NATAL PÓS-CAPITAL? – Por George Monbiot

NATAL PÓS-CAPITAL?

Por George Monbiot em Outras Palavras – Tradução: Inês Castilho

Todo mundo quer tudo – como é que isso pode dar certo? A promessa do crescimento econômico é de que pobres poderão viver como ricos; e os ricos, como oligarcas. Mas nós já estamos detonando os limites físicos do planeta que nos sustenta. Pane climática, desertificação do solo, colapso de habitats e espécies, mar de plástico, armagedom de insetos: tudo é causado pela elevação do consumo. A promessa de luxo privado para todos não pode ser cumprida: não existe nem espaço físico nem espaço ecológico para isso.

Mas o crescimento deve continuar: esse é o imperativo político em todos os lugares. E temos de ajustar nossos paladares de acordo, em nome da autonomia e da escolha – o marketing usa as últimas descobertas da neurociência para destruir nossas defesas. Aqueles que procuram resistir devem, como os Vida Simples [Simple Lifers] em “Admirável Mundo Novo”, ser silenciados – pela mídia, em nosso caso. Em cada geração, muda a referência do consumo normalizado. Há trinta anos, era ridículo comprar água em garrafa, pois a água de torneira é limpa e abundante. Hoje, no mundo todo, usamos um milhão de garrafas plásticas em cada minuto.

Toda sexta-feira é uma Black Friday; todo Natal é um festival mais aberrante de destruição. Entre saunas de neverefrigeradores portáteis de melão e smartphones para cachorros com que somos instigados a preencher nossas vidas, meu prêmio de#extremacivilização vai agora para o PancakeBot: uma impressora de massas 3-D que lhe permite comer, todas as manhãs, a Mona Lisa, o Taj Mahal ou o traseiro do seu cachorro. Na prática, vai entupir sua cozinha até você perceber que não tem espaço pra isso. Por tralhas como essas estamos transformando em lixo o planeta vivo e nossas próprias perspectivas de vida. Tudo isso precisa acabar.

A promessa auxiliar é que, pelo consumismo verde, podemos reconciliar crescimento perpétuo com sobrevivência planetária. Mas uma série de pesquisas revela que não há diferença significativa entre as pegadas ecológicas de pessoas que cuidam e que não cuidam de seus impactos. Um artigo recente, publicado na revista Environment and Behaviour [Ambiente e Comportamento], revela que quem se identifica como consumidor consciente usa mais energia e carbono do que quem não.

Por que? Porque a consciência ambiental tende a ser mais alta entre pessoas ricas. Não são as atitudes, mas a renda que determina nossos impactos no planeta. Quanto mais ricos, maior nossa pegada, a despeito de nossas boas intenções. Aqueles que se veem como consumidores verdes, diz o artigo, “focam principalmente em comportamentos que têm benefícios relativamente pequenos”.

Conheço gente que recicla meticulosamente, guarda suas sacolas plásticas, mede com cuidado a água que coloca em suas chaleiras e então tira férias no Caribe, dispendendo cem vezes mais que suas economias ambientais. Passa a crer que a reciclagem fornece a desculpa para seus voos de longa distância. Convence as pessoas de que tornaram-se verdes, prontas a desconsiderar seus grandes impactos.

Nada disso significa que não devemos tentar reduzir nossos impactos, mas precisamos ter consciência dos limites desse exercício. Nosso comportamento dentro do sistema não consegue mudar os resultados desse sistema. É o sistema que precisa ser mudado.

Natal

Uma pesquisa da Oxfam sugere que o 1% mais rico (se sua renda familiar é de 308 mil reais ou mais por ano, isso te inclui) produz 175 vezes mais carbono que os 10% mais pobres. Como podemos, num mundo em que supostamente todos aspiram a altos rendimentos, evitar transformar a Terra numa bola de sujeira, da qual depende toda a prosperidade?

Por dissociação, dizem os economistas: desvincular o crescimento econômico do uso de materiais. E como é que vai isso? Um artigo na revista PlosOne revela que, enquanto em alguns países ocorreu uma relativa dissociação, “nenhum país conseguiu dissociação absoluta nos últimos 50 anos”. Significa que a quantidade de materiais e energia associadas com cada aumento do PIB pode declinar, mas, à medida em que o crescimento ultrapassa a eficiência, o uso total de recursos continua crescendo. Mais importante, o artigo revela que no longo prazo são impossíveis tanto a dissociação relativa quanto a dissociação absoluta do uso de recursos essenciais, por causa dos limites físicos da eficiência.

Uma taxa de crescimento global de 3% significa que o tamanho da economia mundial é duplicado a cada 24 anos. Essa é a razão pela qual as crises ambientais aceleram-se a essa velocidade. Ainda assim, o plano é assegurar que ela duplique e duplique outra vez, e continue a duplicar para todo o sempre. Ao procurar defender o mundo vivo do sorvedouro da destruição, podemos acreditar que estamos lutando contra corporações e governos e a insensatez geral da humanidade. Mas eles são todos procuradores do verdadeiro problema: crescimento perpétuo num planeta que não está crescendo.

Aqueles que justificam esse sistema insistem em que o crescimento econômico é essencial para o alívio da pobreza. Mas um artigo da World Economic Review afirma que os 60% mais pobres do mundo recebem apenas 5% do rendimento adicional gerado pelo aumento do PIB. Disso resulta que são precisos 111 dólares de crescimento para cada 1 dólar de redução da pobreza. Essa é a razão por que, seguindo a tendência atual, seriam necessários 200 anos para garantir que todo o mundo receba 5 dólares por dia. A essa altura, a renda média per capita terá alcançado 1 milhão de dólares por ano, e a economia será 175 vezes maior do que é hoje. Isso não é uma formula para alívio da pobreza. É uma fórmula para a destruição de tudo e de todos.

Quando você ouve que alguma coisa faz sentido do ponto de vista econômico, isso significa que é o oposto do senso comum. Aqueles homens e mulheres sensíveis que governam os tesouros e bancos centrais do mundo, que veem como normal e necessário um crescimento indefinido do consumo, estão alucinados, esmagando as maravilhas do mundo vivo, destruindo a prosperidade das gerações futuras para sustentar um conjunto de cifras que têm uma relação cada vez menor com o bem-estar geral.

Consumismo verde, dissociação material, crescimento sustentável: isso tudo é ilusão, destinada a justificar um modelo econômico que está nos conduzindo à catástrofe. O sistema atual, baseado em luxo privado e imundície pública, vai nos levar à miséria: sob esse modelo, luxo e privação são uma só besta com duas cabeças.

Necessitamos de um sistema diferente, enraizado não em abstrações econômicas mas em realidades físicas, que estabeleça os parâmetros pelos quais nós julgamos sua saúde. Necessitamos construir um mundo no qual o crescimento não seja necessário, um mundo de frugalidade privada e luxo público. E devemos fazer isso antes que a catástrofe force nossa mão.


* * * *
[COMPARTILHAR] – ACOMPANHE A Casa de Vidrowww.acasadevidro.com

* * * *

LANÇAMENTO: “Out of the Wreckage – A New Politics for an Age of Crisis” by George Monbiot


Acaba de ser lançado o novo livro de George Monbiot – click e saiba mais

Neoliberalism, Climate Change, Migration:
George Monbiot in conversation with Verso Books

* * * *

Leia também:

“CRISE & INSURREIÇÃO” – COMITÊ INVISÍVEL (2016, 288 pgs, Acesse o ebook)


comite

Aos nossos amigos — Crise e insurreição

(N-1 Edições)
Autor: Comitê invisível
Edição: 1a edição
Ano: 2016
No de páginas: 288
Dimensões: 12 x 17cm (brochura)
Peso: 250g
ISBN: 978-85-66943-20-7
Preço de capa: R$ 32,00
ACESSAR EBOOK EM PDF
COMPRAR NO SEBO-LIVRARIA D’A CASA DE VIDRO (EM BREVE)

* * * * *

Por Simone Paz Hernández

Queimado propositalmente num canto e apresentado como uma “modesta contribuição à inteligência de nossa época”, chega o livro Aos Nossos Amigos: crise e insurreição, do Comitê Invisível, célula anônima que surgiu na França ao publicar A Insurreição que Vem, em 2007. A nos amis, título original em francês, é traduzido e publicado no Brasil por nossa editora parceira, N-1 Edições – que se caracteriza pelos livros-objeto que produz, numa área transdisciplinar, entre a filosofia, a estética, a clínica, a antropologia e a política. O livro do Comitê Invisível é um manifesto e manual de insurreição e organização, que os próprios autores afirmam ser o início de um plano. Sua linha de frente: pensar, atacar, construir. O livro não poderia chegar em momento mais apropriado, considerando os novos movimentos de resistência anti-fascista e anti-capitalista que se articulam pelo Brasil e mundo afora, além de combinar com a linha pós-capitalista de Outras Palavras.

* * * * *

Por Vladimir Safatle na Folha de S. Paulo (10/06/2016)

Aos nossos Amigos: Crise e Insurreição é um pequeno livro de um conjunto de autores anônimos chamado Comitê Invisível. Ele acaba de ser lançado no Brasil (n-1 Edições) em um momento que não poderia ser mais propício. Sua capacidade de apresentar teses sobre a natureza dos impasses da vida contemporânea é algo que há muito havia desaparecido das prateleiras das livrarias.

“Desde 2008, vivemos em constante ritmo de insurreição”, dizem os autores. Nosso maior erro é não perceber como estamos, seja no Brasil, na Turquia, na Espanha, na Tunísia ou na Grécia, em um processo mundial de contestação e desencanto. Faz parte de uma lógica de gestão de crise mundial dar a impressão de que estamos todos a lutar contra governos locais e aparatos nacionais de poder.

No entanto, esses governos são apenas repetidores de uma mesma política global, que parece saída da mesma cabeça, feita com maior ou menor intensidade. Nossas discussões são sobre intensidades da mesma política, sobre se tais direitos serão ou não desmontados, sobre qual a intensidade dos cortes, não sobre caminhos alternativos.

Essa homogeneidade mostra duas coisas fundamentais. Primeiro, que nenhuma saída será local ou nacional. Segundo, e mais importante, que apenas a perpetuação de um estado permanente de choque poderia nos levar a tamanha limitação da capacidade de pensar. O que talvez nos explique por que a crise não é algo a ser combatido pelas práticas de governo. Há muito a crise se tornou a própria prática de governo. Previne-se, por meio de uma crise permanente, toda e qualquer crise real.

O que significa que essa crise que aparece diariamente nos jornais não passará. Ela ficará continuamente como um fantasma a justificar toda “austeridade”. Haverá sempre um corte na previdência a fazer, uma restrição orçamentária a impor, gordura a cortar em uma “reestruturação permanente de tudo” que só não mudará uma coisa: a defesa da elite patrimonial, os rendimentos da oligarquia financeira.

Mas para submeter populações inteiras a tal regime de governo faz-se necessária uma verdadeira engenharia psicológica de duas mãos.

De um lado, vende-se a ideia de que a crise “é o momento vivificante da ‘destruição criadora’ que cria oportunidades, inovação, empreendedores, em que só os melhores, os mais motivados, os mais competitivos sobreviverão”. Ou seja, a crise seria o momento no qual a coragem como virtude poderia aparecer. Por isso, os que temem a crise, procurando proteção, só poderiam estar a agir como crianças. Eles não são sujeitos conscientes da falácia de uma destruição criadora que sempre poupa aqueles bem nascidos. Eles são crianças mimadas.

Não por acaso, as políticas de gestão da crise são chamadas de políticas de “austeridade”. O termo remete à lógica protestante de uma vida austera, responsável, adulta e realista contra o dispêndio, o excesso e a irresponsabilidade. Ele traz no seu bojo a ideia de que, enquanto você trabalhava, alguns “vagabundos” se aproveitavam, não precisando se impor uma vida restrita como a que você foi obrigado a suportar. É contra os “privilégios” desses mimados que todos deveriam lutar.

O raciocínio é primariamente falso. Se alguém está a procurar “vagabundos” deveria começar por olhar no topo do sistema financeiro e na casta rentista da elite brasileira, não nas classes historicamente desfavorecidas. Mas isso pouco importa, pois o discurso da austeridade não se sustenta em algum dado de realidade, mas na tentativa de impor uma ética por trás de conjuntos de práticas de governo. Por isso, é no terreno ético que o combate deve iniciar.

Daí uma compreensão decisiva: “O que acontece hoje não é apenas que alguns queiram impor uma austeridade econômica a outros que não a desejam. O que acontece é que alguns consideram que a austeridade é, em absoluto, algo bom, enquanto que outros consideram, sem de fato ousar afirmar tanto, que a austeridade é, em sua totalidade, uma miséria”.

Como essa “vida austera”, há de se impor uma outra ideia de vida, baseada na partilha em vez da economia, na conversa em vez do silêncio, no excesso ao invés da restrição. A austeridade sempre foi a forma de restringir a vida de muitos para garantir o gozo de poucos. Eis algo que aparece na base da crise como modo de governo.

* * * * *

Um trecho do primeiro capítulo: 

“As insurreições chegaram, mas não a revolução. Raramente teremos visto, como nestes últimos anos, num lapso de tempo tão condensado, tantas sedes do poder oficial tomadas de assalto, desde a Grécia até à Islândia. Ocupar praças bem no centro das cidades e aí montar tendas, e aí erguer barricadas, cantinas ou barraquinhas, e aí reunir assembleias, tornar-se-á em breve um reflexo político elementar como ontem o foi a greve. Parece que esta época começou até a segregar os seus próprios lugares-comuns – como esse All Cops are Bastards (ACAB) que a cada golpe de revolta passa agora a pintalgar as paredes decrépitas das cidades, no Cairo como em Istambul, em Roma como em Paris ou no Rio. Mas por maior que seja a desordem por baixo dos céus, a revolução parece por todo o lado asfixiar na fase de motim. Na melhor das hipóteses, uma mudança de regime sacia por instantes a necessidade de mudar o mundo, para muito rapidamente reconduzir à mesma insatisfação. Na pior, a revolução serve de estribo a esses tais que, falando em seu nome, não têm outra preocupação senão liquidá-la. Noutros sítios, como em França, a inexistência de forças revolucionárias suficientemente confiantes nelas próprias abre caminho àqueles cuja única ocupação é justamente dissimular a confiança em si e de a apresentar como espetáculo: os fascistas. A impotência azeda.

Neste ponto, há que o admitir, nós os revolucionários fomos derrotados. Não porque não tenhamos perseguido a “revolução” enquanto objetivo após 2008, mas porque fomos privados, de forma contínua, da revolução enquanto processo. Quando fracassamos podemos atirar-nos contra o mundo inteiro, elaborar com base em mil ressentimentos toda a espécie de explicações, e até explicações científicas, ou podemos interrogar-nos sobre os pontos de apoio que o inimigo dispõe em nós próprios e que determinam o carácter não fortuito, mas repetido, das nossas derrotas. Talvez nos possamos questionar sobre o que resta, por exemplo, de esquerda nos revolucionários, e que os condena não apenas à derrota mas a um efeito de repulsa quase geral. Uma certa forma de professar uma hegemonia moral para a qual não dispõem dos meios é, também entre eles, um pequeno defeito de esquerda. Tal como essa insustentável pretensão a decretar a forma justa de viver – aquela que é verdadeiramente progressista, esclarecida, correta, desconstruída, não‑suja. Pretensão que enche de desejos de morte quem quer que se encontre dessa forma relegado para as fileiras dos reaccionários-conservadores-obscurantistas-limitados-campónios-ultrapassados. A apaixonada rivalidade dos revolucionários pela esquerda – a vendida, a luxuosa, a governamental – é precisamente o que os mantém no seu terreno. Larguemos as amarras!”

* * * * *

Edição publicada em Portugal pelas Edições Antipáticas:

capa
2

* * * * *

* * * * *

Leia também:

 

TIVEMOS UM GOLPE, TEREMOS DITADURA? – Por Tadeu Breda em Outras Palavras

TIVEMOS UM GOLPE, TEREMOS DITADURA?

O governo é ilegítimo. E o problema dos governos ilegítimos é que tentam sempre impor-se pelo único caminho que lhes resta: a violência

Por Tadeu Breda em Outras Palavras

A discussão sobre se foi ou não foi golpe está definitivamente superada. As articulações entre Eduardo Cunha e Michel Temer, as conversas entre Sérgio Machado e Romero Jucá, a seletividade da Lava Jato e o impeachment aprovado na Câmara e no Senado por todas as razões possíveis e imagináveis, menos pelas tais pedaladas fiscais que embasam o pedido – e que também foram praticadas por FHC e Lula e que são praticadas por governadores e prefeitos brasileiros –, já esclarecem do que se tratou o processo. Isso sem contar a deposição de uma presidenta sobre quem não pesa nenhuma acusação formal, muito menos uma condenação, e que mesmo assim foi julgada pelos membros do gangsterismo unido da República, condenada – mas sem perder os direitos políticos – e substituída por um cidadão “ficha suja” a quem a justiça eleitoral considera inelegível.

Como se não bastasse, as hostes oposicionistas falavam em impeachment antes mesmo do segundo turno das eleições de 2014. Vários textos ainda levantam outros aspectos da discussão terminológica, revisitando inclusive o processo contra Fernando Collor, como faz o historiador Marcos Napolitano na revista Brasileiros. Para complicar ainda mais a vida de Michel Temer, vimos que o golpista foi colocado de escanteio na foto oficial do G20, bem na pontinha, quase fora do enquadramento, fato que ainda nunca havia acontecido com os presidentes brasileiros eleitos pelo voto popular – e nem mesmo com o ex-ministro da Fazenda, Guido Mantega, quando representou Lula em um dos encontros. Em comunicação oficial do G20, aliás, Temer não foi referido como presidente, mas sim como “líder” brasileiro, e sequer foi nomeado.

Tivemos, portanto, um golpe – parlamentar, constitucional ou institucional, enfim, golpe. Não há mais que se perder em questões semânticas sobre esse assunto. Tampouco temos que esperar que os golpistas se reconheçam como tal. Até hoje os artífices e apoiadores de 1964 falam em revolução democrática para salvar o país do comunismo – não admitem o golpe, mesmo tendo colocado tanques na rua em 1º de abril, forçado o presidente a se exilar e tolerado crimes contra a humanidade. Como muito bem pontuou o colunista Jânio de Freitas, um golpista jamais admitirá seu golpismo: torcerá fatos, distorcerá termos, torturará conceitos até que se enquadrem na definição que melhor se ajusta aos seus interesses.

E isso nos obriga ainda mais a dizer em todas partes que o sujeito que ocupa o Palácio do Planalto é um presidente biônico, um golpista, apoiado por políticos golpistas no Congresso, por empresários e agricultores golpistas nas associações patronais, por jornalistas golpistas na imprensa, por trabalhadores golpistas em alguns sindicatos e por cidadãos golpistas na sociedade – sobretudo nos bairros mais remediados das capitais. Eles repetirão à exaustão que respeitaram a Constituição, que seguiram o rito imposto pelo Supremo Tribunal Federal, que contaram com a anuência dos “representantes” do povo, que o processo transcorreu no mais profundo respeito à legalidade.

Esquecem das centenas de exemplos históricos em que monstruosas injustiças foram cometidas dentro da lei, com as bênçãos das autoridades, mas adoram assistir filmes hollywoodianos e chorar diante de casos clamorosos em que um inocente é levado à cadeira elétrica injustamente ou passa a vida atrás das grades tentando provar sua inocência. Esquecem também que instituições, quando cooptadas por interesses particulares, como é o caso das instituições brasileiras, não cumprem seu papel – e, portanto, não são legítimas. Quantas vezes será preciso lembrar que as delações vazaram apenas contra um partido e, quando vazaram contra outras siglas, não tiveram o mesmo tratamento?

Nesse sentido, o que assistimos pela televisão nos últimos dias não se tratou de um golpe novidadeiro. Como aponta o filósofo Paulo Arantes, e não só ele, 1964 não acabou. Como não houve uma devida transição à democracia, com memória, verdade e justiça, suas estruturas autoritárias permanecem – olhemos para a Polícia Militar, para a tortura, para as reformas de base que jamais foram realizadas. Em 31 de agosto, pois, assistimos à culminação de mais um golpe, um golpe dentro do grande e permanente golpe, agora aplicado por uma ampla uma aliança golpista que decidiu desrespeitar as frágeis regras do jogo eleitoral e pavimentar pela manipulação e pelo conchavo o caminho de Michel Temer à cabeça do Estado brasileiro.

Admitir que houve um golpe, reconhecê-lo e nominá-lo não significa esquecer que 1964 ainda não acabou. Muito menos implica negar a corrupção do PT, suas negociatas com as grandes empreiteiras ou os estelionatos eleitorais de Lula, em 2002, e Dilma, em 2014. E ainda menos simboliza uma adesão ao governo que acaba de ser cassado. A presidenta eleita e seu partido endossaram a tese do golpe, claro, e mobilizaram mundos e fundos na tentativa de emplacar essa narrativa dentro e fora do país. Boa parte das forças de esquerda também – e o fazem sem encampar as demais posições defendidas pelo petismo ao longo do processo de impeachment.

Muita gente que entende que sofremos um golpe despreza as afirmações da presidenta de que, com ela, vivíamos em plena democracia. É preciso separar a retórica dos fatos: a imolação de Dilma e do PT como arautos da democracia contra os vampiros da República é pura retórica; o golpismo de seus adversários – boa parte deles, ex-aliados – é fato. Gritar “Fora Temer”, agora, não deve ser interpretado como “Volta, Dilma”. O retorno da presidenta foi uma quimera acalentada pelo PT, um partido do establishment, na tentativa de barrar o golpe institucional por meio dos canais abertos pelo golpismo dentro das instituições. As instituições, porém, se demonstraram incapazes para barrar o golpe – assim como são cotidianamente incapazes de aplicar a Constituição e garantir direitos básicos à maioria da população.

artc-2-ie

Uma democracia que permite golpes, que internaliza deposições, que legaliza o assalto ao poder, não pode ser chamada democracia. Afinal, o que se poderia esperar de uma democracia que sistematicamente tolera o genocídio da juventude negra nas periferias das grandes cidades e dos indígenas nos campos e florestas, que permite os abusos dos megaprojetos e dos megaeventos e que se submete direitos sociais básicos aos ditames do mercado financeiro? Quem se atrela a princípios – não a cargos ou a conveniências político-partidárias – tem essa consciência desde muito antes da queda de Dilma Rousseff e jamais compraria seu discurso democrático, mesmo nos momentos mais emotivos do massacre psicológico que sofreu durante catorze horas de interrogatório no Senado.

A experiência do PT no poder, com alguns momentos louváveis de redução da pobreza e da desigualdade, reeditou o conservadorismo do Estado brasileiro em sua melhor forma, avançando inclusive sobre a Amazônia, em uma atualização do colonialismo interno que sempre praticamos. A repressão ao dissenso também faz parte do legado petista. Populações indígenas que estavam no caminho de grandes hidrelétricas, portos ou cultivos de soja conheceram, sob o petismo, as armas da Polícia Federal e da Força Nacional de Segurança.

Em junho de 2013, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que durante o processo de impeachment ganhou os holofotes por sua efusiva defesa da democracia, ofereceu colaboração total aos secretários de Segurança Pública estaduais para “controlar” as manifestações pela redução da tarifa de transporte público. Enquanto as tropas de choque, com a anuência de governos municipais e estaduais, desciam o sarrafo nos protestos, não se ouviu em Brasília uma única condenação contundente à barbárie policial. Quando o descontentamento se voltou contra a Copa do Mundo, uma das “grandes conquistas” internacionais do PT no poder, a colaboração do governo federal com a repressão foi ainda mais intensa. Geraldo Alckmin não cegou Sérgio Silva e Vitor Araújo sozinho, assim como Sérgio Cabral não é o único político responsável pela condenação de Rafael Braga.

Nada disso faz, porém, com que o golpe seja menos golpe: apenas mostra que a democracia que tínhamos não era uma democracia – nunca foi. “Eu disse, olhando na bolinha dos olhos da Dilma, quando recebi um prêmio em Brasília, que a ditadura não acabou. Se tivesse acabado, não haveria Mães de Maio”, diz Débora Maria da Silva, líder do movimento que exige justiça pelas 493 mortes provocadas pela polícia paulista em maio de 2006. Nunca é demais lembrar os crimes de maio.

A questão, agora, é que teremos uma democracia ainda menos democrática. Porque, apesar de todas suas injustiças e contradições, os governos do PT, assim como os do PSDB, foram todos eleitos pelo voto popular. Michel Temer foi imposto pela vontade de 367 deputados e 61 senadores. É o terceiro presidente ungido indiretamente em uma democracia de 31 anos que teve apenas quatro chefes de Estado alçados ao poder pelas urnas. O governo que temos é ilegítimo. E o problema dos governos ilegítimos é que costumam impor-se pelo único caminho que lhes resta: a violência.

folha-de-s-paulo-1-9-16

O presidente biônico foi muito claro em seu primeiro pronunciamento à nação, na noite do golpe, ao dizer que um dos alicerces de seu governo será a “pacificação do país”. Pacificação não é um verbo empregado em vão. A pacificação dos povos indígenas pelos sucessivos governos brasileiros resultou em genocídio e esbulho territorial. A pacificação das favelas do Rio de Janeiro, uma das heranças da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos, implicou operações conjuntas da Polícia Militar, Bope, Polícia Civil, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Marinha, Exército e Aeronáutica nos morros cariocas – tudo transmitido ao vivo pela televisão. Na ocasião, as Forças Armadas colocaram em prática a expertise adquirida pelos militares brasileiros como comandantes das tropas de ocupação – não por coincidência também chamadas de “forças de paz” – da ONU no Haiti, um dos preços que Lula resolveu pagar para pleitear um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. As Unidades de Polícia Pacificadora, instaladas logo depois da suposta expulsão dos traficantes das favelas do Rio, desapareceram com Amarildo.

sp-04-09-4

Ninguém pode ser pacificado. A paz só pode brotar – espontaneamente – quando há justiça. O termo pacificação significa seu contrário: é um eufemismo para guerra. E essa guerra começou a ser travada contra os opositores de Michel Temer antes mesmo da culminação do golpe de 31 de agosto. Protestos contrários ao impeachment realizados em São Paulo e Rio de Janeiro desde o dia 29 de agosto têm sido sucessivamente reprimidos com enorme brutalidade. Enquanto o presidente biônico voava para a China, onde almejou, sem tanto sucesso, ser reconhecido pelo G20 como presidente de uma das dez maiores economias do mundo, a jovem Deborah Fabri perdia a visão do olho esquerdo, vítima do estilhaço que se desprendeu de uma das dezenas de bombas lançadas pela Polícia Militar de São Paulo. Não é a única vítima daquela jornada repressiva: o psicólogo Gustavo Chiesa também foi atingido no olho, mas, felizmente, não perdeu a capacidade de enxergar. Outros tantos foram feridos em seus corpos e seus direitos de expressão e manifestação.

Os relatos são unânimes em denunciar a truculência da PM e sua intenção de ferir, intimidar e massacrar, promovendo cercos, evitando a dispersão dos manifestantes e usando bombas e balas de borracha sem qualquer critério ou respeito às normas nacionais e internacionais. Tudo ficou mais claro em 4 de setembro, quando São Paulo assistiu a uma gigantesca manifestação contra Michel Temer. Mais de 100 mil pessoas caminharam tranquila, pacífica e ordeiramente da Avenida Paulista até o Largo da Batata. Foram mais de quatro horas de manifestação. Praticamente não havia policiais em todo o trajeto – o que fez com que não houvesse um só quebra-quebra. Assim como junho de 2013 já havia demonstrado, não é coincidência: não tem PM, não tem violência.

Mas no final havia polícia – e muita. Quem chegava sorrindo ao Largo da Batata, feliz com uma demonstração massiva de descontentamento com o golpismo, encontrou caveirões e policiais do Choque fortemente armados com suas espingardas, bombas, armaduras, capacetes e escudos. Uma imensa demonstração de força. Muitos deles estavam mascarados – o que é muito curioso em uma corporação que não admite que manifestantes cubram o rosto. Não demorou para encontrarem uma desculpa esfarrapada – vândalos estão depredando o metrô, o que os próprios seguranças do metrô negaram – para começar seu show pirotécnico: tiro, porrada e bomba para mandar todo mundo embora. Acabou a festa: nada de ficar comendo churrasquinho na praça. Vídeos e relatos da performance policial pululam na internet. Ainda não apareceu nenhum de gente quebrando nada.

Não há, agora, como nunca houve, limites para a ação policial. E o golpe de Michel Temer não é pioneiro em cegar manifestantes: eis um conhecimento que a Polícia Militar de São Paulo, comandada há mais de vinte anos por governos tucanos, desenvolveu com maestria e garantias jurídicas de impunidade. A questão é que, agora, os aparatos repressivos paulista e federal estão irmanados na pessoa de Alexandre de Moraes. O ministro da Justiça cumpre a cota do PSDB no governo golpista em reconhecimento aos serviços prestados à frente da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. Enquanto ocupou a pasta, foi um funcionário diligente e gentil com as marchas favoráveis ao impeachment, enquanto reprimiu violentamente os movimentos sociais, sobretudo os secundaristas, no final de 2015, e o Movimento Passe Livre, no início de 2016.

Sob o comando de Alexandre de Moraes, a Polícia Militar de São Paulo escancarou sem pudores suas opções políticas a ponto de emitir notas oficiais em apoio às reivindicações verde-amarelas. E são essas opções políticas que dão o tom à repressão aos protestos contra Temer. Em 31 de agosto, na Avenida Paulista, apenas os apoiadores do golpe puderam se manifestar em paz. A polícia protegeu bolos e champanhes dos cidadãos que comemoravam a queda de Dilma, enquanto, alguns metros mais adiante, brutalizavam os opositores do novo regime. Foram dias de repressão ininterrupta a quem desejava expressar sua discordância com o golpe. E as demonstrações só não estão sendo mais massivas porque parcela significativa da população está com medo da truculência policial.

1472582688_158660_1472614457_sumario_normal

A imprensa, que poderia fazer frente aos abusos, prefere, como outrora, chancelá-los. Canais de TV, rádio, jornais e revistas estão alinhados ao golpismo. Não se deve esperar nenhum apoio dos grandes meios de comunicação para denunciar nacionalmente o modus operandi totalitário das forças de segurança. Pelo contrário, a tradicional manipulação midiática brasileira pinta os manifestantes anti-Temer como baderneiros violentos – ou fascistas, como vergonhosamente sugeriu a Folha de S. Paulo em editorial. Nesse sentido, há que se louvar os cidadãos que, contra tudo e todos, e colocando-se em risco, saem às ruas contra o golpe. Uma vez que argumentos, fatos e razões não bastam, eles praticam uma política física, material, concreta, resistindo ao presidente biônico – e à sua truculência – com seus próprios corpos.

Em meio à profunda crise da esquerda, à falta de alternativas imediatas e à ausência de um horizonte utópico, o antigolpismo, hoje, se expressa concretamente na admirável coragem de cidadãos que saem às ruas sabendo de antemão que podem ser massacrados pela polícia. O sangue, infelizmente, é o que está aumentando os decibéis do “Fora Temer” – e o que está escancarando o caráter pacificador de seu governo ilegítimo. A continuidade dos protestos, sua eventual reprodução pelo território nacional e sua previsível repressão violenta terão a capacidade de responder a algumas perguntas que ainda não foram devidamente formuladas. A principal delas parte de uma certeza. Tivemos um golpe. Teremos uma ditadura?

Reblogado de Outras Palavras

Compartilhar no Facebook

CLAUDE LÉVI-STRAUSS, “O Suplício do Papai Noel”

Papai Noel

CLAUDE LÉVI-STRAUSS
“O Suplício do Papai Noel”

“Papai Noel veste-se de vermelho: é um rei. A barba branca, as peles, as botas e o trenó evocam o inverno. É chamado de “papai” e é idoso: encarna, portanto, a forma benevolente da autoridade dos antigos. Tudo isso é bastante claro, mas em que categoria ele deve ser classificado, do ponto de vista da tipologia religiosa? Não é um ser mítico, pois não há um mito que dê conta de sua origem e de suas funções; tampouco é um personagem lendário, visto que não há nenhuma narrativa semi-histórica ligada a ele. Na verdade, esse ser sobrenatural e imutável, fixado eternamente em sua forma e definido por uma função exclusiva e um retorno periódico, pertence mais à família das divindades; as crianças prestam-lhe um culto em certas épocas do ano, sob a forma de cartas e pedidos; ele recompensa os bons e priva os maus. É a divindade de uma categoria etária de nossa sociedade (categoria etária, aliás, suficientemente caracterizada pelo fato de acreditar em Papai Noel), e a única diferença entre Papai Noel e uma verdadeira divindade é que os adultos não crêem nele, embora incentivem as crianças a acreditar e mantenham essa crença com inúmeras mistificações. Papai Noel, portanto, é em primeiro lugar a expressão de um status diferenciado entre as crianças, de um lado, e os adolescentes e adultos, de outro. Deste ponto de vista, ele se liga a um vasto conjunto de crenças e práticas que os etnólogos estudam na maioria das sociedades, a saber, os ritos de passagem e de iniciação. De fato, são raros os agrupamentos humanos em que as crianças (às vezes também as mulheres) não estão, de uma maneira ou de outra, excluídas da sociedade dos homens pela ignorância de certos mistérios ou pela crença – cuidadosamente alimentada – em alguma ilusão que os adultos se reservam o direito de desvendar em um instante oportuno, sacramentando assim o momento em que as gerações jovens se integram ao mundo deles…”

LEIA NA ÍNTEGRA
COMPARTILHE NO FACEBOOK

 * * * *
Confira também uma abordagem sócio-política contemporânea:

Natal
A fantástica fábrica do Natal: http://bit.ly/1vtQC4M (via NINJA)

“Nossos mitos natalinos parecem sugerir que o Natal é feito por elfos de face rosada, martelando numa cabana de madeira rodeada de neve, em algum lugar do Círculo Polar Ártico. Mas não. É provável que a maior parte dos balagandãs, pingentes, lantejoulas e luzes cintilantes de LED que você espalha generosamente, em torno de sua casa, venham de Yiwu, uma cidade 300 quilômetros ao sul de Shangai – onde não há um único pinheiro de verdade ou floco de neve natural.

Batizada de “cidade chinesa do Natal”, Yiwu abriga 600 fábricas que, em conjunto, produzem mais de 60% de toda a decoração e acessórios de Natal – das árvores incandescente de fibra ótica aos chapéus de feltro do Papai Noel. Os “elfos” que trabalham nestas fábricas são, quase sempre, operários migrantes, que trabalham 12 horas por dia, por um salário que equivale a algo ente 900 e 1300 reais por mês. E eles talvez não saibam muito bem o que é o Natal…”

Leia o artigo completo>>> http://bit.ly/1vtQC4M
Por Oliver Wainwright, no The Guardian com tradução de Antonio Martins, em Outras Palavras