MOLDANDO A MUDANÇA: Sobre “A Parábola do Semeador” de Octavia Butler (1947-2006)

Octavia Butler (1947 – 2006), em entrevista concedida em Maio de 1999, disse algo profundamente significativo: “Perguntei a mim mesma qual era a força mais poderosa na qual podia pensar? O que não podemos impedir, não importa o quanto tentemos? A resposta que encontrei depois de alguma reflexão foi: a Mudança. Podemos fazer muitas coisas para influenciar os constantes processos de mudança. Podemos direcioná-los, alterar sua velocidade ou impacto. Em geral, podemos moldar a mudança, mas não podemos impedi-la, a nenhum custo. Por todo o universo, a realidade constante é a mudança.

(…) No budismo, a mudança também é muito importante: já que tudo é impermanente, só podemos evitar sofrimento ao evitar apego, pois tudo a que poderíamos nos apegar está fadado a perecer. Lauren Olamina, a protagonista de ‘A Parábola do Semeador’, diz que, já que a mudança é a única verdade inescapável, mudança é a argila primordial das nossas vidas. Para vivermos de forma construtiva, precisamos aprender a moldar a mudança quando pudermos e a nos render a ela quando necessário. De todo modo, devemos aprender e ensinar, nos adaptar e crescer.” (São Paulo: Editora Morro Branco, 2018, pg. 415 – 416)

A aclamada autora de ficção científica revela aí um pouco de sua filosofia de vida. A Editora Morro Branco, que a publica no Brasil, destaca: “Apesar de enfrentar muito preconceito em uma área dominada por homens brancos, Octavia Butler foi uma autora que abriu caminho para que outras prosperassem na ficção especulativa e um dos nomes mais fortes quando se fala em afrofuturismo.”

O livro descreve “uma crise ambiental e econômica que leva ao caos social. Nem mesmo as cidades muradas estão seguras. Em uma noite de fogo e morte, Lauren Olamina, a jovem filha de um pastor, perde sua família e seu lar. É obrigada a se aventurar pelas terras americanas desprotegidas. Mas o que começa como uma fuga pela sobrevivência acaba levando a algo muito maior: uma visão estonteante do destino humano. E ao nascimento de uma nova fé.”

É notável que o livro tenha transbordado das bibliotecas e livrarias para de fato inspirar movimentos sociais e espirituais que se guiam pelo “Livro dos Vivos” – composto pelos versos que Lauren Olamina escreve e que estão polvilhados pelas páginas por A Parábola do Semeador e sua continuação, A Parábola dos Talentos.

Se “Deus é Mudança”, a protagonista do romance sci-fi distópico de O. Butler está disposta a não ser apenas vítima do que muda, mas também aquela que molda a mudança. Lauren Oyá Olavina atravessa, nas 400 páginas do livro, um turbilhão de transformação que não escolheu. São mudanças que surgem como imposições de um destino cruel: um futuro não muito distante, já que tudo se passa entre 2024 e 2027, Los Angeles virou de fato um cenário Mad Max. A adolescente Lauren é jogada na estrada pela violência de um contexto pós-apocalíptico que também evoca The Road – filme de John Hillcoat baseado na obra de Cormac McCarthy.

Esta sementeira de outros amanhãs possíveis sofre de uma condição psicofisiológica, que é também um ethos, descrita por O. Butler como “hiper-empatia”. Parece-me bastante irônica a atitude da autora quando chama isto de síndrome ou de doença – o que ocasionou que alguns desavisados da imprensa e da crítica literária, a exemplo do Estadão, pudessem escrever que na obra “a sensibilidade é tratada como doença” (https://bit.ly/355QItq). Não é bem assim: a hiper-empatia de Olavina não é justamente a virtude que precisamos para transformar o mundo para melhor, ainda que “possuí-la” torne o sujeito muito mais vulnerável a sentir as dores de outrem, além das suas?

Lauren, relatando como é difícil para ela “aguentar o compartilhamento da dor alheia” (p. 117), leva-nos a pensar numa tendência humana bastante comum e disseminada, a vontade de recalcar, reprimir e não atentar para quaisquer sofrimentos que não nos atinjam diretamente (o que é outro modo de descrever o egoísmo mais empedernido). A tal da síndrome de “hiper-empatia” de Lauren só é considerada anormal e aberrante em contraste com quase todos os humanos a seu redor, que aparecem embrutecidos, agressivos, violentos, piromaníacos, capaz de destruir o que resta de beleza e gentileza no mundo sem derramar uma lágrima.

É evidente que ser hiper-empática não é sentido por Lauren como uma dádiva – seu sensor à dor alheia, estando tão afinado, lhe conduz à dificuldade extraordinária de ser uma espécie de Atlas da compaixão, como quem sente as dores de todo o mundo a ponto de todos os fardos caírem sobre seus ombros. Mas é talvez justamente esta insuportabilidade do sofrer coletivo que impele as pessoas revolucionárias a embarcarem na estrada da consciente “moldação da mudança”?

– Eu não brigava muito quando era criança porque me dóia muito. Sentia cada golpe que dava, como se tivesse atacado a mim mesma. (p. 21)

Esta confissão de Lauren indica uma sensibilidade à dor do outro que se assemelha àquela capacidade imaginativa e empática que, no “De Profundis”, Oscar Wilde recrimina Bosie por possuir tão pouco e ter desenvolvido tão mal (saiba mais: https://wp.me/pNVMz-6kx).

Google faz homenagem à escritora californiana Octavia Butler.

Há também um certo humor na descrição sagaz que O. Butler faz das desventuras de Lauren, pois os outros, que conhecem sua condição hiper-sensível, acabam por brincar com isso: em um episódio memorável, ela conta que seu meio-irmão Keith “usou tinta vermelha para me enganar e me fazer sangrar em solidariedade a um ferimento que ele não tinha.” (p. 135)

Keith e Lauren, neste momento da epopéia, estão ainda vivendo em uma comunidade murada, rodeada pelo caos da convulsão social. Não há segurança alguma intra-muros: nesta distopia, colapsou totalmente a “lógica do condomínio” de que nos fala Vladimir Pinheiro Safatle (https://bit.ly/2VzJTgy). Tudo é de uma grande precariedade existencial e se sente que os personagens podem morrer violentamente a qualquer instante. O plano de Keith é se mandar para Los Angeles, a 32 km de onde vivem, mas o caminho para lá é repleto dum inferno terrestre à la Mad Max, que leva Keith a aconselhar sua meia-irmã:

– Lá fora, você não duraria um dia. Essa merda de hiper-empatia que você tem te destruiria mesmo que ninguém fizesse nada contigo. (p. 138)

Retrato de um mundo onde a empatia e a sensibilidade tornaram-se, para a consciência alienada hegemônica, vícios deploráveis e fraquezas a serem extirpadas. Mas é Keith quem poucos dias depois estará morto após ser barbaramente torturado. Lauren Olavina, hiper-empática, mostra-se não só como sobrevivente, resiliente, mas também como sementeira, criadora desta mescla de movimento social com religião new-age, o Semente da Terra (Earthseed). Lauren – e O. Butler através da boca de sua criatura – conclui diante das atrocidades horrendas que pululam à sua volta: “Se a síndrome de hiperempatia fosse algo mais comum, as pessoas não fariam essas coisas… Se todos pudessem sentir a dor um do outro, quem torturaria? (…) Eu queria poder dar isso às pessoas.” (p. 144)

“A Parábola do Semeador”, além de um perturbador romance sci-fi distópico, também convida à reflexões éticas que podem ser enriquecidas através de uma interlocução com a obra magistral do filósofo australiano Roman Krznaric, autor de “O Poder da Empatia: A arte de se colocar no lugar do outro para transformar o mundo” (Ed. Zahar). Evoca também o último suspiro de um rockstar: Kurt Cobain, em sua carta de suicídio, deixou suas “famous last words” (célebres palavras finais) como uma conclamação à tríade de valores: “peace, love, empathy.” (https://bit.ly/2S9tNIt). Se O. Butler tem razão e a Mudança é a força mais poderosa do cosmos, cabe a cada um de nós não sermos apenas mudados, mas sim mudadores e mutantes. E jamais, sem empatia, moldaremos a mudança rumo ao melhor. “Aprenda ou morra”:

Consider: Whether you’re a human being, an insect, a microbe, or a stone, this verse is true.

All that you touch
You Change.

All that you Change
Changes you.

The only lasting truth
Is Change.

God
Is Change.

— Octavia E. Butler, Parable of the Sower

Por Eduardo Carli de Moraes.
Goiânia, 25/04/2020.


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A EDUCAÇÃO PELO CÁRCERE: A sabedoria sofrida de Oscar Wilde após passar pelas profundezas do aprisionamento

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

“For he who lives more lives than one
More deaths than one must die.”
OSCAR WILDE, The Ballad of Reading Gaol

Escrita na prisão, em 1895, De Profundis é a longa carta que Oscar Wilde (1854 – 1900) endereça a seu ex-amigo / ex-amante Lord Alfred Douglas, mais conhecido por seu apelido Bosie, revelando tudo o que aprendeu no cárcere. Poucas obras literárias são tão impressionantes e comovedoras ao retratarem a transfiguração de um sujeito que atravessa o inferno prisional. e pôde, utilizando-se da arte como instrumento alquímico, transfigurar o sofrimento em sabedoria. “Wilde não admite nenhuma culpa perante às leis injustas que o colocaram no cárcere”, escreve Anne Varty no prefácio da Wordsworth Classics, e deseja instruir o leitor “à luz da sabedoria que ganhou através de experiências de dor e privação.” [1]

Mas longe de ser um escrito repleto de retórica jurídica em que o acusado tentaria defender-se da acusação errônea que lhe lançam, De Profundis revela um artista, ciente de sua posição como vanguarda da cultura britânica do fim do século XIX, quer ensinar a Humanidade sobre a sofrida sabedoria que conquistou. Após o Sofrimento [Sorrow] ter raptado todos os seus dias e aprisionado Wilde a sua roda de Íxion (para lembrar num célebre torturado da mitologia grega), Oscar Wilde faz-se educador. Sobretudo de seu ex-amante, Bosie, a quem endereça diretamente suas palavras, mas também de todos os outros humanos, que o autor certamente imaginou que leriam esta “carta aberta” que enviou a Bosie e ao resto de nós todos.

Pintura de Giovanni Battista Langetti, “A Tortura de Íxion” (Século XVII)

Frei Betto gosta de citar uma frase de Shakespeare: “O ódio é um veneno que se toma esperando que o outro morra.” Wilde, ao escrever De Profundis, tenta fazer a catarse de sua amargura, numa terapia anti-ressentimento: “Não escrevo esta carta para encher seu coração de amargura, mas para esvaziar o meu. Por meu próprio bem devo perdoá-lo. A pessoa não pode ficar a vida toda com uma víbora para alimentar junto ao peito, não pode acordar dia após dia e semear espinhos no jardim da própria alma.” (p. 92)

A conclusão moral que Wilde tira dos episódios deste seu relacionamento que o conduziu ao cárcere é esta: “o vício supremo é a superficialidade.” Ele se refere, na verdade, ao vício de uma imaginação débil, incapaz de se colocar no lugar do outro, para sentir com empatia ou compaixão aquilo que o outro sente. Bosie teria agido cegado pelo ódio, pela vaidade, pela ganância, pela ânsia dos luxos supérfluos, pela inconsequência imprudente da irresponsabilidade etc.

Alfred Douglas, o Bosie, a quem Wilde endereça “De Profundis”

No contexto da exortação pedagógica de Wilde a Bosie, ser “superficial” significa não ser capaz de perceber e atentar à complexidade e profundidade do outro. Este colapso da empatia é outro nome para o egotismo. Só a abertura à Outridade, como diz Octavio Paz, é capaz de nos tornar mais “profundos”, alargando nossas teias relacionais e assim aprofundando a qualidade e diversidade de nossas vivências. Alargamos nossos horizontes também no contato com os abismos – sinais de pontes a construir, ou de uma lamentação por um abismo inponteável – que nos separam e nos unem aos outros.

A intenção pedagógica da carta fica clara na frase que a encerra: “talvez eu tenha sido escolhido para lhe ensinar”, escreve Wilde a Bosie, “o significado da Tristeza e sua beleza.” (p. 188) Wilde está triste, é evidente, por estar no cárcere, mas sobretudo pelo desamparo em que Bosie lhe largou. Na prisão, Wilde não recebeu uma carta sequer de seu ex-amigo. A comunicação foi totalmente cortada. A carta está repleta de recriminações que o prisioneiro Wilde faz a Bosie, já que este seria a encarnação da Insensibilidade, da Irresponsabilidade, da Imaginação Empática atrofiada. Já Wilde, bem à la Narciso, trata-se como “gênio”.

“Você não foi capaz de encontrar nada melhor para fazer com minha vida”, lamenta-se Oscar, “do que parti-la em pedaços. Se a pessoa dá à criança um brinquedo maravilhoso demais para sua jovem mente, ou belo demais para seus olhos ainda semidespertos, ela o quebra, se for teimosa; se fica desinteressada, ela o deixa cair no chão e se afasta para ficar com as outras crianças.” (p. 175)

Fica claro, portanto, que De Profundis pode ser classificado como uma obra em que seu autor teve intenção pedagógica no sentido de contribuir para um grau superior de maturidade emocional. É neste contexto que retorna o refrão do moralista Wilde: “o vício supremo é a superficialidade.” Só a Tristeza, ensina Wilde, torna alguém profundo.

 

“A religião não me é de ajuda. A fé que outros depositam no que não podem ver, eu a deposito no que a pessoa pode tocar e enxergar. Meus deuses habitam templos construídos com as mãos; e dentro do círculo da experiência real está meu credo tornado perfeito e completo: talvez completo demais, até, pois, como muitos ou todos que situaram seu paraíso na terra, nela eu encontrei não meramente a beleza do paraíso, mas também o horror do inferno.

Nas raríssimas ocasiões em que penso na religião, sinto como se quisesse encontrar uma ordem para aqueles que não podem acreditar: a Confraria dos Descrentes, onde, sobre um altar, no qual vela alguma ardesse, um sacerdote, em cujo coração a paz não tivesse morada, poderia celebrar com o pão não consagrado e um cálice vazio de vinho.”

OSCAR WILDE, De Profundis, p. 99

O aprendizado com as vivências do cárcere leva Wilde a compreender algo só acessível a quem esteve triste na sarjeta. Após beijar o pó, ir à falência e ver seu nome célebre arrastado na lama, ele descobre que perder tudo ensina a virtude da Humildade [Humility] e da Piedade [Pity]. A Humildade, como Wilde mesmo admite, faltou-lhe enquanto ele foi um dândi narcisista, gastando muita grana com prazeres supérfluos e refinados na companhia interesseira de Bosie. A Humildade, após a prisão, aparece-lhe como uma virtude que a vivência do sofrimento é capaz de ensinar a uma pessoa: “não se pode dá-la a ninguém e ninguém pode dá-la ao outro. Não se pode adquiri-la a não ser abrindo mão de todas as coisas que se tem. Apenas quando a pessoa perdeu tudo ela sabe que a possui.”

Paradoxalmente, Wilde pretende ter aprendido a Humildade e quer ensiná-la a Bosie, ou ao menos conclamá-lo para que faça uma jornada de auto-transformação que só ocorreria caso Bosie soubesse ser mais humilde e empático. Propõe, na carta: “melhor faria você em descer aqui ao pó e aprendê-la [a Humildade] ao meu lado. Ainda assim, Wilde prossegue convicto na adesão ao Individualismo: “Nada me parece ser do menor valor, exceto aquilo que a pessoa extrai de si mesma. Minha natureza está buscando um modo novo de autorealização. (…) Estou sem um tostão, e não tenho onde morar. Mas na vida há coisas piores que isto. (…) Os que têm muito são em geral gananciosos; quem tem pouco sempre compartilha.” (p. 97)

A lápide de Oscar Wilde no Cemitério Père Lachaise em Paris hoje celebra um outcast que soube lamentar-se pelo destino de outros outcasts. No poema A Balada de Reading, outro texto que, assim como De Profundis, nasce da experiência do autor de O Retrato de Dorian Gray na prisão, ele descreve o impacto de testemunhar a execução de um outro preso: em 7 de julho de 1896, após ser condenado à morte pela forca, Charles Thomas Woolridge, ex-soldado da Cavalaria Real, foi morto na prisão por ter matado sua esposa.

blues que Wilde entoa busca de certo modo dar voz a um canto coletivo: é como se todos os prisioneiros daquele complexo carcerário se expressassem através dos versos wildeanos. Todo o terror dos prisioneiros que sabem que vão sobreviver à execução do colega de cárcere ali se manifestam. Os últimos dias do condenado também são narrados, todo seu élan vital: ele “bebia o Sol como se fosse vinho”, canta Wilde, e adorava observar as nuvens peregrinas fluindo pelo céu sempre que os carcereiros o permitiam o luxo de uma contemplação entre grades da Natureza gloriosa. O lamento de Wilde também se deve ao fato de que “um homem deve morrer antes que carregue frutos” [A man must die / Before he bears its fruit].

O tom, o mood, a ambiência emocional do poema não deixam de evocar o blues que, do outro lado do Atlântico, impulsionado pelo banzo de afroamericanos que haviam sido no passado desenraizados de sua África-mãe. A denúncia contra o regime da Supremacia Branca [white supremacy] nos EUA que ressoa em “Strange Fruit”, clássica na voz de Billie Holliday, expressa um pouco deste blues diante da injustiça que também marca a Balada de Wilde.

O testemunho que Wilde nos deixa de suas reações diante da execução do outro não traz argumentos jurídicos ou humanitários contra a pena-de-morte. WIlde tenta nos convencer pelo sentimento de que a Piedade, neste caso, é bem-vinda, que não deveríamos nos misturar aos carrascos, colaborar com os assassinos oficiais, os gestores dos “massacres administrativos” de que nos fala Hannah Arendt. Wilde, com sua arrogância prévia bastante machucada pelas humilhações sofridas, ainda assim ergue uma cabeça determinada para manifestar, com todo o fogo de seu verbo, uma fraternidade entre outcasts. Um tema que interessará também enormemente a grandes autores posteriores que sofreram a influência de WIlde – a exemplo de Paul Auster.

Ao assistir, detrás das grades, ao homicídio estatal de um ser humano que é morto “como uma besta”, sem que ninguém lhe toque “um réquiem que poderia trazer algum alívio à sua alma conturbada”, e que depois de enforcado é rapidamente “escondido num buraco”, sem jamais merecer sepultura com lápide ou homenagem, Wilde sente-se compelido à empatia. O condenado à morte, a quem as autoridades do mundo recusaram a misericórdia, tratado sem nenhuma piedade por carrascos e seus mandantes, inspira os versos de Wilde que depois estariam em sua própria lápide:

Tumba de Oscar Wilde em Paris

“And alien tears will fill for him
Pity’s long-broken urn, 
For his mourners will be outcast men, 
And outcasts always mourn.”

Pg. 134

A famosa frase de Wilde que diz “estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas” pode ser enganadora: caso lida como uma espécie de convite à alienação, ou seja, um chamado para esquecermos tudo que se passa na sarjeta do mundo terreno para nos concentrarmos nas alturas cósmicas e celestes, o que não está entre as intenções do Wilde que surge da experiência prisional. Ele torna-se, nesta ocasião, um educador das emoções, um moralizador através da estética, que conclama a termos uma fraternidade dos seres da sarjeta, uma brotherhood of outcasts. 

O aprendizado pelo cárcere, a cruel pedagogia do estar-preso, conduziram Wilde a uma sabedoria conquistada no sofrimento. No pain, no gain – slogan de algumas academias de ginásticas, lema de algums marombados, esta expressão também poderia significar algo mais profundo e de um ethos mais trágico: a dor é uma escola. Ao menos para quem sabe ser bom estudante e deixar-se transformas pelas vivências do confinamento violento (pois imposto pela mão férrea de outrem). O individualista que Wilde permaneceu sendo entre outcasts emerge da prisão rebelde e comovido, cheio de empatia e certa humildade, denunciando as normas insanas (sobretudo as homofóbicas, ou seja, o nomos do macho tóxico) que o expulsaram do convívio normal no seio da autoproclamada Sociedade Civilizada.

Wilde propõe-se a chorar num belíssimo blues a morte de um destes que o Sistema lança ao moedor de carne como uma besta, classificado previamente como “matável”. Assim, Wilde alça-se ao nível daqueles raros humanos que agem pela palavra, através da função performativa da linguagem, muito depois de sua presença física ter desaparecido do mundo: quem fez escola nos escritos de cárcere de Wilde aprende que “todo santo tem um passado e todo pecador tem um futuro” e que “aquele que vive mais vidas do que uma, mais mortes do que uma deve morrer.”

Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Abril de 2020


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