“Saúde Psíquica e Convivências Familiares na Era do Coronavírus” (LIVE @ A Casa de Vidro, 02/05/2020, 15h)

A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com) realizou no Sábado (02/05/2020), às 15h, o webdebate “Saúde Psíquica e Convivências Familiares na Era do Coronavírus”. Nossas convidadas foram Beatriz de Paula Souza e Francine Rebelo. Mediação: Eduardo Carli de Moraes. Assista à live no canal do Youtube d’A Casa de Vidro Ponto de Cultura ou pelo site www.acasadevidro.com. Conheça as debatedoras:

FRANCINE REBELO é Cientista Social e Antropóloga, atualmente doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professora, militante por uma educação gratuita e de qualidade, feminista e mãe do Raul.

BEATRIZ DE PAULA SOUZA é Psicóloga e Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IPUSP, onde coordena o Serviço de Orientação à Queixa Escolar, do Laboratório Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar – LIEPPE. Organizadora das coletâneas “Orientação à Queixa Escolar, Medicalização de Crianças e Adolescentes” e autora do livro “Histórias de Educação”, além de artigos e capítulos de livros de Psicologia na interface com a Educação. Uma das fundadoras do GIQE (Grupo Interintitucional Queixa Escolarhttps://www.queixaescolargiqe.com/) e do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, associada à Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional – ABRAPEE.

EDUARDO CARLI DE MORAES é jornalista formado pela UNESP e filósofo formado pela USP; mestre em Ética e Filosofia Política pela UFG, atua como professor do Instituto Federal de Goiás (IFG), câmpus Anápolis. Criador e coordenador d’A Casa de Vidro – Ponto de Cultura e Centro de Mídia Independente (www.acasadevidro.com), em atividade na Internet desde Novembro de 2010.

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Assista no Canal do Youtube d’A Casa de Vidro:
https://www.youtube.com/channel/UCrs5xa4CQkJob9A78rnq6rA

1º BLOCO

Veja gravação na íntegra sem edições:

ACESSE ROTEIRO NORTEADOR DO DEBATE

Obs: A ilustração utilizada na criação do poster é de autoria de Agata Nowicka / publicada originalmente em BuzzFeed News.


PAUTA TEMÁTICA – ROTEIRO

1) Quais seriam os principais efeitos do confinamento sobre a psiquê humana? E, em específico, o que significa para as crianças estarem confinadas no espaço doméstico, sem escola nem parquinho? Livros como “Desemparedamento da Infância” e sites como criançaenatureza.org apontam a importância, para o desenvolvimento são das crianças, dos espaços abertos, das brincadeiras na natureza, da exploração do território mais amplo etc. Em suma: na perspectiva da psicologia e da antropologia, quão importantes são o movimento e a ação no aprendizado vital infantil? Que autores vcs conhecem que refletiram sobre isso? (Winnicott? Pediatras da S.B.P.?) 

2) Sofrer é inerente à vida e oportunidade de aprendizado. Porem vivemos um período onde o adoecimento psíquico e tende a aumentar a busca por amparo e tratamento, com a ascensão de condições de transtorno de ansiedade, depressão, tendências suicidas, melancolia vinculada à falta de sentido da vida etc. Ao mesmo tempo, vivemos em uma época altamente farmacológica – desnudada por autores como Paul Beatriz Preciado (Testo Junkie) ou Robert Whitaker (Anatomia de Uma Epidemia).

Diante do sofrimento psíquico, tendemos a apelar para os remédios psicotrópicos. O que vcs pensam disso? É aceitável, no contexto, o uso massivo e o incremento na comercialização de soníferos, ansiolíticos, antidepressivos? Ou vcs ainda preferem e recomendar psicoterapias como a Psicanálise (cura pela fala), Logoterapia (proposta por Viktor Frankl), Gestalt, Cognitiva-Comportamental, Corporal (Wilhelm Reichiana), meditação e yoga etc.?

3) Outra complicação que o isolamento social imposto pela pandemia traz, como apontam muitos pesquisadores e já foi relatado em várias reportagens, é a dificuldade nas convivências familiares – os índices de violência doméstica, sobretudo feminicídios, estupros, episódios de homofobia, filhos maltratados por agressões de parentes. A jornalista Eliane Brum recentemente pesquisou e escreveu sobre suicídios juvenis em alta na cidade mais violenta do país, Altamira (Pará). Francine, como estudiosa da obra de pensadoras como Silvia Federici, o que você pensa sobre a condição feminina, o trabalho não remunerado, a opressão de gênero e a masculinidade tóxica neste contexto? Precisamos de feminismo, interseccionalidade e descolonização em tempos pandêmicos?

4) O contexto pandêmico implicou a suspensão das atividades escolares: isto faz com que os pais valorizem mais o trabalho de educadores que cuidam, instruem e favorecem o desenvolvimento psíquico e cognitivo de seus filhos? Como vocês prevêem que será a volta às aulas? Beatriz leu em vídeo prévio um texto interessante que reivindica para as crianças o direito a “uma semana de anarquia”, em que pudessem correr, pular, dançar, cantar, rolar na grama, sem que os educadores impunham “conteúdos” para “correr atrás do prejuízo”. O que vcs recomendariam aos educadores para que possam lidar com as crianças que estão saindo do período de isolamento? Que traumas e confusões crianças e adolescentes podem trazer para o contexto de volta às aulas que não existiam antes da interrupção pandêmica das atividades escolares?

5) Em belo seriado televisivo recente, “Kidding” (estrelado por Jim Carrey), surge uma questão pertinente: o protagonista é um âncora de TV que tem uma alta audiência com seu programa infantil de marionetes (puppet time), porém sofre um trauma familiar severo: seu filho criança morre em um acidente de trânsito. Boa parte da série lida com os traumas desta família dilacerada pela perda, mas também pelo dilema: como é possível conversar sinceramente com as crianças sobre aspectos da condição humana como a morte, a doença, o luto, a perda de alguém amado que não retornará? Como os mais velhos podem dialogar com as crianças e jovens no sentido de dizer a verdade sobre isto, e o quanto devem omitir ou “dourar a pílula” com a intenção de proteger o outro do sofrimento excessivo?

6) Por fim, gostaria de saber como vocês reagem a uma frase de um místico indiano chamado Krishnamurti: ele diz que “não é sinal de saúde estar bem-adaptado a uma sociedade doente.” Também no mesmo espírito: “Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: Vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas ajuizadas. É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade…”, diz Nise da Silveira. Neste sentido, como diz Ailton Krenak, não devemos desejar um “retorno à normalidade”, pois ela era o problema, estar conformado àquilo era um modo de estar neurótico. Diante disso, vocês acham que precisamos aprender sobre saúde mental com outros povos e outras culturas, com indígenas, quilombolas, ribeirinhos? Com os orientais, os budistas, os taoístas, os yoguis? É verdade que nossa sanidade psíquica e nossas convivências familiares serão melhores quanto mais formos inconformados diante da sociedade atual, quanto mais estivermos mais mal-adaptados a esta sociedade adoecida?  


 

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OUTRAS LEITURAS RECOMENDADAS:

O Caso Wilhelm Reich – Como um dos melhores decifradores da Psicologia de Massas do Fascismo terminou a vida detrás das grades nos EUA da Guerra Fria

1. A INCOMPREENDIDA REVOLUÇÃO PSICOTERAPÊUTICA E POLÍTICA DE WILHELM REICH

Nos EUA dos anos 1950, em plena Caça às Bruxas da Guerra Fria, época em que estava vigente uma insana Cruzada Anti-comunista na YankeeLândia, os livros de Wilhelm Reich (1897-1957) foram censurados e queimados.

Não só as palavras que escreveu foram reduzidas à cinzas no auto-proclamado Paraíso da Democracia Liberal, mas o próprio autor delas foi encarcerado. Fulminado por uma ataque cardíaco em Novembro de 1957, um dos mais brilhantes psicoterapeutas do século 20 morreu no cárcere. A história, em minúcias, tornou-se filme, documentário e livro (como aquele escrito por Robert Anton Wilson, “Wilhelm Reich no Inferno”).

Sua história de vida é fascinante: o médico, psicanalista e cientista nascido no Império Austro-Húngaro (sua cidade natal Dobzau hoje é parte da Ucrânia) foi um dos mais importantes dentre os primeiros colaboradores de Sigmund Freud, o fundador da Psicanálise.

Ao invés de erguer barricadas contra a nova teoria, como fez a sociedade “respeitável” da época, que estava horrorizada com a tese de uma sexualidade infantil polimorfa e com a hipótese de que as neuroses tinham como causas os conflitos mal resolvidos do sujeito com sua libido, W. Reich não deixou os pudores do puritanismo lhe cegarem ou impedirem seu trabalho em prol “do amor, do trabalho e do conhecimento”, “as fontes de nossa existência” e que sempre “deverão regê-la” (em A Função do Orgasmo, p. 19). Era este seu lema, seu mantra.

Reich abraçou os aspectos mais radicais da Sexologia Freudiana. Mas manteve-se sempre como livre pesquisador, heterodoxo, excêntrico, nunca uma ovelha obediente no rebanho do Doctor Freud.

Quando estoura a 1ª Guerra Mundial, foge para Viena, na Áustria, onde alista-se no exército austríaco e luta no front da Itália. Ficará pra sempre horrorizado com a estupidez da guerra (a pior e mais mortífera que a Humanidade conhecera até então) e verá se intensificar em si mesmo um ímpeto anarquista de denúncia do autoritarismo patriarcal e das ideologias militaristas, supremacistas, repressoras da sexualidade, que o Patriarcado dissemina, produzindo em massa aquilo que Wilhelm Reich conceituou sob o nome de “A Peste Emocional”.

Com a ascensão do nazismo em 1933, exila-se em Oslo, Noruega, e depois se muda para os EUA em 1939, onde fundará um instituto para o estudo do Orgone e pesquisará sobre a Cura do Câncer.

Os “cidadãos-de-bem”, que gozaram de deleite sádico quando as obras de Reich queimaram nas fogueiras da Nova Inquisição, não queriam permitir que alguém sustentasse que havia uma importantíssima Função do Orgasmo.

Aquele velho puritanismo protestante, ascético-repressor, anglo-saxão, hiper-WASP, tampouco via com bons olhos o estudo sobre a “Revolução Sexual” que Wilhelm empreendeu a respeito da União Soviética. Estudar as políticas públicas sobre sexo postas em prática pelos bolcheviques era um acinte imperdoável!


Na terra de Tio Sam, muitos concordavam que aquele médico rebelde merecia o cárcere amargo e injusto. Que era preciso amordaçar e calar o cientista que ousara dizer de modo explícito o quão salutar é para todo ser humano ter uma vida erótica e afetiva satisfatória: ao sintonizar saúde psíquica com capacidade orgástica, ao lançar o anátema sobre a rígida couraça de caráter que dá um “rigor mortis” à personalidade contaminada com a Peste Emocional, Reich mexeu no vespeiro com a vara curta.

Arderam nas chamas até virarem cinzas seus livros:”A Função do Orgasmo”, “A Biopatia do Câncer”, “Análise do Caráter”, “A Revolução Sexual”, “Psicologia de Massas do Fascismo”, “O Assassinato de Cristo”, “Escuta, Zé Ninguém”, “Éter, Deus e o Diabo”…

O “homem-de-bem”, codinome honroso que o narcisismo do “zé-ninguém” aplica a si mesmo, sabe ser cruel e desprovido de misericórdia. Aos olhos do zé-ninguém, doente de normose, com apego patológico às leis e normas impostas pelo Patriarcado Opressor-Repressor, os desviantes, os transgressores, os comunistas indóceis, os rebeldes, merecem ser “lavados” para fora do mundo, como se não passassem de negras manchas sujas no lençol branquinho. Sujeiras humanas que merecem a higiene pelo fogo. A Solução Final. O Fascismo Yankee não começou com Trump.

Em um de seus livros, aliás uma das obras mais essenciais para decifrar a atualidade global, “A Psicologia de Massas do Fascismo”, W. Reich alertou: há um imenso perigo quando uma população é “inculcada” com uma ideologia militarista, que forma o caráter dos indivíduos para a obediência acrítica aos seus superiores hierárquicos, impedindo uma autêntica “democracia do trabalho” (ideal político que Reich defendia).

“A devoção abnegada como ideal de vida exaltado na educação das massas criou, gradualmente, a psicologia de massas que tornou possível realizar os processos ditatoriais de expurgos, execuções e medidas coercitivas de todo tipo.

Qualquer forma de dominação autoritária e totalitária fundamenta-se no irracionalismo inculcado nas massas humanas… Em consequência de milênios de distorção social e educacional, [as massas] tornaram-se biologicamente rígidas e incapazes de liberdade; não são capazes de estabelecer a coexistência pacífica; (…) os ditadores construíram o seu poder sobre a irresponsabilidade social das massas humanas.”

(p. 280, 291, 298)

O autor, nada conivente ou condescendente com as massas humanas que, em sua irresponsabilidade e em sua incapacidade para a liberdade, aliam-se e tornam-se cúmplices de ridículos e mortíferos tiranos, ensina também que boa parte de nossos males consiste no Reinado, há milênios, do Patriarcado:

“É fácil provar que, quando a organização patriarcal da sociedade começou a substituir a organização matriarcal, o principal mecanismo que levou à adaptação da estrutura humana à ordem autoritária foi a repressão e o recalcamento da sexualidade genital nas crianças e adolescentes. A repressão da natureza, do ‘animal’ nas crianças, foi e continua sendo a principal ferramenta na produção de indivíduos mecânicos.

‘Não à sexualidade genital’ e ‘não à animalidade’: com estes 2 processos, tornou-se cada vez mais acentuado e abrangente o esforço do homem para se dissociar de sua origem biológica. Simultaneamente, ia-se tornando também mais acentuada e abrangente a brutalidade sádica nos negócios e na guerra, (…) a couraça contra os sentimentos, as tendências perversas e criminosas.

O homem se tornou plasmaticamente rígido no processo de destruição de suas funções genitais. Revestiu-se de uma couraça contra a sua própria naturalidade e espontaneidade, perdeu o contato com as funções biológicas autorreguladoras. Agora ele tem um medo mortal de tudo que é vivo e livre.”

REICH, P.M.F., P. 318-319.

Ler e reler W. Reich hoje é voltar a entrar em contato com o eletrizante poder daquelas idéias vívidas que faziam os insurretos de Maio de 1968, na Paris conflagrada, exigirem: “O que a gente quer de verdade é que as idéias voltem a ser perigosas!”

E lá mesmo, nos muros e barricadas parisienses que tinham usado como faíscas as concepções de Reich e Marcuse, ousava-se exigir o “gozo sem entraves”, fazia-se coro com o “amor livre” tão querido pelos Hippies, construía-se a aliança estudantil-proletária em prol de um mundo mais livre e deleitoso.

Diante dos horrores que não cessam desta máquina de produzir monstruosidades que é a sociedade fascista, liderada pelo líder autoritário seguido por massas imbecilizadas e tornadas irresponsáveis por uma inculcação da Peste Emocional, Wilhelm Reich prossegue sendo nosso importante aliado.

Nem que seja apenas para fazer coro conosco quando pedimos o direito a amores coloridos, a orgasmos plenos, a afetos desencadeados muito além dos limites estreitos em que o Patriarcado da Heteronormatividade Compulsória visa encerrar o indomável e pluriforme Amor Humano.

Sejam realistas, demandem o impossível!

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2. REVOLUÇÕES SEXUAIS E REAÇÕES PURITANAS

A famosa caixa acumuladora de energia orgônica

O destino final de Wilhelm Reich – rechaçado pelos reacionários, tratado como louco pelas autoridades “caretas”, aprisionado como um cão raivoso – serve de ilustração para um fenômeno milenar. Revoluções culturais, sobretudo as que incidem sobre condutas sexuais, não se realizam sem se confrontarem com as potências da conservação do status quo, os preservadores da “moral e dos bons costumes.”

“A revolução social teve como consequência também uma revolução sexual que não se deteve ante nenhum ‘bem sagrado'”, escreveu Reich sobre a Revolução bolchevique de Outubro de 1971 (A Revolução Sexual, p. 181). Ele se delicia citando um pensamento de ninguém menos que Lênin, líder revolucionário bolchevique e sua “versão acertada da tarefa da revolução” (p. 222):

LÊNIN DISCURSA DURANTE A REVOLUÇÃO SOVIÉTICA. Pintura atribuída a Vladimir Aleksandrovich Serov.

“O comunismo não deve trazer ascetismo, mas alegria de viver e força vital também por meio de vida amorosa satisfeita”, afirmou o Lênin quando “acertou” na mosca sobre os objetivos revolucionários, em uma vibe que Wilhelm Reich aprova e aplaude (p. 222).

Se formos autenticamente reichianos, não desejamos uma revolução que venha impor o ideal ascético – esta tábua de valores conexa a um conjunto de práticas que foi fustigado até os ossos por Nietzsche no século 19 em sua Genealogia da Moral. Não queremos uma revolução que gere uma sociedade que nos entristeça pois nos super-reprime, mas sim uma outra sociedade possível onde vidas amorosas satisfeitas e seres repletos de alegria de viver (e sobretudo de conviver) sepultaram o triste passado monstruoso gerado pela conjunção melancólica entre Patriarcado, Puritanismo Religioso (Ascetismo) e Capitalismo Industrial.

Na história do pensamento no século XX, Wilhelm Reich é um dos pensadores “ocidentais” que melhor se pôs a refletir sobre um outro mundo possível (tanto no âmbito econômico e político quanto no âmbito cultural e ético, aí incluídos todos os aspectos da vida sexual humana). Interessou-se intensamente pelos processos da revolução soviética, da qual foi um instigante intérprete, e não faríamos justiça à sua obra se apenas o considerássemos um dissidente de Freud, meio maluquete, pregador de amores livres e sexo sem freios; na verdade, Wilhelm Reich questionou a fundo o legado do marxismo no século 20 e dialogou de maneira crítica e criativa com aquele que foi o maior evento revolucionário da época:

“A Revolução Russa, no sentido político-econômico, foi conscientemente dirigida pela ciência marxista de Economia e Política. Tudo o que acontecia era medido pela teoria do materialismo histórico e se confirmava em seus pontos principais. Mas, para a revolução cultural, para não falar do seu âmago, a revolução sexual, nem em Marx nem em Engels havia formulações adequadas para conferir diretrizes aos líderes da revolução nesse campo tal como no da Economia…” (R.S., cap. 3, p. 214)

Este trecho revela coisas importantíssimas sobre a ação que Reich se propôs a realizar no mundo: iluminar a questão da revolução sexual que Marx e Engels haviam deixado numa certa obscuridade. Tarefa crucial, já que segundo Reich a revolução sexual está no âmago da revolução cultural. Uma noção autenticamente materialista, que enxerga na transformação do ethos (das condutas) a verdadeira transformação cultural, e não numa mudança meramente “ideal” de pensamentos, de idéias, de noções intelectivas, de epistemes…

Neste aspecto, poderíamos colocar Wilhelm Reich na posição de um dos psicólogos do século XX que mais contribuiu para pensar as pontes possíveis entre Psicanálise e Marxismo (tarefa a que também se dedicaram figuras como Erich Fromm e Herbert Marcuse). O gênio da psicologia russa Vygotsky, em muitos aspectos aparentado a Reich na sua visão de uma cultura “sadia” e ascendente, também via na Revolução Soviética uma oportunidade de emancipação em relação às correntes que o czarismo havia por séculos imposto aos russos, em especial através de uma educação sexualmente repressiva, emocionalmente anestesiante, excessivamente intelectiva, que via com maus olhos os afetos e as pulsões:

“Devemos levar em consideração que a educação sempre e em todas partes teve um caráter classista. Basta recordar o sistema de instrução que imperava na escola Czarista russa, o qual criava ginásios e universidades para a nobreza, colégios secundários para a burguesia urbana, asilos e escolas de ofícios para os pobres.

Basta lembrar o tipo de pessoas insignificantes e indolentes, covardes diante da vida, totalmente inúteis, que eram produzidas pela educação Czarista, para a qual a repressão do Instinto era fundamental.

Todo o potencial da criação humana, o mais alto florescimento do gênio, não são possíveis no solo raquítico e anêmico da destruição dos instintos; pelo contrário, devem provir de seu florescimento total e da tensão repleta de vida de suas forças.”

LEV VYGOSTKY (1896 – 1934),
“Psicologia Pedagógica”, pg. 81 e 92.

O “florescimento” da vida também é uma das preocupações de Wilhelm Reich, e ele se enxergava como uma espécie de intelectual ativista em batalha contra as causas produtoras da Peste Emocional, entre elas a repressão sexual imposta por autoridades patriarcais.

“A experiência médica ensina que a repressão sexual resulta em doença, perversão ou lascívia”, dispara Reich em sua polêmica obra de 1966 e que a Zahar publicou no Brasil de 1968: A Revolução Sexual ousa propor aos educadores certas práticas que deixaram de cabelos em pé e apavorados os conservadores de todos os matizes. “A repressão do impulso de observar e exibir os órgãos sexuais leva a resultados que nenhum educador pode considerar desejáveis.” (pgs. 95-96)

Não pulemos a conclusões precipitadas, como adoram fazer seus detratores. Reich não é um pensador simplista, que queira aniquilar toda e qualquer regulação social da sexualidade humana, que queira “liberar geral”, inclusive o incesto e a pedofilia. Este tipo de caricatura é fake news da oposição. Uma recente reportagem da VICE, escrita por Eduardo Ribeiro, mostrou os meandros complexos de um problema que muitos querem tratar com simplismos e condenações apressadas e preconceituosas.

Kevin Hinchey atua desde 2002 como codiretor do Wilhelm Reich Infant Trust, em Rangeley, no Estado de Maine, EUA. Trata-se de um instituto criado pelo próprio Reich em seu testamento que administra o material de arquivo do psiquiatra, publica livros e artigos, entre reeditados e inéditos, além de também operar um museu no mesmo local. Kevin está fazendo um documentário para justamente mostrar ao mundo que várias das coisas que se espalham e que se atribuem a Reich são pura lorota.

Em nossa entrevista, todas as vezes em que tentei entrar em algum tipo de especulação, ele foi enfático em sugerir que as pessoas leiam as coisas escritas de próprio punho por Reich ao invés de se apegarem aos artigos interpretativos que inundam a mídia desde sua morte – e que é o que geralmente se faz. Uma das deturpações sobre Reich prega que ele teria sido o ideólogo do amor livre. O lance de Reich não era bem esse. Embora ele afirmasse que melhores orgasmos levavam a uma vida melhor e fosse um crítico da educação sexual e da estrutura familiar, transformá-lo num escudo panfletário para esse tipo de causa é puro reducionismo.

Entre muitas percepções surpreendentes, Wilhelm Reich foi o cara que identificou a neurose no corpo das pessoas. A partir de suas pesquisas, ele descobriu que a neurose era causada pelo desequilíbrio energético. Mas ele não focava apenas a energia psíquica, e sim a energia única que circula por todo o nosso corpo, à qual se designaram modos diferentes de chamar com o mesmo significado: bioenergia, energia orgônica ou energia vital. Ex-pupilo de Freud, abandonou o divã e passou a estudar aspectos como tom de voz, postura, respiração e outros indícios corporais que observava durante as terapias. Ele rompeu com o padrão psicanalista de não se olhar no olho do paciente e de colocar em segundo plano a percepção das modificações de postura e gestos: sua proposta era a de integrar a análise corporal com a escuta.

Assim, Reich detectou sete regiões corpóreas onde se formam as tensões musculares que chamou de “anéis” ou “segmentos de couraça”: ocular, oral, cervical, torácica, diafragmática, abdominal e pélvica. Seria, portanto, a distribuição imprópria da energia orgônica, sobretudo na musculatura voluntária, a causa da formação da “couraça caracteriológica” ou “couraça muscular do caráter”. Outro pilar fundamental do pensamento de Reich é que os conflitos emocionais surgem das relações sociais, e não de algo eminentemente individual. Sob tal prisma, a neurose e as psicoses podem ser entendidas como fenômenos decorrentes de conflitos e práticas de poder postas em prática na vida cotidiana – está aí a origem política da neurose… (VICE, 2015)

SITE OFICIAL: http://loveworkknowledge.com/

Nem um psycho hipponga pregando sexo liberado, nem um maluquete do amor livre e das colônias de nudismo – abandonemos as caricaturas que não fazem jus ao personanagem. Percebo Wilhelm Reich mais como um médico ousado, rebelde, que se dedicou com devoção à tarefa de curar uma epidemia de infelicidade psíquica, de vidas entristecidas, de hecatombes sociais conexas à infelicidade humana e à má gestão das nossas energias libidinais.

Sua teoria do caráter é um excelente instrumento não só para a análise do processo de gênese do sujeito, a produção social de sua couraça, mas também é aplicável em terapêuticas psicosomáticas super abertas à cura pelo corpo performático – a salvação pela arte, pelo amor, pela alteridade.

Sua crítica da educação também é muito pertinente e provocativa: “certas expressões, habituais na educação pela boca de pais e mestres, retratam com exatidão o que aqui descrevi como técnica muscular de encouraçamento”, escreve ele em A Função do Orgasmo (p. 304):

“Uma das peças centrais da educação atual é o aprendizado do autocontrole. ‘Quem quer ser homem deve dominar-se.’ ‘Não se deve demonstrar medo.’ ‘Cólera é falta de educação’. ‘Uma criança decente senta-se quieta.’ ‘Não se deve demonstrar o que se sente’… Essas frases, características da educação, inicialmente são repelidas pelas crianças, depois aceitas com relutância, laboradas e, por fim, exercitadas. Entortam-lhes – via de regra – a espinha da alma, quebram-lhes a vontade, destroem-lhes a vida interior, fazem delas bonecos bem-educados… É um dos grandes segredos da psicologia de massas que o adulto médio, a criança média e o adolescente médio são muito mais propensos a resignar-se com a ausência de felicidade que a continuar a lutar pela alegria de viver.”

Como sociólogo, Reich nos ajuda a ler a sociedade que gerou o fascismo como refém da Peste Emocional. Não se combate a atroz prevalência do fascismo, do obscurantismo, do fanatismo religioso, do elitismo classista, do supremacismo racista, sem enfrentar o problema emocional, sem ir fundo na pesquisa das causas de uma emotividade pestífera que se disseminou. 

Depois de atravessar duas guerras mundiais, de testemunhar a explosão insana dos cogumelos atômicos de Hiroshima e Nagasaki com bombas made in USA, de se conscientizar sobre as atrocidades gigantescas cometidas pelos regimes fascistas e totalitários (do bombardeio de Guernica pelas forças de Franco na Espanha, ao Holocausto / Shoah que aniquilou mais de 6 milhões de vida nos campos do III Reich, aos expurgos e aprisionamentos da URSS sob Stálin), Wilhelm Reich se convenceu de que sua batalha de vida ou morte era contra a Peste Emocional.

“Tal como um bacteriologista dedica todos os seus esforços e energias à eliminação total das doenças infeccionas, o médico orgonomista dedica todos os seus esforços e energias ao desmascaramento e combate da peste emocional como uma importante doença dos povos do mundo. (…) Não escondemos, nem hoje nem nunca, que só acreditaremos na realização da existência humana quando a biologia, a psiquiatria e a pedagogia se unirem para lutar contra a peste emocional universal, combatendo-a tão implacavelmente como se combate os ratos portadores de peste bubônica.” (Análise do Caráter, Martins Fontes, p. 490 – 491)

Há alguma razão para considerar que a batalha de Reich já foi perdida, que não é mais a nossa, que é missão caduca, ou hoje, mais do que nunca, os ratos bubônicos da Peste Emocional estão soltos e o combate de Reich é ainda nosso combate?

Eduardo Carli de Moraes / A Casa de Vidro –www.acasadevidro.com

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“ELA DESATINOU, DESATOU NÓS, VAI VIVER SÓ…” – Experiências em Confluências: Camille Claudel via Não Me Kahlo + Francisco El Hombre

Camille Claudel (1864 —1943)


Coletivo Não Me Kahlo: “Por séculos, mulheres que não se encaixavam no ideal de docilidade foram diagnosticadas com uma condição chamada histeria feminina.

A palavra histeria tem origem no termo grego para ‘útero’, órgão que era considerado a causa da patologia. Durante séculos, o desconhecimento sobre o corpo da mulher levou médicos a acreditarem que o útero se movimentava – em livro de 1609, Libaud escreveu até que ele chegava a subir aos pulmões e à cabeça. A histeria era chamada de ‘sufocação da matriz’ – a matriz sendo o útero -, e acreditava-se que o fato de a mulher ficar muito tempo sem ter filhos poderia ser uma de suas causas.

Como tratamento, sugeria-se a manipulação da vagina e do clitóris pelo marido da mulher diagnosticada ou, caso isso não desse certo, pelo médico, que devia masturbar a paciente até que ela atingisse o orgasmo – assim, acreditava-se, ela ficaria mais calma. O primeiro vibrador, patenteado em 1869, foi criado por um médico norte-americano com o objetivo de tratar a histeria e ‘aliviar’ os homens dessa tarefa.

Apesar da vinculação da histeria a causas biológicas, o que se observava, na verdade, era que usava-se a histeria, muitas vezes, como forma de tornar patológicos comportamentos femininos que fugissem às normais sociais da época, posturas consideradas indevidas para uma mulher.

Foi o que aconteceu com Camille Claudel, internada à força pela família em um manicômio, onde passou 29 anos. Segundo Daniela Lima, ela manchou a honra da família por não ter se casado nem tido filhos e por ter se dedicado à escultura, um ofício na época considerado masculino.

O que alegava seu atestado de internação? Basicamente que Camille era relapsa com a aparência, as roupas e os sapatos e que vivia sozinha com muitos gatos. Ela era, como diz Daniela, um mau exemplo para as mulheres à sua volta.

‘Mulheres eram internadas pelos mais variados motivos: engravidar indevidamente, gastar muito dinheiro, estar desempregada e – ainda mais violento – por um simples pedido da família. Na loucura, parecia caber tudo aquilo que era desviante à média ou à norma. (…) Quando Camille transgrediu os estereótipos de gênero de sua época, revelou mecanismos de poder que fabricam estes estereótipos. Era um exemplo perigoso para outras mulheres. Portanto, tentaram corrigir violentamente sua anormalidade. O que define o anormal é que ele constitui, em sua existência mesma, a transgressão de leis invisíveis da sociedade, leis que são naturalizadas.’ (LIMA, Daniela)

Embora hoje a medicina não mais reconheça a histeria feminina, as expressões de raiva das mulheres continuam a ser associadas a seu ciclo reprodutivo e à sua sexualidade. Não raro, nossa revolta diante de atitudes machistas, por exemplo, é atribuída à tensão pré-menstrual ou a uma suposta falta de sexo, a fim de desvalidar nossas críticas.”


Trechos do livro “#MeuAmigoSecreto – Feminismo Além Das Redes”, Edições de Janeiro, 2016, pg. 20-21.

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Leia também: http://www.hypeness.com.br/2017/04/ofuscada-por-rodin-e-pelo-machismo-finalmente-camille-claudel-ganha-seu-proprio-museu/

http://creatureandcreator.ca/?p=854



Francisco, El Hombre
Triste, Louca ou Má

Triste, louca ou má
será qualificada
ela quem recusar
seguir receita tal

a receita cultural
do marido, da família.
cuida, cuida da rotina

só mesmo rejeita
bem conhecida receita
quem não sem dores
aceita que tudo deve mudar

que um homem não te define
sua casa não te define
sua carne não te define
você é seu próprio lar

que um homem não te define
sua casa não te define
sua carne não te define

ela desatinou
desatou nós
vai viver só

eu não me vejo na palavra
fêmea: alvo de caça
conformada vítima

Prefiro queimar o mapa
traçar de novo a estrada
Ver cores nas cinzas
E a vida reinventar.

e um homem não me define
minha casa não me define
minha carne não me define
eu sou meu próprio lar

ela desatinou
desatou nós
vai viver só


SIGA VIAGEM:

CARNE DOCE
“Falo” (Salma Jô)
Do álbum Princesa (2016)

Café Filosófico: “História da Subjetividade no Ocidente”, por Jurandir Freire Costa

“História da Subjetividade no Ocidente”,
por Jurandir Freire Costa:

Fala completa

#Foucault #Agamben #Psicanálise #Cristianismo #CulturaGreco-Romana

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Leitura sugerida:

Jurandir2

“O Vestígio e Aura – Corpo e Consumismo na Moral do Espetáculo” [Compre @ Estante Virtual]

RELAÇÕES ENTRE ARTE E LOUCURA, por JOEL BIRMAN (25 MINUTOS)

joel_birman

“Joel Birman é filósofo e psicanalista. Formado em medicina na década de 1970 é Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo e Pós-Doutorado em Paris, no Laboratoire de Psichopathologie Fundamentale et Psychanalyse (Université Paris VII). Atualmente é professor na UFRJ e UERJ.

Nesta entrevista produzida pela TVBrasil é investigada a relação entre arte e loucura. Birman desvenda as inúmeras e complexas relações entre arte e loucura e entre arte e psicanálise. No papel de analisado, o entrevistador, Aderbal participa da sessão no divã-banheira, que, desde sempre, tem sido o centro inconsciente do cenário do programa.”