SAMBANDO COM O HUMOR E A AMARGURA: Como a “jovialidade trágica”de Assis Valente marcou pra sempre a MPB

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

 «Só se é fecundo pelo preço de se ser rico em contradiçõesNIETZSCHE, “Crepúsculo dos Ídolos”

PRÓLOGO: Fui convidado pela equipe do Enredo Cultural da TV UFG a tecer alguns comentários sobre a vida e a obra de Assis Valente, um de meus compositores populares prediletos, para o quadro Artefilia do programa que foi ao ar em 29/01/2020. Em uma participação anterior, em que eu fui instigado a compartilhar impressões sobre Parte de Nós, de Diego & o Sindicato, um dos meus álbuns prediletos da música brasileira no séc. 21, a entrevista concedida à jornalista Janaína de Oliveira enveredou a certo ponto sobre a influência e a repercussão, na música da atualidade, de Assis Valente, e isto acabou sendo o tema de outra conversa que tive, desta vez com o jornalista Gustavo Soares. No processo, pude notar que, muito além d’Os Novos Baianos e sua clássica releitura de “Brasil Pandeiro” nos anos 1970, Assis Valente vive e ecoa, nos anos 2000s, na trilha do Mascate.

Este artigo – Sambando Com o Humor e Amargura – é fruto das pesquisas em que mergulhei no processo de colaborar com esta produção midiática da Universidade Federal de Goiás e de dialogar mais a fundo com o Diego Mascate – que tornou-se hoje um querido amigo, além de um dos artistas que mais admiro. O artigo também tem uma dívida imensa ao livro de Gonçalo Júnior, aqui esmiuçado: Quem Samba Tem Alegria é uma uma biografia irretocável, extremamente informativa, que descortina para o leitor horizontes ampliados sobre a música popular do Brasil através da vida e obra de um de seus ícones mais memoráveis, Assis Valente, o trágico jovial.


SAMBANDO COM O HUMOR E A AMARGURA

Quem observa a fotografia de Assis Valente, posando diante dos Arcos da Lapa em 1951, não tem razão para duvidar de que está diante de um homem feliz e realizado. Com seu sorriso radiante, com dentes perfeitos e dignos de quem exerceu o ofício de fabricar elogiadas próteses dentárias, Assis Valente traz no rosto a expressão de um boêmio experiente. Passa a impressão de estar rodeado pela aura de malandro hedonista, sábio apreciador dos prazeres do viver. Quem imaginaria que, por detrás da aparência, a depressão o corroía, as dificuldades financeiras o acossavam e as tentativas de suicídio se multiplicavam?

O mulato baiano, nascido em 1911, depois emigrado para a metrópole carioca e capital federal, parece estar nesta imagem lendária no auge de sua força. Parece um neo-epicurista nas festanças de Momo, alguém que vive com base na ética que o mesmo celebrou em seu refrão “salve o prazer, salve o prazer!”. Ali estava o retrato do bem-humorado sátiro que fez a engraçadíssima “E O Mundo Não Se Acabou”, canção que Carmen Miranda celebrizou:


“Acreditei nessa conversa mole
Pensei que o mundo ia se acabar
E fui tratando de me despedir
E sem demora fui tratando de aproveitar
Beijei na boca de quem não devia
Peguei na mão de quem não conhecia
Dancei um samba em traje de maiô
E o tal do mundo não se acabou…”

A pose da foto não capta a tristeza em seu âmago. Mas dá o que pensar sobre o trajeto que levou este compositor de sambas imortais como “Alegria”, originalmente gravada por Orlando Silva, a acabar com a própria vida em 1958 ingerindo guaraná com formicida.


“Minha gente era triste e amargurada
Inventou a batucada
Pra deixar de padecer
Salve o prazer, salve o prazer…”

A obra artística de Assis Valente revelou-se imorredoura: muitos hoje cantarolam suas melodias e versos, às vezes sem saber que Valente é o compositor delas – como é o caso de “Cai Cai Balão” e “Boas Festas”, sempre lembradas nas festividades de São João e de Natal.

Imorredouro, o compositor popular Assis Valente consegue expressar, como todo grande artista, a mescla entre o positivo e o negativo, o bem e o mal, a delícia e desgraça, de que a vida humana é feita. Afinal, a vida é o território do “matrimônio entre Céu e Inferno” de que se nutriu William Blake para realizar suas obras.

Assis Valente soube tecer os cantos inesquecíveis que nos contam sobre esta vida de alegrias e tristezas entrelaçadas. E ele próprio era capaz de ir da euforia à fossa de maneira tal que psiquiatria de hoje poderia caracterizá-lo como afligido por transtorno bipolar.

O método escolhido por Assis Valente para aniquilar-se, depois de umas seis ou sete tentativas frustradas de suicídio, conta-nos algo sobre a mescla de humor e amargura que marcou sua vida e obra. Quer coisa mais jovial e fútil, mais alegre e descompromissada, do que tomar um Guaraná na praia, olhando o mar ao pôr-do-Sol? Quer coisa mais trágica e grave, mais terrível e sinistra, do que despejar formicida ou veneno-de-rato no que deveria ser apenas um refrescante Guaraná Antarctica?

Naquele 6 de março de 1958 em que Assis Valente abandonou o mundo dos vivos, o Brasil – o país do guarani e do guaraná, pra lembrar o álbum que Sidney Miller gravaria 10 anos depois – ganhou um emblema tragicômico que não cessaria de nos provocar e fascinar. Assis Valente, considerado pelo crítico musical Tárik de Souza como um dos principais artistas “pré-tropicalistas”, legava à posteridade um emblema, e um enigma.

“Baiano dos arredores de Salvador, José de Assis Valente começou em plena era do rádio, nos anos 1930. Além de seu ‘alter ego’ Carmen Miranda, emplacou composições nas vozes de Francisco Alves, Orlando Silva, Silvio Caldas, Araci Cortes e os vocais do Bando da Lua e Anjos do Inferno. Disputava espaço com os gigantes do chamado período aurífero da MPB, João de Barro, Lamartine Babo, Ary Barroso, Noel Rosa e o iniciante Dorival Caymmi.” (TÁRIK DE SOUZA, p. 51)

Através de canções bem-humoradas, de fina sátira, que grudavam na memória, Assis Valente se tornaria um dos maiores exemplos do homo ludens (um conceito muito utilizado por Johan Huizinga como chave-de-leitura das culturas). Inspirou gerações de compositores que viriam depois: a veia lúdica que pulsa em Chico Buarque, Sidney Miller, Tom Zé, Os Mutantes, Novos Baianos, dentre muitos outros talentos satíricos da nossa música popular, tem dívida de gratidão com Valente.


“Quem foi que inventou o Brasil?
Foi seu Cabral! Foi seu Cabral!
No dia 21 de Abril…
Dois meses depois do Carnaval…”
(Sidney Miller)

As canções de Assis Valente falam muito de sorrir em meio à dor. Falam de um povo que inventa as batucadas para remediar o seu cotidiano padecer. Em algumas canções, o eu-lírico faz a crônica dos fingimentos de alegria que mascaram as tristezas no âmago. Alimenta os mitos sobre os palhaços tristes, sobre bufões que por fora são a imagem da jovialidade encarnada, mas que choram sozinhos em seus quartos ao amargarem todos os horrores do abandono, da segregação, do vício. Na mesma “Alegria”, ele arremata com os versos: “Vou cantando, fingindo alegria / Para a humanidade não me ver chorar…”

O senso comum tende a pensar que “quem samba tem alegria”, nome aliás da excelente biografia que Gonçalo Junior realizou sobre “a vida e o tempo de Assis Valente”. Porém, alegria não basta para que nasça um samba que realmente se conecte com a alma das massas e que ecoe na posteridade. Pra se fazer um bom samba é preciso “um bocado de tristeza”, como já ensinaram Vinícius de Moraes, Baden Powell e Toquinho no “Samba da Benção”, agindo como discípulos de Assis Valente:


“É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza!
Senão não se faz um samba não…”

Há lições de sabedoria a extrair da obra deste poeta, Assis Valente, dotado de um senso intenso da ambivalência intrínseca à vida. Para esclarecer o que quis dizer por trás do palavreado filosófico um tanto hermético da última fase, evoco o mesmo ethos presente em outra genial canção da nossa MPB: “Preciso Me Encontrar”, composição de Candeia imortalizada por Cartola.

Nela, o sambista anuncia seu plano de cigano bucólico, faminto pelas experiências de “assistir ao Sol nascer / ver as águas dos rios correr / ouvir os pássaros cantar / eu quero nascer, quero viver”.

Ele na sequência menciona que este ímpeto cigano, esta vontade de ser trotamundos, tem uma fonte, uma razão, um motivo: ele “precisa andar” devido à sua busca de “sorrir pra não chorar”. Assis Valente está em sintonia com esse sentimento.

Ironista de nossos desmazelos tropicais, Assis fala na genial “Recenseamento” de um Brasil que tem “um conjunto de harmonia que não tem rival”. Ele estava quase que com certeza sendo irônico, pois falar de “harmonia social” neste país de fraturas expostas e violências extremas parece piada. E é.

Nas crônicas-canções de Assis Valente, a “harmonia sem rival” é descrita em seus elementos constituintes: “Comecei a descrever tudo de valor / Que o meu Brasil me deu / Um céu azul, um Pão de Açúcar sem farelo / Um pano verde e amarelo / Tudo isso é meu! / Tem feriado que pra mim vale fortuna, / A Retirada da Laguna vale um cabedal! / Tem Pernambuco, tem São Paulo, tem Bahia, / um conjunto de harmonia que não tem rival.”

O cáustico cinismo do compositor se derrama sobre os agentes públicos que, em 1940, faziam recenseamento no morro. Assis Valente, como faria décadas depois Chico Buarque, adere a um eu-lírico feminino, e esta mulher-do-morro reclama de ter sua vida esmiuçada e devassada, pelo invasor que é o “agente recenseador”, em um processo que “foi um horror”.

Retrato da Era Vargas (1930 – 1945), a música fala sobre a hegemonia de uma ideologia trabalhista que tratava a boemia como vício a combater, que mandava a polícia reprimir quem não fosse do batente e sim da folia. A mulher da música, diante do “agente recenseador”, narra um encontro difícil – nele, ela tem que explicar à autoridade os modos de vida do seu “moreno”, que corre o risco de ser criminalizado não só pelo tom de sua pele, mas por supostamente não trabalhar com coisa séria. Vale lembrar que a apologia da boemia, que estava na letra original do samba “Bonde de Januário” de Ataufo Alves, era censurada à época (1937) pelo D.I.P. (Departamento de Imprensa e Propaganda).



“Quando viu a minha mão sem aliança
encarou para a criança
que no chão dormia
E perguntou se meu moreno era decente
se era do batente ou se era da folia…
Obediente como a tudo que é da lei
fiquei logo sossegada e falei então:
O meu moreno é brasileiro, é fuzileiro,
é o que sai com a bandeira do seu batalhão!
A nossa casa não tem nada de grandeza,
nós vivemos na fartura sem dever tostão.
Tem um pandeiro, um cavaquinho, um tamborim
um reco-reco, uma cuíca e um violão…”

As cerca de 153 canções de Assis Valente que foram gravadas são cifra suficiente para provar que sua vida foi fecunda em criatividade. Isso só foi possível, em menos de 50 anos de vida, pois Assis Valente era rico em contradições, o que evoca um pensamento de Nietzsche citado na epígrafe: “Só se é fecundo pelo preço de se ser rico em contradições.” Assis Valente, milionário em contradições ainda que tenha vivido com dificuldade para pagar os aluguéis e saldar as dívidas, soube lidar criativamente com a profusão de contradições que o habitavam e soube expressá-las musicalmente. 

Em “Minha Embaixada Chegou”, outra de suas músicas geniais, retoma o emblema da batucada que “aquela gente triste e amargurada inventou pra deixar de padecer”. Essa mesma batucada, inventada como remédio coletivo para nosso  sofrer, é também aquilo que o povo usa em seu próprio processo de libertação e de celebração da existência, por mais sofrida que seja. É na batucada que o povo vai “pedindo licença pra desacatar”, e em meio aos batuques o amor se faz, em meio à folia e à vadiagem, num cordão onde a tristeza da existência favelada é transcendida:


“Vem vadiar no meu cordão!
Cai na folia meu amor!
Vem esquecer tua tristeza,
Mentindo a natureza,
Sorrindo a tua dor.

Minha embaixada chegou…

Usei o nome da favela,
Na luxuosa academia,
Mas a favela pro doutô
É morada de malandro
E não tem nenhum valor.

Não tem doutores na favela,
Mas na favela tem doutores!
O professor se chama bamba,
Medicina é na macumba,
Cirurgia lá é samba.

Minha embaixada chegou…”

Tempos depois, Clara Nunes, em sintonia com a jovialidade trágica de Assis, cantaria num belo samba do LP Brasil Mestiço: “Quando eu morrer, quero uma batucada pra me levar à minha última morada.”

Resta ainda por compreender melhor, decifrando um pouco ao menos alguns de seus mistérios, o que levou este hedonista batuqueiro, este boêmio carnavalesco, a atravessar o inferno da depressão, a jogar-se do Corcovado numa sensacional tentativa de suicídio em 1941, para em 1958 findar seus dias com uma dose letal de guaraná com formicida.

Em sua espiral de descida à inexistência, Assis Valente nos deixou um ponto final que leva a sentir, de maneira trágica, a verdade intragável: rezamos em vão pra Papai Noel ou pra Papai do Céu, porém a “felicidade é brinquedo que não tem”.


“Anoiteceu, o sino gemeu
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel
Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem!
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem…”

Como escreveu Diego de Moraes (o Mascate):

“Boas Festas” expressava bem a contradição de Assis Valente, entre a piada e a depressão: homossexual em uma sociedade machista, negro em um país racista, ia ‘cantando, fingindo alegria’. Gravada em 1933, por Carlos Galhardo, com o acompanhamento dos Diabos do Céu – conjunto de Pixinguinha –, além de se tornar um grande sucesso popular, também revelava aquele talento, que depois diria: “Papai Noel não tinha vindo, mas eu havia ganho um presente: a melhor de minhas composições”.

(…) Ele sabia que nem todos são filhos de Papai Noel. A lenda do bispo São Nicolau (o bom velhinho que deixava um saquinho com moedas para os pobres) tinha sido, em 1931 (um ano antes de “Boas Festas”), usada em uma campanha publicitária, que também marcou o imaginário popular. Era a campanha natalina da Coca-Cola, que se utilizava da imagem do velhinho caridoso (criada por um cartunista alemão do século XIX) para espalhar pelo mundo o vermelho da empresa e um modo de vida. Este Papai Noel (bem definido pela banda punk Garotos Podres como “porco capitalista que presenteia os ricos e cospe nos pobres”) não podia trazer a felicidade para Assis Valente.

Desiludido com o Papai Noel (que “com certeza já morreu”), a partir de 1940, Assis assistia a queda do sucesso e a depressão se agravar. Em uma de suas tentativas de suicídio, se jogou do Corcovado; mas foi salvo pelos bombeiros, que tiraram-lhe de uma árvore. Nos anos 50, torna-se uma figura praticamente esquecida. Angustiado e solitário, protagonizava uma vida repleta de ironias e ambigüidades. Valente, aquele que cuidava de sorrisos em um laboratório de prótese dentária; que foi comediante de circo na infância; que fez tanta gente rir com seus sambas engraçados; que compôs a nossa trilha sonora da ceia de 25 de dezembro… decidia dar o fim em sua própria vida. O ano era 1958, o “ano da bossa nova” (ritmo que embalava a esperança dos tempos JK). Assis Valente se matava, ingerindo formicida com guaraná, no fim da tarde de 10 de março daquele ano. O Papai Noel da Coca-Cola não trouxe a felicidade. (MORAES, Diego.)

As contradições e ambivalências que tornam o cancioneiro de Assis Valente algo de tal potência imorredoura são também expressão do Brasil e suas fraturas. Por exemplo, a fratura ou o abismo que separa o sonho do que poderíamos ser (nossa utopia) e a catastrófica realidade do que de fato somos (nossa distopia real). Em seu livro Tem Mais Samba, Tárik de Souza destaca:

“Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”, cantou o mulato baiano segregado por sua homossexualidade dissimulada, numa época em que era pecado sambar diferente. Assis, que levava vida dupla para escapar do preconceito, fez a maioria de suas músicas no feminino exteriorizando uma anima alegre, proibida na vida real, através de vozes requebradas como a de sua principal cantora, Carmen Miranda.” (TÁRIK DE SOUZA, p. 51)

Tárik põe aí o dedo na ferida: a sociedade brasileira, mesmo diante de um compositor genial como Valente, praticaria a segregação que o isolou devido a um entrelaçamento de opressões: sua “mulatice” era vista como defeito aos olhos dos racistas fanáticos pelo “embranquecimento da raça”; suas origens humildes na Bahia, enquanto filho bastardo de um casamento inter-racial, não lhe granjeavam o gozo de privilégios de classe; e sua bissexualidade, em contexto social homofóbico, era obrigada a se dissimular e se resguardar no famoso armário.

Some-se a isto o vício que ele desenvolveu em relação à cocaína, que usava para combater sua depressão pegando uma carona rápida para a euforia quimicamente induzida, e seu caráter mão-aberta, de quem gastava dinheiro de maneira impensada com luxos e confortos, mas também com o auxílio a amigos necessitados, e temos uma receita para o desastre. Só agravada pela pecha de suicida fracassado, silenciado por uma sociedade que costuma relegar os que tentam se matar a uma posição de silenciamento, ou mesmo a um cárcere psiquiátrico enquanto “loucos” que não dizem nada que faça sentido.

Nos anos 1970, mais de uma década depois de seu suicídio, Assis Valente foi “em boa hora resgatado do esquecimento”, como contam Severiano e Homem de Melo em A Canção no Tempo, Vol. 2. Outra marca impressionante que Assis Valente deixou na cultura brasileira é o fenômeno chamado Acabou Chorare, a obra-prima que os Novos Baianos lançaram em 1972. Considerado um dos LPs mais importantes da história da MPB, ele nasce muito das confluências entre João Gilberto, o pai da bossa nova, com os Novos Baianos. Conta a lenda que foi João quem apresentou a obra de Assis Valente aos Novos Baianos, convencendo-os a regravar “Brasil Pandeiro”, faixa de abertura de um álbum também imorredouro.

O próprio título Acabou Chorore faz referência a um episódio cômico envolvendo Bebel Gilberto; ainda criança, Bebel teria inventado a expressão “acabou chorare” ao misturar português e castelhano “em razão do período em que viveram no México”: “um dia, ao levar um tombo e ver seu pai João Gilberto aproximar-se aflito para socorrê-la, a menina exclamou, engolindo o choro: ‘Acabou chorare, papai!'” (SEVERIANO, J; HOMEM DE MELO, Z. P. 193)

O álbum abriria com a célebre composição de Assis Valente que conclama: “está na hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor!”. O compositor usava o adjetivo “bronzeada” (e não “negra” ou “mulata”) pra se referir positivamente aos milhões de mestiços da terra brasilis, nação intensamente miscigenada, cheia de uma “gente bronzeada” que é boa no batuque. Lançada originalmente em 1941, em gravação da banda Anjos do Inferno, a música evoca pandeiros quentes batucando céleres em terreiros iluminados onde a gente gente bela e bronzeada se acaba sambar.

A canção brinca com a cultura brasileira sendo capaz de encantar o mundo: até o Tio Sam começa a inspirar-se conosco, transmutando sua própria cultura em contato com o samba afrobrasileiro. “Há quem sambe noutras terras, outras gentes, num batuque de matar”, menciona o compositor, referindo-se à diversidade rítmica e fazendo etnomusicologia em canção. Os versos podem também ser uma menção cifrada à Mama África, a seus batuques, seus lundus, seus sembas, que foram reavivados na América pelos africanos escravizados e seus descendentes libertos.

“Brasil Pandeiro”, obra prima do cancioneiro popular, não só aponta para uma ancestralidade e para um passado vivo – ou seja, para uma cultura do enraizamento. A música também aponta para o futuro e postula alternativas, em que a Casa Branca “dança com a batucada de iôiô iáiá”. Os EUA se prostram diante de nossos dons rítmicos. O samba torna-se cosmopolita e patrimônio da humanidade. A cultura brasileira ensaia aí planos de conquista planetária. E o baiano Assis promete que, um dia num futuro cujo advento ele busca acelerar, a cultura híbrida nascida das transas da Bahia com o Rio, metrópoles mescladas e confluentes, vai transfigurar o mundo em frutos de grande irresistibilidade rítmica e verbal.


“Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar
O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada
Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato
Vai entrar no cuzcuz, acarajé e abará
Na Casa Branca já dançou a batucada de ioiô, iaiá
Brasil, esquentai vossos pandeiros,
Iluminai os terreiros que nós queremos sambar!”

Em várias ocasiões, relatadas na biografia de Gonçalo Jr, Assis Valente denuncia ter sido vítima de racismo. Em suas canções, busca valorizar a “gente bronzeada” falando do “bronze que tem alma”, como faz em “Elogia da Raça”, gravada por Carmen Miranda. Nesta canção, dotada de ironias cáusticas, satiriza o viés dos racistas através de versos que lidam de maneira humorística com a genealogia da pele escura: “O Sol queimava tanto / E roupa não havia / Por isso é que o nêgo / Tem a pele tão queimada.”

Na determinação múltipla que o impeliu à auto-aniquilação, também entra na conta o fim de seu primeiro e único casamento. Assis Valente sentiu-se vítima de racismo por parte da família de sua esposa, com quem teve a filha Nara e de quem desquitou num processo triste e traumático. Desgostoso com os rumos que tomava a indústria cultural nos anos 1950, Valente não se afinava bem aos esquemas e maracutais vinculados ao jabaculelê – ou seja, o pagamento de propinas (jabá) para que os radialistas tocassem certas músicas.

Afundado em dívidas que o seu trampo com próteses não seria capaz de saldar, subindo e descendo nas gangorras do vício em cocaína, indo da euforia à fossa, preso nos armários aos quais uma sociedade homofóbica condena aqueles que estigmatiza como de “sexualidade desviante”, Assis Valente de fato cometeu o pecado de sambar diferente. “Depressivo”, “bipolar”, “ciclotímico”, de “tendências suicidas” – acumulam-se qualificações sobre sua psiquê atormentada. A mídia sensacionalista e a boataria maliciosa espalham, com suas más línguas, que o famoso compositor tinha relações homoeróticas com os aprendizes de seus cursos de próteses.

Empobrecido e no abandono, na sétima tentativa de suicídio ele pôde enfim deixar para trás um mundo imundo e cruel. Este cancionista de sensacional fertilidade e brilhantismo não conquistou a felicidade tão sonhada que costuma-se pedir ao Papai Noel ou ao Papai do Céu – estas duas fantasias análogas com que se embebedam crianças e adultos. Sempre pairará um véu de mistério sobre as íntimas engrenagens que levam um ser humano à auto-aniquilação. Mas não há dúvida, ainda mais depois da obra de Durkheim, de que o social impacta o íntimo e que, como dizem as feministas, “o pessoal é político”.

Seria reducionismo realçar somente as dificuldades financeiras como causa mortis de Assis Valente, ainda que ele, ao ingerir o guaraná com formicida na Praça Roussell, estivesse de fato num fundo-de-poço no que diz respeito à grana, com os credores pulando em sua carótida, ameaçado de perder seu laboratório e seu sustento. O próprio estigma do suicida fracassado, muito explorado pela mídia, impele a tentar um suicídio bem-sucedido. Na verdade, nossa sociedade não respeita o direito de morrer, trata o suicídio e a eutanásia como temas tabu, quando não lança os estigmas sobre quem decide se livrar de uma vida que se tornou demasiado angustiante para valer a pena.

Silenciados na morte assim como foram em vida, muitos suicidas que sobrevivem à tentativa de auto-supressão encontram, na realidade instituída, muitos concidadãos que trazem ouvidos moucos, que são surdos voluntários. As pessoas normais, por medo das verdades que podem ser anunciadas por aqueles que estiveram “nos cumes do desespero” (para evocar uma expressão de Cioran), botam cera nos ouvidos para, como novos Ulisses, não ouvirem o perigoso cântico sedutor da sereia Tânatos. Mas há os suicidas que ressoam mais fortemente na posteridade justamente pelo ato expressivo extremo envolvido na escolha da auto-aniquilação.

Este “baiano pré-tropicalista” que foi Assis Valente era dotado de uma “jovialidade trágica” – como diz o título da biografia escrita por Francisco Duarte e Dulcinéia Nunes Gomes. Dez anos após sua morte, Valente voltava a estar no epicentro de um furacão, tendo sua trágica jovialidade reativada pelos tropicalistas.

Era Dezembro de 1968 e o Brasil estava convulsionado: durante todo o ano, em sintonia com as conturbações na França, no México, na Tchecoeslováquia e alhures, as ruas do país tinham sido tomadas por manifestações contrárias à ditadura militar. A principal delas, a “Marcha dos Cem Mil”, havia tomado as ruas após o assassinato, pelas forças militares, do estudante secundarista Edson Luís no Calabouço. No segundo semestre, o Congresso da UNE em Ibiúna havia sido duramente reprimido e centenas de estudantes haviam sido presos. Nas ruas de São Paulo, em especial a Maria Antônia, universitários da USP e da Mackenzie transformavam a cidade em praça de guerra.

Na noite de 23 de Dezembro, os tropicalistas gravaram o programa Divino, Maravilhoso na TV Tupi em clima de muita tensão. Como lembra Carlos Calado, Caetano Veloso cantou a marchinha “Boas Festas”, “uma das preciosidades musicais do baiano Assis Valente, apontando um revólver engatilhado para a própria cabeça”:

“Aproveitando a atmosfera fraterna das festas de fim de ano, os tropicalistas resolveram afrontar mais uma vez a caretice da tradicional família brasileira em seu happening semanal pela TV Tupi. (…) Apesar da evidente brutalidade da cena, inspirada em Terra em Transe de Glauber Rocha, Caetano tinha uma explicação bem consistente. A imagem dramática de um suicida, cantando uma canção que ironizava o suposto espírito natalino, revelava também a essência da poesia de Assis Valente…

Por causa de provocações desse tipo, não era à toa que, logo nas primeiras semanas, já se comentava que Divino, Maravilhoso tinha seus dias contados. Além do ibope não ser dos maiores, o auditório da TV Tupo era frequentado por policiais à paisana, o que aumentava ainda mais o mal-estar dos tropicalistas. Principalmente após a decretação do AI-5, o medo aumento muito entre o elenco e a produção do programa. De algum modo, todos tinham consciência de que, a qualquer momento, poderiam ter problemas com a polícia ou mesmo sofrer um atentado. Afinal, Divino, Maravilhoso já nascera como uma mina, pronta para explodir… Em 28 de Dezembro, Caetano e Gil já estavam trancafiados em duas minúsculas celas de um quartel da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro. A aventura tropicalista custou caro aos dois parceiros.” (CALADO, pg. 251 – 253)

O episódio revela o quanto a Tropicália se sentia inspirada pela jovialidade trágica de Assis Valente. E também mostra que nenhuma tirania suporta bem a ironia tragicômica de artistas desajustados que ousam expressar sua diferença em relação ao instituído. Os anos de chumbo da ditadura militarizada tentariam quebrar a espinha dos artistas brasileiros que tinham a coragem de romper com o cerco da censura e do silenciamento – e alguns, como Torquato Neto, também sucumbiram à tentação do suicídio.

Mesmo morto, o espírito tragicômico de Assis Valente seguiu ecoando pelo Brasil, como um balão que sobe em toda festa de São João e que canta em toda época natalina, como a nos lembrar da sabedoria necessária que diz: nesta vida, é impossível viver só a delícia sem a desgraça, só a euforia sem a fossa. Nós, no Brasil, deveríamos saber melhor do que ninguém que estamos todos condenados à mescla. Tudo indica que a Terra será sempre o entrelaçamento, por vezes insuportável e outra vezes maravilhoso, de céu e inferno, inextricáveis em seu abraço.

Carli, Goiânia, Dez 2019

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALADO, CarlosTropicália – A História de Uma Revolução Musical.  São Paulo: Ed. 34, 2ª ed., 2010.

JUNIOR, GonçaloQuem Samba Tem Alegria: a Vida e o Tempo de Assis Valente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

MORAES, Diego. O suicídio de Assis Valente e o Papai Noel da Coca-Cola. On-line: A Casa de Vidro, Dez. 2017.

SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem deA Canção no Tempo, vol. 2: 1958 – 1985. São Paulo: Ed. 34, 6ª ed., 2015.

SOUZA, Tárik deTem Mais Samba – Das Raízes à Eletrônica. São Paulo: Ed. 34, 2ª ed., 2008.

OUTRAS LEITURAS SUGERIDAS

 

ESCUTE AÍ:

ASSIS VALENTE NÃO FEZ BOBAGEM – 100 ANOS DE ALEGRIA
(Coletânea – CD Duplo)

DOWNLOAD CD 1 – DOWNLOAD CD 2
(VIA MEDIAFIRE ACASADEVIDRO)


Tárik de Souza em Carta Capital / 21 dez 2011.

O compositor Assis Valente (1911-1958) teve uma vida trágica, mas perpetuou a alegria em sua obra. Alguns de seus melhores sambas e marchas estão no CD duplo Assis Valente não fez bobagem – 100 anos de alegria (EMI), entre releituras (CD 1) e gravações originais (CD 2).  No primeiro, Novos BaianosMaria BethâniaMaria Alcina, Martinho da Vila, Wanderlea, Marília Pêra, Isaurinha Garcia, Aracy de Almeida e outros mestres dão aula de ritmo e irreverência. Destaque para raridades como Um jarro d’água, na voz de MarleneRecenseamento, na de Ademilde Fonseca e o clássico Boas festas, com Doris Monteiro. Já no segundo, seus intérpretes mais constantes, Carmen Miranda e o Bando da Lua, se alternam com Dircinha Batista, 4 Ases e 1 Coringa, Orlando Silva, Carlos Galhardo e Moreira da Silva, na maioria em registros dos anos 30, auge da carreira do compositor. Vale ainda mencionar a qualidade técnica dessas gravações, apesar de tão antigas, e o fato de a maioria ser inédita no formato digital. O álbum acompanha uma mini-biografia escrita por mim, todas as letras e os anos originais de lançamento. Uma delícia! – Rodrigo Faour

 

VÍDEOS INTERESSANTES:

Clara Nunes, Elza Soares, Tássia Reis – Dose tripla de gênio na afrobrasilidade

CLARA

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Canto Das Três Raças

Compositor: Mauro Duarte E Paulo César Pinheiro

Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil

Um lamento triste
Sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro
E de lá cantou

Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
No Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou

Fora a luta dos Inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou

E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar
Canta de dor

ô, ô, ô, ô, ô, ô
ô, ô, ô, ô, ô, ô

ô, ô, ô, ô, ô, ô
ô, ô, ô, ô, ô, ô

E ecoa noite e dia
É ensurdecedor
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador

Esse canto que devia
Ser um canto de alegria
Soa apenas
Como um soluçar de dor.

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JOGO DE ANGOLA

No tempo em que o negro chegava fechado em gaiola,
Nasceu no Brasil, Quilombo e Quilombola.
E todo dia, negro fugia juntando a curriola.
De estalo de açoite, de ponta de faca e zunido de bala
Negro voltava pra Angola, no meio da senzala.
E ao som do tambor primitivo, berimbau, maraca e viola
Negro gritava: Abre ala! vai ter jogo de Angola

Perna de brigar, camará; Perna de brigar olê.
Ferro de furar, camará; Ferro de furar olê.
Arma de atirar camará; Arma de atirar olê olê

Dança Guerreira
Corpo do negro é de mola na capoeira
Negro embola e desembola
E a dança que era uma festa pro dono da terra
Virou a principal defesa do negro na guerra.
Pelo que se chamou libertação
E por toda força, coragem e rebeldia
Louvado será todo dia
que esse povo cantar e lembrar o jogo de Angola
da escravidão no Brasil

Perna de brigar, camará; Perna de brigar olê.
Ferro de furar, camará; Ferro de furar olê.
Arma de atirar camará; Arma de atirar olê olê!

Composição de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro.

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Ouça também:


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ELZAElza

A BANCA DO DISTINTO
de Billy Blanco

Não fala com pobre, não dá mão a preto, não carrega embrulho
Prá que tanta pose doutor?
Prá que esse orgulho?
A bruxa que é cega, esbarra na gente, a vida estanca
O infarto te pega doutor, acaba essa banca

A vaidade é assim, põe o tonto no alto, retira a escada
Fica por perto esperando sentada
Mais cedo ou mais tarde ele acaba no chão
Mais alto o coqueiro, maior é o tombo do tonto
Afinal, todo mundo é igual, quando o tombo termina
Com terra por cima e na horizontal

Não fala com pobre, não dá mão a preto, não carrega embrulho
Prá que tanta pose doutor?
Prá que esse orgulho?
A bruxa que é cega, esbarra na gente, a vida estanca
Trombose te pega doutor, acaba essa banca

A vaidade é assim, põe o tonto no alto retira a escada
Fica por perto esperando sentada
Cedo ou tarde ele acaba no chão
Mais alto o coqueiro maior é o tombo do coco afinal
Todo mundo é igual quando o tombo termina
Com terra por cima e na horizontal.

Ouça também:

HINO À IEMANJÁ:

“BELA, RECATADA E DO LAR?”

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TÁSSIA

Tássia

MEU RAP JAZZ de Tássia Reis

Eu fico sempre na moral
Mas sabe, más noticias abalam o meu astral
Eu tô legal, não tá ruim
Tô forte, tô viva tô bem longe do fim, acho né
Sempre levando uns toco, a vida dando uns soco
Há quem ache que é pouco mas não é
Mas nem ligo pros outro, quero chegar no topo
Loucura racha coco, sem ibope pra mané (hey)
Sem desperdiçar energia
Várias patifarias querendo me arrastar
Não dou ideia pra essas heresias
Sou de periferia tipo ruim de se enganar
Mas deixa os bicos zoar, ninguém vai assumir
Mas todos querem brilhar
Minha intuição quer cantar, tira um segundo pra ouvir
Que eu não costumo falhar

Ideia zoada nem consta, nem pago pra mostrar
Direto e na fuça e sem blá blá blá
Num flow que assusta, ie ie ie meu rapjazz

Sem mimimi, zumzumzum, zé fini aqui é clack bum
Menos enrolação e mais ação
Mais participação e mais ação
Menos falação e mais ação
Faladores falam muito, eu não
Não tenho tempo a perder, quero vencer por mim
E lutar por você
Se depender de mim, vou merecer
O respeito que aprendi que devo lutar pra ter
Isso me fez fortalecer, desenvolver
Se não fosse sagaz, tava em outro role
Pra você ver, pra você ver
Luz para o ser, que batalha, trabalha
E não falha no seu proceder
Deus sempre vê, quem é aliado e quem tá de papo furado
Querendo pagar de ser… aah
Deixa estar, deixa se crescer
O tempo é quem vai poder dizer
Não faço nada mais que respeitar meus pés
Eu vivo o meu rapjazz

Ideia zuada não consta, nem constará
Quem é é, quem não é nunca será
Conversa fiada não rola, nem rolará
Quem é é, quem não é nunca será…”

MARXISMO SEM DOGMATISMO – Explorações do pensamento de Leandro Konder (1936-2014)

MARXISMO SEM DOGMATISMO: EXPLORAÇÕES DA OBRA DE LEANDRO KONDER
por Eduardo Carli de Moraes

Estou a cada dia mais convicto de que é plenamente possível abordar o marxismo de maneira fecunda, sem qualquer dogmatismo, não fazendo da doutrina um sinônimo de catecismo ou uma verdade absoluta: ao invés de ser a proclamação de verdades indiscutíveis, o legado marxista pode nos convidar ao salutar exercício crítico permanente, na dialética entre a denúncia e o anúncio de que fala Paulo Freire.

Visto deste viés, o marxismo é uma ferramenta de muito valor para uma autêntica “leitura do mundo”, atenta à totalidade e capaz de enxergar os links entre o econômico, o político, o cultural, de modo que, como o filósofo francês Jacques Derrida, será sempre “um erro não ler Marx” – pois então perderíamos a chance de ler corretamente a realidade, que sua obra desvela e revela em toda a sua complexidade.

O real, porém, não está aí apenas para ser “lido”, mas sim para ser refeito, transformado, revolucionado! É o que diz Marx em uma das mais célebres das Teses Contra Feuerbach: não devemos jamais nos limitar a ler e interpretar o mundo, já que isto é apenas a pré-condição para a tarefa da transformação emancipatória do mesmo. 

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Na obra de um pensador como Leandro Konder (1936 – 2014), tenho descoberto um excelente exemplo na intelectualidade brasileira de um marxismo exercido com graça e brilhantismo, sem apego a dogmas, despreocupado com os juízes da ortodoxia que, com seus “marxímetros” em mãos, pretendem bater o martelo sobre as manifestações autênticas ou deturpadas daqueles que seguem as pegadas de Marx. Os artigos breves reunidos no livro O marxismo na batalha das ideias (Ed. Expressão Popular) revelam um autor muito culto, de texto sagaz e cheio de vida, exercitando uma escrita que jamais esquece que a crítica realmente frutífera não pode jamais esquecer do processo permanente de auto-crítica.

O “espírito auto-crítico” que Konder reivindica está presente em algumas das figuras mais importantes que integram o vasto campo do pensamento marxista – como Engels, Gramsci, W. Benjamin, Paulo Freire, dentre tantos outros. O próprio Marx jamais foi um proclamador de peremptórios dogmas a serem aceitos por leitores-cordeiros ou por ativistas-obedientes, e chegou mesmo a declarar que, “se tivesse de adotar um lema, seria a frase latina que recomendava duvidar de tudo: de omnia dubitandum.” (KONDER, op cit, p. 57)

Só através do autoquestionamento radical é que podemos superar tudo o que há de conservadorismo, preconceito de classe, estreiteza de visão e apego identitário irracional em nossas próprias interioridades. Autocrítica, no entanto, é diferente de autodepreciação: Konder não está jamais sugerindo que o sujeito se torture com o cilício, que se recuse a reconhecer seu devido valor, numa mortificação-de-si bem ao gosto do ideal ascético tão fustigado por Nietzsche. Poderíamos até mesmo aproveitar o modelo de Aristóteles na Ética a Nicômaco e dizer que a virtude, no que diz respeito ao amor-próprio, não está nem na arrogância narcísica (vício por excesso) nem na auto-humilhação de quem só sabe fustigar seu próprio self (vício por escassez), mas sim na lúcida apreciação de si e no apreço justo do próprio eu:

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“O apreço por si mesmo é importante para todo ser humano: se não gostar de si mesma, nenhuma pessoa conseguirá gostar saudavelmente de outra; se não acreditar de fato em suas convicções, não conseguirá comunicá-las a outras pessoas, não conseguirá intervir no mundo, contribuindo para melhorá-lo. A partir de um determinado nível, contudo, a auto-estima fica sobrecarregada de narcisismo e acarreta uma atrofia conservadora da autocrítica.

Podemos então deixar de lado as condenações moralistas – inócuas – do narcisismo. Elas são antigas e apresentam escasso interesse teórico. O problema que merece a nossa preocupação é outro: é aquele que se manifesta no efeito conservador da autocomplacência, que coagula o movimento auto-renovador da consciência, enrijecendo-lhe o ímpeto criativo e a abertura para o novo. (…) É provável que a estrutura da mente humana seja muito mais conservadora do que costumamos reconhecer. Renovar-se, reformular suas idéias, modificar seus valores, é operação dolorosa e arriscada.

(…) A verdadeira autocrítica exige uma espécie de “complementação negativa” para o curriculum vitae: depois de apregoar seus êxitos e seus méritos, a pessoa enfrenta o desafio de reconhecer suas frustrações, suas deficiências, seus fracassos, suas fraquezas. Talvez possamos chamar essa reconstituição dolorosa e necessária de curriculum mortis. Os indivíduos mais gravemente contaminados pela ideologia “triunfalista” que se manifesta no curriculum vitae carecem de sensibilidade, de madura lucidez e de coragem intelectual para a elaboração desse curriculum mortis.

Querendo ou não, cada um de nós caminha inexoravelmente para a morte (e o prestidigitador não escapa a esse destino). Reconhecendo francamente nossos fracassos, elaborando nosso curriculum mortis, assumindo autocriticamente os momentos “noturnos” em que vamos morrendo aos poucos, aumentamos as nossas possibilidades de nos conhecermos e de nos aperfeiçoarmos espiritualmente; e, de certo modo, esse talvez seja o único caminho possível de preparação para o fim pessoal inevitável. Quem insiste em se iludir, na realidade, está optando por enfrentar despreparado todas as dores que lhe vão desabar em cima, na hora da desilusão.” (KONDER, 2009, op cit, p-58-59)

Satirizando a ostentação presente em muitos dos atuais currículos profissionaisKonder escreve, em seu saboroso artigo de 1983 “O Curriculum Mortis e a Reabilitação da Autocrítica”

“Para obter um emprego, para conseguir uma promoção, fazer carreira, o sujeito precisa exibir suas qualidades, ostentar seus êxitos. Já existem até manuais que ensinam o cidadão a preparar seu curriculum vitae. A trajetória ascensional de cada um depende dessa peça de literatura, que lembra as antigas epopeias, porque nelas o protagonista – o herói – só enfrenta as dificuldades para poder acumular vitórias. Os obstáculos servem apenas para realçar seu valor. O passado é reconstituído a partir de uma ótica descaradamente “triunfalista”.

Evidentemente, trata-se de uma imagem que não corresponde à realidade. Em sua imensa maioria os seres humanos não são campeões invictos, não são heróis ou semideuses. Se nos examinarmos com suficiente rigor e bastante franqueza, não poderemos deixar de constatar que somos todos marcados por graves derrotas e amargas frustrações. Vivemos uma vida precária e finita, nossas forças são limitadas, o medo e a insegurança nos frequentam; e nada disso aparece no curriculum vitae de cada um de nós.

O curriculum vitae é a ponta do iceberg: ele é o elemento mais ostensivo de uma ideologia que nos envolve e nos educa nos princípios do mercado capitalista; é a expressão de uma ideologia que inculca nas nossas cabeças aquela “mentalidade de cavalo de corrida” a que se refere a escritora Doris Lessing (1919 – 2013). Não devemos confessar o elevado coeficiente de fracasso de nossas existências, porque devemos ser “competitivos”. Camões, o genial Camões, autor de tantos poemas líricos maravilhosos, não poderia colocar em seu curriculum vitae o verso famoso: “Errei todo o discurso dos meus anos”.

A ideologia que se manifesta no curriculum vitae, afinal, aumenta as nossas tensões internas, porque nos dificulta a lucidez e a coragem de assumir o que efetivamente somos; nos obriga a vestir o uniforme do “super-homem”, a afetar superioridades artificiais. Além disso, ela incita à mentira, gera hipocrisia. Por sua monstruosa unilateralidade, a imagem do vitorioso, que ela nos obriga exibir, empobrece o nosso conhecimento de nós mesmos, prejudica gravemente a sinceridade da nossa auto-análise.” (KONDER, 2009, p. 53-54, Leia o artigo na íntegra)

crítica é uma arma que pode e deve incidir tanto sobre o mundo objetivo quanto sobre o âmbito das subjetividades, o que abre um vasto horizonte interdisciplinar: é possível pensar nas interlocuções e interconexões entre psicologia, sociologia, história, filosofia, antropologia, economia, de modo a revelar, no marxismo depurado de dogmatismo, um valioso aliado para o esforço humano rumo à verdade factual, esta complexa e multifacetada entidade que é o télos da busca de qualquer intelectual autêntico. Inspirado por Walter Benjamin, Konder dirá também que não podemos de modo algum depreciar a importância do passado: o que passou continua sendo um campo-de-batalha!

Walter Benjamin“Benjamin tem uma visão agudamente crítica daquilo que a história da  luta de classes ‘cristalizou’ na tradição: o legado que nós recebemos, segundo ele, está profundamente marcado por ‘expurgos’ promovidos pelos opressores, por exigências reprimidas, pelas esperanças dos oprimidos que foram sufocadas. À consciência revolucionária cabe reexaminar o passado, resgatando nele o que foi mutilado; cabe-lhe, como diz Jeanne Marie Gagnebin – ‘arrebatar ao esquecimento a história dos vencidos’. Além de recuperar a memória do que aconteceu, a dialética revolucionária, nas palavras do próprio Benjamin, ‘provoca a explosão da carga de dinamite que ficou depositada no passado.'” (KONDER, op cit, p. 74)

Em outro artigo brilhante, O Novo Conteúdo Político do Direito ao Prazer, Leandro Konder demonstra uma capacidade incrível de ir ao passado distante – por exemplo, à obra dos filósofos materialistas antigos Demócrito e Epicuro, a quem Marx dedicou sua tese de doutorado – para discutir candentes problemas do presente.

Partindo do senso comum, que atribuiu à palavra “epicurismo” uma carga negativa, como se “epicurista” fosse sinônimo de “devasso”, “libertino”, “libidinoso”, alguém que despreza todo tipo de freio moral ou escrúpulo ético em sua busca desenfreada por orgias e bebedeiras, Konder mostra que esta (má) representação é intriga da oposição e difamação. Como Konder aponta com razão:

“Tudo indica que Epicuro foi apenas uma vítima das calúnias de seus adversários. Documentos dignos de fé comprovam que ele era um cidadão sóbrio e recomendava aos discípulos que, antes de procurar satisfazer um desejo, verificassem se valia a pena, quer dizer, se os aborrecimentos não seriam, afinal, maiores do que as vantagens. Segundo Epicuro, os prazeres da inteligência eram, sem dúvida, preferíveis aos prazeres proporcionados pelos sentidos, justamente porque proporcionavam aborrecimentos menores. Epicuro era materialista; por isso, causava irritação entre os filósofos estoicos, seus adversários, inimigos do materialismo. Alguns estoicos mais equilibrados – como o filósofo e dramaturgo Sêneca – reconheciam que Epicuro era pessoalmente um sujeito virtuoso.” (KONDER, op cit, p. 137)

O que Konder revela em seu artigo são os nexos entre esta polêmica antiga – que opôs o ethos materialista-hedonista às doutrinas bem mais ascéticas dos estóicos e dos primeiros cristãos – com uma polêmica bastante atual e da qual os marxistas não podem se esquivar: vivemos hoje em um mundo onde existe, escreve Konder, uma “colossal indústria dos prazeres”, “capaz de alcançar um amplíssimo público consumidor”, e que marca forte presença nas sociedades urbanas e industrializadas do Ocidente atual. “A busca do prazer é habilmente explorada por poderosos mecanismos comerciais. Na corrida ao lucro, se difunde por toda a sociedade um espírito imediatista e hipercompetitivo: todos são incitados a extrair, no menor tempo possível e com o mínimo esforço, o máximo proveito de todas as situações.” (p. 139)

Teria sido o hedonismo completamente cooptado pelo capitalismo globalizado e pela hegemonia das “sociedades de consumo”? Ou ainda é possível fundamentar no prazer uma política radicalmente libertária? Se, por um lado, vivemos em um meio social saturado de iscas para o consumismo, em outdoors e anúncios de TV, por outro será que é legítimo desprezar o “direito ao prazer” como pauta reacionária e reivindicação exclusivamente capitalista-neoliberal? Não seria possível reinventar o hedonismo enquanto ética para desatrelá-lo do consumismo irresponsável e perdulário, recuperando o potencial libertário da obra de autores como Wilhelm Reich e Herbert Marcuse?

“De fato, ao longo da história, até muito recentemente, as teorias de legitimação filosófica do prazer sempre foram aproveitadas pelos setores privilegiados da sociedade, pelas minorias que dispunham dos meios necessários para levar uma vida de prazeres. Na Ideologia Alemã, há uma passagem na qual Marx – em 1846 – escreveu: ‘A filosofia do prazer sempre foi apenas a linguagem espiritual de determinados círculos que, dentro da sociedade, dispunham de condições privilegiadas para a obtenção do prazer.’ O hedonismo, portanto, não passava – a seu ver – de uma ideologia oportunista.” (KONDER, op cit, p. 140)

No entanto, seria uma distorção fazer de Marx uma espécie de rigoroso pregador do ascetismo, cheio de condenações contra aqueles que buscam o prazer: tanto o imenso apreço que Marx possuía por Epicuro quanto o seu ideal de uma sociedade que contribuísse para a formação “onilateral” do ser humano apontam para uma filosofia que não despreza o ingrediente do gozo no complexo emaranhado das condições para a emancipação humana.

Assim como o epicurismo antigo sofreu com a distorção imposta pelas difamações da oposição, é possível que também o marxismo tenha adquirido, para muitos, uma “configuração ascética” que não faz justiça à complexidade de uma visão-de-mundo que procura sim emancipar o prazer, porém realizando uma severa crítica do entrelaçamento sórdido, atualmente não só vigente como agudamente hegemônico, entre o hedonismo e a doutrina capitalista do consumismo individualista competitivista.

“O mercado fabrica egoístas, que se revelam com frequência na cama e na mesa. A sensibilidade deseducada, deformada, passa a atribuir uma importância menor aos prazeres plenamente partilhados e uma importância maior aos prazeres obtidos na contenda com os outros, eventualmente na negação dos prazeres alheios. As condições de competição extremada em que vivemos geram muita insegurança e ansiedade em nossas almas, enfraquecem nossa autoconfiança. O dinheiro relativiza corruptoramente todos os valores.

(…) O prazer é uma dimensão importantíssima da vida; mas a vida não pode ser reduzida a uma só das suas dimensões. Em suas formas superiores, o prazer depende de outras dimensões da realidade humana, como o conhecimento e o amor. O escritor francês Marcel Proust dá o exemplo do homem apaixonado pelo canto dos pássaros: enquanto nós, na floresta, só conseguimos distinguir uns poucos sons, seu ouvido educado se deleita com uma imensa variedade de gorjeios. 

Epicuro já sabia que o prazer é um mundo vastíssimo e bastante diferenciado internamente: há prazeres inteligentes e prazeres burros. Marx, que era um grande admirador de Epicuro, poderia ter retomado essa observação lúcida e materialista; poderia tê-la desenvolvido, à luz da sua concepção do homem, reconhecendo que há prazeres que nos animalizam e prazeres que nos humanizam. ” (KONDER, p. 141)

Decerto que o tema do prazer não é o foco de Marx, tão engajado ele está na tarefa de emancipar os homens da opressão e da exploração que sofrem no mundo do trabalho. Mas não é evidente que o movimento comunista tendia à concretização de uma sociedade onde a abolição da divisão classista conduziria a uma ampliação das possibilidades de gozo na existência já que nos libertaria do trabalho mecânico, especializado, repetitivo?

Marx, com certeza, não era um utopista ingênuo e despejava sarcasmo contra os romantismos de certos socialistas utópicos: “O trabalho, disse Marx, não pode se converter em brincadeira como quer Fourier.” Konder explica: “há no trabalho uma dimensão de disciplina, imposta pelo interesse coletivo da produção, pelas exigências técnicas da produção,  uma dimensão que não se harmoniza e nunca se harmonizará inteiramente com a gratuidade dos movimentos lúdicos individuais. Há algo no trabalho que manifesta uma insuprimível dureza na vida.” (p. 142)

Porém, é óbvio que Marx sempre lutou para “humanizar cada vez mais as condições de trabalho”, inclusive suprimindo a injustiça que consiste na cisão entre uma classe de proprietários de meios de produção, com privilégio do gozo e da preguiça, e uma classe de trabalhadores explorados, espoliados dos frutos de seu labor e obrigados a um cotidiano cinzento onde quase não há oportunidade, no “tempo regulamentar”, para as ações daquilo que Huizinga chama de homo ludens. 

“Por isso, é sobre o encaminhamento de soluções para os problemas do trabalho que precisa se apoiar a política que corresponde aos anseios mais profundos da massa dos trabalhadores, e por isso não tem sentido procurar fundar uma política – isto é, uma ação coletiva, conjugada, visando a efeitos imediatos e efeitos duradouros – sobre o desejo, tal como propõem alguns neoanarquistas contemporâneos. Marx não ignora, contudo, que não basta aos homens desenvolverem suas forças produtivas para se libertarem. No 3º volume d’O Capital, Marx explicou com muita clareza: ‘O reino da liberdade só começa, na realidade, onde deixa de existir o trabalho imposto pela carência, pela necessidade exterior. (…) A redução da jornada de trabalho é a condição fundamental do reino da liberdade.'” (KONDER, p. 143)

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O reino da liberdade, que o movimento comunista procura instaurar, revoluciona o mundo do trabalho também para superar a gritante injustiça vigente também no que tange aos prazeres: na sociedade que terá abolido a divisão classista do trabalho, com a cisão entre, de um lado, a massa proletária, oprimida e fatigada pelo excesso de labor e pelas péssimas condições de vida, e, de outro lado, a minoria de capitalistas vastamente ociosos e que contam cédulas e acumulam capital de “papos pro ar”, emergeria um novo contexto social onde é legítimo esperar uma espécie de “democratização do gozo”.

Konder defende um marxismo que possa ser libertário também no âmbito ético, honrando suas fontes epicuristas antigas, e critica “os marxistas que indulgem em proclamações moralistas e intolerantes” e “chegam a ‘demonizar’ a ‘decadência’ e a aprovar medidas de repressão contra os que manifestam ‘desvios’ (?) de comportamento sexual. Com isso, aplicam em ‘cruzadas’ contra os ‘libertinos’ as energias que deveriam ser empregadas na luta contra os adversários realmente poderosos do processo revolucionário.” (KONDER, p. 142)

A denúncia de uma sociedade que impõe a desumanização e a opressão aos trabalhadores une-se, em Marx, ao anúncio de um outro mundo possível, onde todos os seres humanos possam desenvolver suas potencialidades de modo onilateral, ao invés de serem reduzidos a robôs que realizam tarefas mecânicas e repetitivas. Longe de ser um pregador do ascetismo auto-mortificante, Marx é fiel ao epicurismo que lhe inspirou desde a juventude, porém conecta o hedonismo muito mais a uma ética da partilha e da colaboração do que a uma lógica da competição e da contenda.

A auto-crítica, tão louvada por Konder, deve incidir também sobre nossas tendências, condicionadas pelas ideologias hegemônicas, de caçar o prazer no consumo e nos triunfos dúbios das vitórias individuais (“eu contra todos”).

Assim podemos nos purgar de um hedonismo narcísico e egóico, abraçando um hedonismo solidário, transsubjetivo e autenticamente epicúreo, aquele que tem a sabedoria e a lucidez de preferir os prazeres de partilha, os gozos do conhecimento e os êxtases do amor ao invés de todas as sensaborias vendáveis e quinquilharias estúpidas que se encontram em promoção pelos supermercados de um capitalismo moribundo.

Ousemos, pois, construir uma realidade social, política e econômica que tenha por meta uma felicidade comum e partilhada, um direito ao prazer que não seja privilégio mas direito a todos facultado. Deste modo, um marxismo hedonista libertário é plenamente pensável e possível como antídoto à “colossal indústria de prazeres” que hoje nos deseja como súditos de seus engodos industrializados.

Ousemos gozar os prazeres da solidariedade, os êxtases do engajamento em um destino comum, as delícia dos intercâmbios (intelectuais, artísticos, afetivos, sexuais, festivos…), ao invés de investir neste falido modelo do capitalismo vigente que, como um falso profeta que prega nas propagandas, indica-nos apenas o caminho do abismo da solidão. Para além da massificação da lógica dos indivíduos atomizados e auto-interessados, em competição feroz e ostentação vã, afirmemos uma filosofia, perfeitamente conjugável com o marxismo e o epicurismo, que atente ao fato de que feliz é quem partilha e não quem possui.

“Happiness is only real when shared.”
(McCandless)

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SAIBA MAIS:

BIOGRAFIA (via Boitempo): 

Leandro Konder nasceu em 1936, em Petrópolis (RJ), filho de Valério Konder, médico sanitarista e líder comunista. Formado em Direito, Leandro exilou-se em 1972, após ser preso e torturado pelo regime militar, e morou na Alemanha e depois na França até seu regresso ao Brasil em 1978. Doutorou-se em Filosofia em 1987 no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Foi professor do Departamento de Educação da PUC-RJ e do Departamento de História da UFF. Tem vasta produção como conferencista, articulista de jornais, ensaísta e ficcionista. Em 2002 foi eleito o Intelectual do Ano pelo Fórum do Rio de Janeiro, da UERJ. Um dos maiores estudiosos do marxismo no país, coordenou, em conjunto com , a coleção Marxismo e Literatura, da Boitempo. Konder sofria de Mal de Parkinson e faleceu em sua casa na tarde do dia 12 de novembro de 2014.
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VÍDEOS:

A NECESSIDADE DA FILOSOFIA

Parte 2Parte 3Parte Final

O FILÓSOFO QUE SONHA (UniRio)

A ATUALIDADE DE MARX

ALGUNS LIVROS DO AUTOR EM CATÁLOGO:

ED. BOITEMPO:

9788575590942

“Eis as estrelas que não estão nem aí para você ter ou não estado aqui… Meu velho, é isso aí.” (Brodsky)

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Joseph Brodsky (1940-1996), Prêmio Nobel de Literatura em 1987

CANÇÃO DE BOAS-VINDAS
Tradução de Mário Sérgio Conti

Eis sua família, sua mãe, seus pais, seus avós.
Bem-vindo a esse sangue, esses ossos.
Por que você perdeu a voz?

Eis sua comida, eis sua bebida, eis o jantar.
E uns pensamentos, se quiser pensar.
Bem-vindo ao lar.

Eis sua estrada da vida quase virgem
Bem-vindo a ela, a essa miragem.
Mesmo assim, boa viagem.

Eis seu aluguel, eis seu pagamento.
O dinheiro é o quinto elemento.
Bem-vindo ao investimento.

Eis sua colmeia, o enxame, multidões.
Bem-vindo a tantas populações:
Você é um em cinco bilhões.

Bem-vindo à lista telefônica onde reluz seu nome.
Numa democracia, um dígito é um homem.
Bem-vindo à busca de renome.

Eis seu casamento, e eis um divórcio todo seu.
E agora os erros irreversíveis que cometeu.
Bem-vindo, você se fodeu.

Eis você com a lâmina junto à jugular.
Bem-vindo, autoterrorista singular,
Ao seu Oriente Médio particular.

Eis seu espelho, eis sua pasta de dentes.
Eis o polvo no seu sonho recorrente.
É seu esse grito de demente?

Eis o sofá, a TV, o debate sobre a crise.
Eis seu candidato falando cretinice.
Bem-vindo ao que ele disse.

Eis sua varanda, o carro que passa apressado.
Eis seu cachorro cagando na sala, folgado.
Bem-vindo ao seu olhar culpado.

Eis as cigarras e eis um pássaro piando à tarde.
A lágrima que pinga no seu chá pela metade.
Bem-vindo à eternidade.

Eis sua radiografia com uma mancha no pulmão.
Bem-vindos os comprimidos para o coração.
Bem-vindo seja você à oração.

Eis sua tumba, o cemitério que se estende além.
Bem-vindas as vozes que dizem “Amém”.
É o fim para você também.

Eis seu testamento, mas ninguém o lê.
Eis sua missa, mas rezar quem há de?
Eis a vida sem você.

E eis as estrelas que não estão nem aí
Para você ter ou não estado aqui.
Meu velho, é isso aí.

Eis que não sobrou nada do seu passo.
Da sua face não ficou traço.
Bem-vindo ao espaço.

Bem-vindo, aqui não se respira.
No espaço aberto tudo expira.
Só Saturno segura a pira.