escreve Karl Jaspers, “em nenhuma parte Nietzsche estima o ato de esquecer o que foi transmitido pela história e recomeçar a partir do nada… Toda sua obra é penetrada por seu intercâmbio com a grandeza do passado, mesmo daquele que ele rejeitou.”[8]

Prova desta relação frutífera com o passado é o modo como Nietzsche reativa a potência do mundo grego pré-socrático, como por exemplo os ritos dionisíacos e a obra dos poetas trágicos (em especial Ésquilo e Sófloces). Nietzsche formulou assim uma sabedoria, que encarna em seu Zaratustra ou nos espíritos livres, cujas características procuramos explorar nessa pesquisa: trata-se de um sujeito afirmador de sua vontade e de seu corpo, criativo e questionador, capaz de superar todo ressentimento através do amor fati, que jamais se acomoda em sua estado atual e procura sempre superar-se, e que age no mundo mais como sátiro do que como santo, mais como dançarino do que como estátua. Em A Gaia Ciência, por exemplo, Nietzsche pinta o retrato do espírito livre, que seria dotado de “uma alegria e uma força de soberania  (…) em que o espírito recusaria toda fé, todo desejo de certeza, tendo prática em manter-se sobre as cordas leves de todas as possibilidades e até mesmo em dançar à beira do abismo. Esse seria o espírito livre por excelência.” [9]

Para Nietzsche, as convicções e os dogmas são inimigos do filósofo e prejudicam-nos em nossa aventura de conhecimento. Quem quer de fato tornar-se amigo da sabedoria tem de ousar libertar-se de certezas apaziguadoras, crenças reconfortantes e tomadas-de-partido inquestionadas. Como diz em Aurora: “A serpente que não pode mudar de pele perece. O mesmo ocorre com os espíritos que se impedem de mudar de opinião; cessam de ser espíritos.” [10] O filósofo autêntico, de acordo com Nietzsche, é uma figura em que se encarna um certo ímpeto heroico de busca pelo saber. Relembremos as palavras de Aurora:

“Nosso impulso ao conhecimento é demasiado forte para que ainda possamos estimar a felicidade sem conhecimento ou a felicidade de uma forte e firme ilusão. (…) A inquietude de descobrir e solucionar tornou-se tão atraente e imprescindível para nós (…) que o conhecimento transformou-se em paixão que não vacila ante nenhum sacrifício e nada teme, no fundo, senão sua própria extinção…” [11]

Um clássico comentário do pensamento de Nietzsche escrito por Karl Jaspers

Um clássico comentário do pensamento de Nietzsche escrito por Karl Jaspers

A filosofia, afinal, não é uma busca interesseira por ideias apaziguadoras ou convicções agradáveis, nem por um cômodo repouso no colo de verdades imutáveis, mas um heróico navegar, em mares perigosos, em busca de um saber sobre o real que nada garante que terá um sabor doce ou que vá nos tornar felizes. O filósofo autêntico, para Nietzsche, segundo nossa interpretação, é aquele que ousa ir à conquista de um saber, ainda que este possa ter um gosto amargo e ainda que acarrete consequências trágicas; é aquele que, como diz Karl Jaspers, tem a coragem de entrar no labirinto, como fez Teseu, mesmo sabendo que terá que defrontar-se com o Senhor Minotauro. [12]

Consideramos que o efeito do convívio com a obra Nietzsche é a de um tônico para a vontade-de-viver. Eis uma filosofia, enfim, onde há muita sabedoria a assimilar, em especial por aqueles que, como diz Giacóia, “não temem fazer dos abismos do sofrimento uma fonte inestimável de conhecimento.” [13]

Em suma: procuramos mostrar o pensamento de Nietzsche como superação tanto da metafísica quanto do niilismo, culminando numa cosmovisão trágica que, longe de ser pessimista, significa uma celebração dionisíaca da existência como ela é, sem exclusão de seus aspectos mais dolorosos e problemáticos. Arqui-inimigo da apatia da vontade, do niilismo desalentador, do ascetismo auto-mortificante, Nietzsche, através de sua obra, canta um hino à vida que inclui um louvor à alegria, aquele afeto que, segundo Spinoza, aumenta nossa potência de existir. Como diz Zaratustra: “Desde que existem homens, o homem se alegrou muito pouco: apenas isso, meus irmãos, é nosso pecado original!” [14] Já em Humano, Demasiado Humano, Nietzsche escreve: “Eis o melhor meio de começar cada dia: perguntar-se ao despertar se nesse dia não podemos dar alegria a pelo menos uma pessoa. Se isso pudesse valer como substituto do hábito religioso da oração, nossos semelhantes se beneficiariam com tal mudança.” [15]

Para concluir este prelúdio, cito mais uma instigante idéia de Nietzsche, que me parece um belo emblema de seu convite à “fidelidade à Terra”, em oposição à idolatria religiosa de ídolos sobrenaturais ou metafísicos: “Não há no mundo amor e bondade suficientes para que tenhamos direito de dá-los a seres imaginários.” [16]

Eduardo Carli de Moraes,
Goiânia – 08/11/2013

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REFERÊNCIAS:


[1] NIETZSCHE, Ecce Homo. Por Que Sou um Destino, §01.

[2] É o que aponta Martha Nussbaum: “Indeed, this was the whole purpose of genealogy as Nietzsche, Foucault’s precursor here, introduced it: to destroy idols once deemed necessary, and to clear the way for new possibilities of creation.” Citada por Brobjer, Nietzsche’s Ethics of Character, Pg. 49.

[3] NIETZSCHE. A Gaia Ciência, §58.

[4] Ibid. Pg. 155.

[5] GIACOIA, O. Labirintos da Alma: Nietzsche e a Auto-Supressão da Moral. Pg. 13-38.

[6] TONGEREN, P.V. A Moral da Crítica de Nietzsche à moral. Pg. 43-44.

[7] NIETZSCHE. Humano, Demasiado Humano. Capítulo 1, §2.

[8] JASPERS. Nietzsche: Introduction à sa Philosophie. Pg. 445.

[9] NIETZSCHE. A Gaia Ciência. §347.

[10] NIETZSCHE. Aurora.  §573.

[11] Ibid, §429.

[12] JASPERS. Op Cit. Pg. 231.

[13] GIACOIA. O Humano Como Memória e Como Promessa. Pg. 183.

[14] NIETZSCHE. Assim Falou Zaratustra. Op cit. Livro II, Dos Compassivos. Pg. 84.

[15] NIETZSCHE. Humano Demasiado Humano, §589.

[16] Humano, Demasiado Humano, § 129. Citado a partir de Lou Andreas-Salomé, op cit, Pg. 139: “Il n’y a pas assez d’amour et de bonté dans le monde pour avoir licence d’en rien prodiguer à des êtres imaginaires.”

Souvenir da banca na companhia de Adriana Delbó, Maria Cristina Franco Ferraz e Adriano Correia.

Um souvenir fotográfico da banca – com Adriana Delbó, Maria Cristina Franco Ferraz e Adriano Correia.

P.S. – nos próximos meses, tentarei desmembrar este mestrado em 3 ou 4 artigos, a serem publicados em revistas de filosofia, se possível, ou aqui no blog mesmo, pra “socializar” a pesquisa e “pôr na roda” o conhecimento. Em breve!

Siga viagem…

No Labirinto Com o Sr. Minotauro

Édipo diante da Esfinge

“Decifra-me ou Devoro-te!” – Édipo diante da Esfinge


“Le labyrinthe dont les dédales ne permettent aucune fuite
et òu la destruction par le minotaure est imminente,
est le but et le destin de celui qui connaît.”

 (KARL JASPERS, Introdução à Filosofia de Nietzsche, Pg. 230)

Qual o destino do homem que busca o conhecimento? Tornar-se-á o saber uma carga, um fardo, um pesadume, ou conseguirá converter-se em prática renovadora, em sabedoria de vida, em alimento para a criação de belas obras? Eis um tema que filósofos poetas e dramaturgos têm explorado com muitas variações em suas obras – é algo que marca presença, por exemplo, no Fausto de Goethe ou no Manfred de Byron.

No mito de Édipo, como este aparece na tragédia grega, em especial nas obras de Sófocles, Nietzsche enxerga um símbolo de um tipo de conhecimento que é a danação daquele que o conquista. Édipo adquire um conhecimento fatal. “Édipo assassino de seu próprio pai, marido de sua mãe, Édipo decifrador do enigma da Esfinge! O que nos diz a misteriosa trindade destes atos fatídicos?” – pergunta Nietzsche (JASPERS: p. 228, 1, 67-68).

EdipoE logo nos pinta o retrato de Édipo como mártir do conhecimento, alguém que foi tão fundo em sua tentativa de compreensão de seu próprio destino, que foi obrigado a desvelar verdades intragáveis e enxergar o horror de seus próprios atos. Édipo fura seus olhos após descobrir a intragável verdade sobre si: eis um símbolo trágico do homem que, em sua curiosidade irrefreável  em busca de solucionar os mistérios da esfinge da existência, acaba por descobrir verdades que podem ser fardos mais pesados do que nossos ombros mortais são capazes de carregar.

A tragédia grega colocaria, pois, sobre o destino humano, esta pergunta (dentre muitas outras): a verdade, se descoberta, se desvelada, será, para seu humano descobridor e desvelador, fonte de benesses ou de desgraças? Este conhecimento fará bem ou acabará por destruí-lo?

Trata-se de pôr em questão o vínculo, que alguns supõem necessário, entre o saber e a felicidade, entre o saber e a virtude, entre o saber e a sabedoria. Nietzsche considera como um credo otimista esta aposta de que o saber possa ser uma panacéia – crença encarnada de modo paradigmático por Sócrates, cuja ética poderia ser resumida à fórmula: “saber = virtude = felicidade”.

Schopenhaeur - Frankfurt - 1845

Arthur Schopenhauer em Frankfurt, 1845

Tendo frequentado os bosques sombrios mas tonificantes da filosofia de Arthur Schopenhauer, Nietzsche lidava com o fenômeno socrático já “vacinado” contra as ilusões em que se enreda o otimismo racionalista. A leitura de Nietzsche nos impregna com a impressão de que não é legítimo afirmar, de forma peremptória, como se fosse fato indubitável, que isto que chamamos verdade, quando descoberta ou possuída, acarretará como consequências necessárias a virtude, a felicidade, a sabedoria. “E se a verdade for triste?”, pergunta Renan. É também uma questão visceralmente nietzschiana!

Suas travessias pelas páginas de O Mundo Como Vontade e Representação capacitaram Nietzsche com uma arguta capacidade de inserir a categoria da vontade em suas tentativas de elucidação dos fenômenos humanos. Não é possível compreender a questão da busca pelo conhecimento separada da questão da vontade – tanto que Nietzsche refletirá, com frequência, destacando que a tentativa de conquistar o saber tem de ser explicada por algo de subjacente: a vontade de verdade seria uma das manifestações da vontade de potência.

Na filosofia nietzschiana encontraremos em ação uma vasta campanha  de desconstrução da noção de “verdade”: aquilo que o Platonismo chama de verdade, por exemplo, não passa, para Nietzsche, da ilusão de um reino transcendente e imutável, morada eterna dos paradigmas que o tempo não corrói. Platão chama de verdade aquilo em que acredita; e acredita possuir a verdade. Que a verdade possa ser possuível é o que Nietzsche nos propõe que questionemos: será que não há uma ilusão envolvida na própria ambição de conquistar uma verdade absoluta e imutável?

A tônica, na filosofia nietzschiana, recai no afeto: a vontade de possuir uma verdade, ou seja, algo que se considera absoluto, imutável, verídico desde sempre e para sempre, não será esta um tanto suspeita? A mente humana tem mesmo uma capacidade que a permita saber com certeza a verdade última sobre as coisas? De certo modo, julgo que Nietzsche referenda muitas das conquistas da Crítica da Razão Pura de Kant, em especial o banho de água fria que o criticismo kantiano lançou sobre as ambições dos filósofos metafísicos ou idealistas de saberem algo de absoluto ou infalível sobre Deus, a Imortalidade da Alma e o Livre-Arbítrio. Nietzsche também julga, como Kant, que sobre isto não há conhecimento possível, não há nenhum porto de certeza infalível onde atracar.

Mas Kant, após impor limites às ambições desmesuradas da razão humana, abriu as portas do fundo para o retorno sorrateiro da fé, ainda que somente postulada pela razão prática; esta não é a senda de Nietzsche. Justamente pois não é possível saber com certeza, diria um kantiano fiel ao seu mestre de Königsberg, é que temos o direito de acreditar; já Nietzsche, ao contrário, põe sob suspeição este suposto direito de ter fé que decorreria – por hipótese – da limitação necessária de nosso intelecto e da incapacidade em que este se encontra de compreender o mistério do céu estrelado, dentre outras esfinges.

Kant confessa que não pôde prescindir de uma lei moral em seu coração; já Nietzsche, um tanto mais ousado (ou deveríamos dizer temerário?), arrisca-se a desconfiar das veneradas confianças tradicionais na correlação ou vínculo necessário entre Verdade e Bem, Verdade e Valor.

“Édipo e Antígona exilados em Tebas”, por Eugene-Ernest Hillemacher (1843)

É por isso que Édipo desponta, para Nietzsche, como figura trágica que, através de seu destino, põe o ponto-de-interrogação crucial: não será possível que certas verdades possam ser um fardo, um peso fatal, um horrendo e insuportável desvelamento? Não existem verdades cuja descoberta é um trauma tamanho para as retinas que exige que furemos depois nossos próprios olhos?

O que a tragédia de Édipo nos conta, em suma, é que “talvez um conhecimento completo traga a ruína” (JASPERS, p. 229, 7, 59). Nietzsche, que elogiava os filósofos do “perigoso talvez”, não esconde que trata-se de uma hipótese, de uma possibilidade, que seu pensamento experimental arrisca-se a colocar. Não se trata de afirmar de modo dogmático que a verdade é terrível e que conhece-la equivale a ser esmagado por um peso insustentável.

Isto não é tudo que a tragédia pode nos fazer pensar sobre a condição humana, nem é este o único ou o menor dos pontos de interrogação que ela nos lança. A convivência íntima que Nietzsche nutriu com a tragédia o capacitou a desestabilizar as crenças costumeiras – presentes, como dissemos, de forma vigorosa, historicamente marcante, na figura de Sócrates – numa benigna conjunção entre conhecer, ser bom e ser feliz.

"Nietzsche" - por Edward Munch

“Nietzsche” – por Edward Munch

A tragédia desestabiliza este otimismo e rasga o tecido destas reconfortantes promessas de happy end. De modo que Nietzsche nos convida, várias vezes, a realizar experimentos de pensamento em que coloca em questão quais as vontades que estão por detrás das crenças apaziguadoras e otimistas. A vontade de verdade pode conduzir a uma ilusão; em outros termos, pode ser ilusório acreditar na possibilidade de possuir uma verdade estável e absoluta sobre as coisas. E pode ser que aqueles que crêem possuir a verdade sejam os mais iludidos de todos, os mais distanciados da verdade por sua presunção de conhece-la…

Bem se sabe que Sócrates também advogava o “sei que nada sei”, gabava-se de sua humildade ao reconhecer sua própria ignorância, enquanto desmascarava a maioria de seus interlocutores como ignorantes que só achavam que sabiam, mas não sabiam de fato, já que lhes faltava o saber de suas próprias insuficiências e lacunas como conhecedores.  Nietzsche, neste ponto em específico, chega a assemelhar-se a Sócrates, por exemplo quando diz que “nenhuma pessoa pode, sem ilusão, acreditar firmemente possuir a verdade.”

Se a filosofia deve ser uma vigilante e sempre recomeçada escola de suspeita, para Nietzsche, é pois há o perigo de tombarmos na ilusão, no engodo, na alucinação, quando nos deixamos enredar na crença de que possuímos a verdade. E sobre a questão: “é permitido sacrificar a humanidade a uma ilusão?”, Nietzsche é categórico em dizer não (JASPERS: p. 229, 12, 410).

Uma exploração minuciosa dos textos que Nietzsche dedica ao cristianismo nos mostraria o quanto desta crítica se baseia na suspeita de que este sacrifício da humanidade por uma ilusão é justamente o que se opera na cultura judaico-cristã. O dionisismo, para Nietzsche, representará uma espécie de antípoda a dois inimigos ou rivais que o filósofo elegeu como seus alvos de crítica: o “socratismo”, que exacerba as tendências apolíneas e racionalistas de modo unilateral e despótico, e o cristianismo, este “platonismo para o povo”, que prega a mortificação perpétua da carne, um silenciamento forçado dos desejos corporais e dos deleites sensuais, em nome da ideia de que a Verdade transcende esta dimensão terrestre onde existimos.

Nietzsche recusará a pretensão de verdade do socratismo, do platonismo, do cristianismo, do positivismo, de quaisquer doutrinas ou seitas que queiram proclamar-se donas de uma verdade certa, indubitável e imorredoura. O filósofo é aquele que, por paixão pelo conhecimento, lança-se à aventura de conhecer – e sem possuir certeza prévia alguma de que tirará proveitos, benefícios e recompensas disso.

É o que Nietzsche nos diz em Aurora:

“Nosso impulso ao conhecimento é demasiado forte para que ainda possamos estimar a felicidade sem conhecimento ou a felicidade de uma forte e firme ilusão; apenas imaginar esses estados é doloroso para nós! A inquietude de descobrir e solucionar tornou-se tão atraente e imprescindível para nós como o amor infeliz para aquele que ama: o qual ele não trocaria jamais pelo estado de indiferença; – sim, talvez nós também sejamos amantes infelizes! O conhecimento, em nós, transformou-se em paixão que não vacila ante nenhum sacrifício e nada teme, no fundo, senão sua própria extinção…” (Aurora, aforismo 429, p. 225)

Não se sabe de antemão se a jornada do conhecer conduzirá à virtude, à felicidade, à sabedoria – pode ser que conhecer nos arruíne, nos desgrace, nos preencha com angústia e desassossego! – mas só será um filósofo digno de ser chamado de “espírito livre” aquele que ainda assim se aventurar no labirinto, sem medo de “conhecer o Senhor Minotauro.” (JASPERS: p. 231, 16, 437)

"Teseu e o Minotauro", de Étienne-Jules Ramey (1796-1852).  Escultura de mármore nos Jardins des Tuileries (Paris), 1896.

“Teseu e o Minotauro”, de Étienne-Jules Ramey (1796-1852). Escultura de mármore nos Jardins des Tuileries (Paris), 1896.

to be continued…