A HUMANIDADE DESPEDAÇADA – Lições de Dilaceramento no filme “Em Pedaços”, de Fatih Akin (Alemanha, 2017, 1h46min)

“A desumanidade terá um grande futuro.”
Paul Valéry

Não há porque temer o desaparecimento do despedaçamento humano: prosseguimos divididos e nos matando como se fôssemos feras ferozes. O foco principal do perturbador Em Pedaços (título original em alemão: Auf Der Nichts; título em inglês: In The Fade), do cineasta turco-alemão Fatih Akin (o mesmo de Contra a Parede), é o cruel dilaceramento de uma mãe e esposa vê seu marido e filho serem reduzidos a pedaços por um ato terrorista neonazi.

Nascido de pais turcos em Hamburgo, no ano de 1973, o diretor Akin sedia em sua cidade natal este seu denso conto de desumanização, incompreensão e desatamento incontrolável de violências. Explora a geopolítica européia contemporânea, em especial a re-ascensão de movimentos de extrema-direita xenófoba, em um filme pungente que revela as profundezas abissais do sofrimento humano enquanto denuncia a onda de islamofobia e de crimes conexos à intolerância racista.

A esplêndida interpretação da atriz alemã Diane Kruger, premiada no Festival de Cannes, não permite a nenhum espectador ficar frio e indiferente diante das atribulações da protagonista Kátia. Ela tem sua existência transtornada subitamente e tirada de órbita pela bomba que explode na frente do escritório de seu marido Nuri Sekerci, matando-o junto com o filho do casal.

O filme mergulha em toda a aflição do trauma que se abate sobre esta mulher, repentinamente privada dos amores de sua vida em um crime cujos mistérios o filme tratará de decifrar. Do drama privado em que poderia ter ficado atolado, o filme se alça às alturas de uma tragédia grega adaptada à Alemanha contemporânea. Pinta um retrato de uma Hamburgo onde o supremacismo racista dos neonazis produz monstruosidades que a Justiça, aburguesada e pusilânime, fracassa em punir.

No momento histórico em que a crise dos refugiados está em seu estado mais grave deste a 2ª Guerra Mundial (segundo estudo da Anistia Internacional e da ACNUR), em que as polêmicas sobre políticas de imigração são intensas e as ações segregacionistas da direita se assanham (como ocorre com o discurso encabeçado por Le Pen na França, ou com as crianças-separadas-dos-pais durante a gestão Trump nos EUA), o filme é de imensa atualidade. Pode nos ajudar a debater os rumos futuros da belicosidade humana, do etnocentrismo alterofóbico e das ações extremistas contra imigrantes.

A grande questão que o filme nos faz talvez seja esta: quando aqueles que juraram defender a Justiça, e tem este dever por ofício, fracassam em seus trampos, permitindo a impunidade aos mais atrozes criminosos, temos o direito de agir em prol da punição dos mesmos por fora das instituições? Através da descrição crível do ímpeto emocional e das atividades indignadas desta mãe, que viu seu filho e seu marido terem seus corpos explodidos até não restarem senão pedaços incinerados do que antes foram pessoas vivas e amadas, a questão do filme tem a ver com aquela velha indagação ética-jurídica: tem-se o direito de “fazer Justiça com as próprias mãos” quando as autoridades competentes mostram-se incompetentes?

Triturando todos os estereótipos racistas sobre a figura do terrorista e do delinquente, o filme nos coloca diante do crime horrendo cometido por aquela Cara Gente Branca que é alfinetada no filme e na série Dear White People. Vocês realmente precisam ser tão estúpidos e bestiais, caros espécimens da Cara Gente Branca, a ponto de explodir vidas apenas por serem turcas ou curdas, afegãs ou iraquianas? E vocês realmente querem se vender ao mundo como aqueles que vão ensinar ao “Terceiro Mundo” como se deve comportar no tabuleiro geopolítico, forçando-nos a frequentar sua magnífica Escola Ocidental de Humanitarismo?…

O cineasta Fatih Akin em ação no set de filmagens de “Em Pedaços”, vestindo uma camiseta do álbum “…and Justice for All” do Metallica

O atentado foi perpetrado por um casal de neonazistas, os Möeller, que idolatram Adolf Hitler. As investigações policiais indicam que eles explodiram a bomba caseira em um bairro turco por motivos conexos à xenofobia, ao racismo, ao ódio anti-islâmico etc. Isso acaba se confirmando quando, no tribunal, um grego afiliado ao partido neonazista grego Aurora Dourada (A.D.) testemunha a favor dos réus, procurando fornecer aos juízes um álibi que provaria a inocência dos acusados. Como poderiam eles ter perpetrado o atentado se estavam numa colônia de férias na Grécia?

O advogado de acusação, aliado de Kátia, logo aponta que este grego, militante neonazi, com sua cara carrancuda de pouquíssimos amigos, publicou fotos em suas mídias sociais em um ato em que aparece empunhando a bandeira com a suástica da A.D. em um post curtido pelos assassinos. O advogado mostra evidências das tenebrosas conexões entre a testemunha e os réus, frisa a natureza forjada do pseudo-álibi.

Ainda que dentro da grande tradição dos filmes sobre vingança, Fatih Akin não trilha sendas já exploradas com maestria por antecessores ilustres como Sergio Leone, Sam Peckinpah, Quentin Tarantino ou Chan Wook Park (Oldboy). Constrói sua protagonista, de modo similar à Beatrix Kiddo de Kill Bill, como vítima de injustiças em série; mas Fatih Akin, ao contrário de Tarantino, não tem predileção pela caricatura e pelo humor de HQ, preferindo um tom mais trágico, soturno, com certos acentos punk.

Kátia encarna uma vingatividade justiceira que, no âmbito ético e filosófico, poderia ser compreendida como ação violenta justificável diante da falência do Estado burguês em punir os assassinos. Cansada de não ter saciada sua ânsia por Justiça, ela decide agarrar o problema em suas próprias mãos, já que o Estado se mostrou ineficiente em coibir o crime: ao invés de punição, o casal de assassinos é libertado e absolvido, e logo após o julgamento vai para uma colônia de férias na Grécia, o que só faz o ímpeto vingativo-justiceiro em Kátia se exacerbar.

Que ela tem o direito de tomar o problema da punição dos assassinos em suas próprias mãos é algo que Kátia percebe não no nível da verbosidade sociológica de um linguajar acadêmico, mas em suas próprias vísceras de mãe e de esposa que teve amputados de seu corpo estes outros que constituíam, para ela, um ninho de calor e sentido.

O filme explicita também os mecanismos que buscam culpar a vítima para assim melhor absolver os perpetradores de atrocidades. Tanto Kátia quanto seu marido morto tem suas vidas devassadas pela polícia, suas reputações colocadas em cheque, tanto pelos antecedentes criminais do marido enquanto traficante de drogas ilícitas, quanto pelo uso de drogas variadas que Kátia usa em seu luto para amainar a dor de sua súbita perda.

O advogado dos réus precisa atacar Kátia, acusando-a de ser uma drogada. Levanta dúvidas sobre a capacidade de testemunhar por parte daquela junkie desequilibrada, criando assim uma teia de desconfiança em relação à mulher dilacerada. São cenas angustiantes em que o espectador que se identifica com o infortúnio da protagonista sofre horrores com ela. Encurralada naquela jaula-tribunal, ela subitamente se transmuta de vítima da opressão homicida da extrema-direita em acusada. Contra ela levantam-se os dedos cretinos destinados a humilhá-la e desacreditá-la, o que só favorece a impunidade do casal neonazi perpetrador do crime.

Assim, o tribunal dilacera ainda mais aquela mulher cuja resiliência o filme, de maneira subliminar, descreve e celebra. Não estamos diante de uma mulher frágil, que fosse quebrável com a facilidade do cristal. Estamos sim diante de uma crumbling fortress, uma fortaleza que se desfaz em pó, mas que neste processo prepara-se para sair do mundo dos vivos através de um ato de sacrifício supremo.

O tema do sacrifício, que recebeu de Andrei Tarkovsky uma densa meditação em seus últimos filmes Nostalghia e O Sacrifício (vide a excelente análise de Slavoj Zizek em Lacrimae Rerum), passa por inúmeras variações na obra de Fatih Akin. Ainda no primeiro ato do filme, ela tenta o suicídio, este auto-sacrifício de um sujeito que perdeu o gosto de viver após ser privado de seus vínculos afetivos mais amados. Um suicídio que ela quase consuma: após cortar os pulsos e deitar-se na banheira, cuja água vai rapidamente se tingindo com o escarlate do seu sangue, ela enfim se agarra à última corda que a prendia aos vivos, a mensagem de seu advogado que anuncia a descoberta da autoria do crime – “foram os nazistas, a polícia os prendeu!”.

A sede de Justiça talvez tenha sido a força que a fez levantar daquela banheira onde, alguns minutos depois, estaria afogada e morta. Quando esta ânsia de Justiça é malograda e os réus ganham sua absolvição, ela perde todo o esteio nas instituições jurídicas. A mulher dilacerada, que aprendeu amargas lições na escola do sofrimento recente que o destino lhe impôs, agora é impelida, no terceiro ato do filme, a um processo de vingança que para ela já tornou-se visceralmente inextricável de uma fome de justiça.

Fatih Akin e Diane Kruger

Nesta fome de justiça que transcende a própria racionalidade e torna-se um vulcão de afetos imperiosos está a beleza do ímpeto violento de Kátia. Nisso está a chave para compreender porque o cinema de Fatih Akin é mais profundo, cheio de compaixão e empatia, repleto de compreensão ampla da condição humana, do que o cinema frequentemente raso e pipoquento do Tarantino – que cometeu Bastardos Inglórios, Django Livre e os Kill Bills, fortes referências na produção fílmica recente sobre o tema da Justiça e da Vingança, sempre transformando as cataratas de sangue jorrado numa espécie de lucrativa commodity.

violência animada pela ética, ou a vingança entremesclada com a fome de justiça, aparece de modo muito forte em Aos Pedaços, um filme que atinge alturas que Tarantino nunca soube explorar. O filme também é interessantíssimo quando adere ao “drama de tribunal”, na melhor tradição de Sidney Lumet (Doze Homens e Uma Sentença), Otto Preminger (Julgamento em Nuremberg) e Stanley Kramer (O Vento Será Sua Herança).

A irrupção de ódio de Kátia, no tribunal, após ouvir a médica legista relatar suas experiências no IML com o cadáver da criança explodida pela bomba, é compreensível ainda que tenha prejudicado a causa de Kátia. Quando esta mãe em luto parte pra cima da assassina, pra descer o cacete na neonazi Möller, isto é certamente uma irrupção selvagem naquele ambiente controlado e esfriado do tribunal, uma quebra de protocolo que as mentalidades protocolares não aceitam com facilidade. Mas de todo modo é difícil não se identificar com a justeza do ato em que a indignação represada rompe os diques e se manifesta aos urros.

É esta selvagem irrupção do afeto indignado que se comunica ao espectador e torna esta obra um daqueles raros casos em que a arte é a escola do sentimento, a universidade da ética. Foi assim também com a personagem magnífica interpretada por Rachel Weiss na subestimada obra-prima de Fernando Meirelles, O Jardineiro Fiel (2005), em que Tessa, que no filme é vítima de uma morte injusta, tem sua vida e obra reanimadas pelo ímpeto de seu viúvo dilacerado, o constant gardener do título, que celebra uma vida arrefecida replantando as sementes das lutas que animaram a vida de ativista de Tessa. 

A atuação de Diane Kruger, evocando a linda interpretação de Weiss no filmaço de Meirelles, também transmite muito bem a noção de uma mulher que, rompendo com as correntes do comportamento apropriado, deixa sua emotividade e seu radar ético, sentimentalmente carregado até o talo, guiá-la no sangrento labirinto do mundo.

Não há dúvida de que haverá quem queira tacar pedras condenatórias no comportamento de Kátia no 3º ato do filme: ela estaria sendo louca, incivilizada e aderindo à Lei de Talião. Ela estaria recusando o caminho apropriado concedido pela justiça burguesa, que seria entrar com recursos e apelações contra a absolvição dos assassinos. Não estou entre estes espectadores que sacam as pedras para atirá-las a uma mulher já demasiado dilacerada; é verdade que ela adere à lógica da retaliação, que quer pagar aos assassinos na mesma moeda, que inclusive fabrica uma bomba caseira idêntica à que o casal neonazi usou no atentado.

Mas dois elementos que o filme de Fatih Akin apresenta tornam o quadro bem mais complexo do que o simplismo de julgar que uma Kátia tresloucada, indignada com o veredito baseado no in dubio pro réu (na dúvida, a favor do réu), simplesmente decidiu-se pelo ancestral “olho por olho, dente por dente”.

O primeiro elemento é a belíssima cena em que ela coloca a bomba debaixo do trailer dos assassinos, afasta-se para aguardar que retornem do cooper, quando planeja explodi-los através de um controle remoto. A súbita aparição de um belo pássaro, pousando no retrovisor do veículo, fazendo suas inocentes doçuras aladas na brisa da manhã, faz com que um insight se acenda em Kátia: suponho que ela tenha pensado que aquele beija-flor inocente não tinha nada a ver com os descalabros humanos e que não era justo explodi-lo junto com os alvos de seu atentato vingativo-justiceiro. Ela decide adiar seu ataque e mudar de plano.

O segundo elemento é a conclusão do enredo através do sacrifício supremo, da atitude kamikaze, que enfim Kátia consuma. Isto estabelece uma diferença radical entre os dois atos de bombardeio: quando o casal Möller perpetrou o atentado que matou pai e filho e lançou Kátia à condição de viúva amputada de sua criança, eles permaneceram ilesos e imunes, sem ferimentos. Assassinaram sem que seus corpos tenham sido sequer arranhados. Kátia, de modo contrastante, decide-se por colocar um ponto final em sua existência cuja dor, angústia, solidão e dilaceramento nenhuma droga neste mundo seria capaz de aplacar. E assim, abraçada à mochila que aninha a bomba, decide encarar pela última vez os algozes de sua família, num gesto bastante curioso para uma mulher de aparência em tudo similar ao estereótipo da “ariana”-germânica: é o ato do suicide bomber, terrorista suicida, que costumamos conectar ao soldado jihadista muçulmano.

É um desenlace que, de certo modo, evoca o final de Dogville (Lars Von Trier), quando Grace, após todas as opressões que sofreu naquela Cidade do Cão em que foi abusada sexualmente e escravizada brutalmente, decide decretar: “Se há alguma cidade que, excluída do mapa, deixa como resultado um mundo melhor, é esta aqui.” Grace, utilizando o poder que lhe concede o poderoso gangster que é seu pai, decide-se pelo genocídio e pela limpeza étnica, numa irrupção de vingança cuja única gota de misericórdia se manifesta pelo cachorro, que ela permite que fique vivo.

Já Kátia, com o seu sacrifício supremo, seu suicídio kamikaze, a um só tempo liberta-se da dor intolerável que tornou-se o tema in ritornello de sua dolorida e insuportável existência de dilacerada. Ela também conduz os corpos vivos dos algozes neo-nazis a se tornarem também pedaços incinerados. Talvez seja verdade que na base do olho por olho e do dente por dente terminaremos todos cegos e banguelas. Talvez tenha uma dose de razão quem queira julgar que Kátia agiu de modo errado, do ponto de vista ético e jurídico, na última atividade de sua vida. Mas volto a dizer: nesta personagem, após testemunhar com empatia seus dilaceramentos, eu não ousaria tacar pedras.

Hannah Arendt em 1941. Fotografia de Fred Stein (1909-1967).

Num dos trechos mais surpreendentes de Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt argumentou em favor da pena capital que terminou por ser aplicada ao criminoso nazista pelo tribunal israelense. Arendt, reativando um argumento semelhante a “não devemos ser tolerantes com os intolerantes”, disse que ao ter se envolvido, durante anos, em atos de extermínio em massa de pessoas com quem convivia no mundo comum, Eichmann tornou-se veículo da banalidade do mal que massifica e dissemina a atitude tóxica do “não permito que você viva no mesmo mundo que eu”.

São justamente as pessoas que são incapazes de conviver com a pluralidade intrínseca à condição humana, que não sabem respeitar a diversidade que constitui o múltiplo colorido da humanidade, que assassinam este colorido por razões racistas e supremacistas, que tornam-se assim indignas de viver.

Acredito que, sem filosofias, mas com os atos éticos nascidos de suas vísceras dilaceradas e de sua psique transtornada por sofrimentos em demasia, Kátia tenha chegado a uma conclusão semelhante e tenha, com o fim de sua vida, expressado o que Arendt expressou: em tempos sombrios, os exterminadores da diversidade e os propagadores das intolerâncias, que agem pela “limpeza étnica” e pela diminuição da pluralidade do mundo, são os únicos que merecem ser exterminados e os únicos indignos de nossa tolerância. Porém, Kátia sabe também que, ao assassinar os assassinos, torna-se ela mesma uma assassina, e talvez não conseguiria viver consigo mesma na mescla insuportável de luto e culpa. Por isto, o sacrifício supremo de si no ato de sacrificar os outros.

Eduardo Carli de Moraes, jornalista e filósofo, professor do IFG.
Artigo escrito em 11 de Abril de 2019 para a sessão de crítica cinematográfica
Cinephilia Compulsiva de A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com).

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(VIA FÓRUM MAKING OFF)
Leia também: Resenha de Aníbal Santiago
Descubra outros filmes: Sobre Dogville de Lars Von Trier >>>

“A PÍLULA DA FELICIDADE INSTANTÂNEA”, de Eduardo Giannetti

A PÍLULA DA FELICIDADE INSTANTÂNEA

por Eduardo Giannetti

(Em: Felicidade, Cia das Letras, 2002, pg. 143 a 152)

Na luta pela felicidade, o homem se deu conta de que o mundo natural podia ser transformado e submetido aos seus desígnios. O corpo do animal humano é parte dessa natureza. Ao se perceber e tomar como objeto de si mesmo, o homem descobriu que era possível alterar e manipular a sua natureza orgânica tendo em vista não só o bem-estar objetivo da saúde física, mas também o subjetivo da felicidade. Se “a vida é uma doença incurável”, como declarou o poeta inglês Abraham Cowley no século XVII, então por que não buscar um remédio que alivie os sintomas e o desconforto?

A ideia de alterar estados de consciência por meio da manipulação da química cerebral pode soar moderna, mas o sonho vem de longe. Não é de hoje que se especula, se fantasia e se experimenta em torno de facilitadores químicos e soluções mágicas para vencer o desafio de afastar o sofrimento e ser feliz. A farmacopéia psiquiátrica do animal humano remonta ao ambiente ancestral. Cada tribo guarda o seu segredo. A mais antiga língua escrita de que se tem registro – o idioma sumério praticado na Mesopotâmia desde o terceiro milênio a.C. – continha um ideograma específico denotando a papoula, da qual se extrai o ópio, como “a planta da alegria”.

"Helena e Páris", por Jacques-Louis David, 1788. Museu do Louvre.

“Helena e Páris”, por Jacques-Louis David, 1788. Museu do Louvre.

A bela e cortejada Helena, segundo o relato de Homero na Odisséia (IV, 220-32), possuía o segredo de uma planta egípcia cuja infusão em vinho dissipava a melancolia e fazia esquecer todos os males. O nepentes (do grego nepenthos: anti-preocupações) era tão eficaz contra o sofrimento e a tristeza, esclarece o poeta, que “àquele que o tragasse, depois de misturado ao vinho, não lhe correriam mais, em todo o dia, as lágrimas pela face, nem mesmo se lhe morressem a mãe e o pai ou se lhe matassem com o bronze, na sua presença, o irmão ou o filho”. A poção de Helena de Tróia, provavelmente uma solução de ópio em álcool, adormecia os circuitos da dor psíquica.

W. A. Mozart

W. A. Mozart

Outro exemplo notável vem de A Flauta Mágica de Mozart. A diferença é que o princípio ativo, nesse caso, não era um agente químico, mas um estímulo auditivo. A propagação das ondas sonoras e sua ação sobre os sentidos e o sistema nervoso, vale lembrar, são uma realidade tão impecavelmente física (embora não só isso, é claro) quanto a ingestão de um gole de vinho. A flauta mágica, talhadas das raízes mais profundas de um carvalho milenar em noite trovejante, tinha o dom de transfigurar o humano sofrer. Ao ouvi-la, o tristonho se enche de alegria, a solteirona sonha e o velho solitário se enamora. “Esta flauta”, celebra o coro da ópera, “é mais preciosa do que o ouro e as coroas, pois graças ao seu poder irão crescer o júbilo e o contentamento entre os homens.” Quando o céu da paisagem interna anda cinza, de que bênçãos e reviravoltas o sopro encantado da música não é capaz?

Seria ótimo, não é mesmo? Dispor de um remédio infalível – um recurso como o nepentes homérico ou a flauta mágica – capaz de afastar com um sopro as nuvens negras e as preocupações que assombram a mente, inundando-a suavemente de um bem-estar indizível. Não foi à toa que Francis Bacon, o grande precursor renascentista da ciência a serviço da técnica e do resgate da condição humana, vaticinou que aquele que descobrisse o segredo da “alegria solúvel em sangue” teria encontrado “a chave da vida eterna”. A tecnologia farmacêutica de drogas lícitas e ilícitas é o braço psiquiátrico do projeto iluminista-faustiano da conquista da felicidade por meio da crescente dominação da natureza pelo homem.

“O que hoje está provado ontem era apenas um sonho.” O que parecia distante no tempo vai se tornando visível no horizonte do exeqüível. Os avanços recentes no campo da bioquímica, da neurociência e da neurotecnologia prenunciam a chegada do dia em que o sonhos dos poetas e visionários do passado poderá se tornar realidade. Paralelamente, o apetite do público pelas novidades da indústria farmacêutica parece insaciável. Da calvície à obesidade, da insônia à impotência sexual, da ansiedade à perda de memória – há remédio para tudo. A farmacopéia moderna pode exclamar com o conde de Mirabeau: “Impossível? Nunca me diga essa palavra ridícula!” O caminho do paraíso está pavimentado de fórmulas, prescrições e bulas medicinais.

O alvoroço em torno das possibilidades abertas pelo avanço da tecnologia biomédica dá o que pensar. Boa parte das drogas que vêm empolgando os mercados tem por finalidade não a defesa do organismo contra doenças que ameaçam ou debilitam a saúde, mas sim a expansão da nossa capacidade de desfrutar prazeres, sentir satisfação em sermos quem somos e gozar ativamente a vida… São substâncias que visam à propulsão de vôos mais altos do bem-estar subjetivo – armas químicas na guerra de conquista pela torre da felicidade. (…) O problema, porém, é que o que parecia ser apenas um desafio tecnológico vai se revelando uma complexa e espinhosa questão de escolha moral.

Dahmer

André Dahmer

Suponha, para efeito de raciocínio, que todas as dificuldades técnicas e de ordem prática foram vencidas. A “pílula da felicidade instantânea” – uma nova e revolucionária megadroga testada e aprovada pelos órgãos médicos competentes – aterrisou com um estardalhaço maior que o do Viagra nas prateleiras das farmácias. Diante dela, drogas que viveram os seus 15 minutos de glória, como Zoloft, Paxil e Prozac, ficaram tão obsoletas e limitadas como o lampião a gás, o gramofone de manivela e o cinema mudo. O novo remédio não custa mais do que um picolé, não causa dependência física, não suscita uma escalada de consumo, não gera síndrome de abstinência nem possui efeitos colaterais indesejados…

Agora todos podem prosseguir no seu dia a dia, fazendo exatamente o que sempre fizeram para ganhar a vida, mas imersos numa subjetividade exuberante, entregues a uma suave e arrebatadora euforia, sentindo-se como verdadeiros deuses que, ao baixar à Terra, preferiram o simples disfarce de cidadãos comuns… Como no ideal estóico, o Olimpo subjetivo se liberta por completo das vicissitudes do contexto e das circunstâncias objetivas. Se “a felicidade consiste em querer ser o que se é”, como propõe o poeta latino Marcial, então a pílula matou a charada. A felicidade que ela proporciona pode ser adquirida por uma bagatela e levada no bolso da calça. Nem a superpopulação do Olimpo subjetivo impedirá cada um de viver ao sol perpétuo do seu paraíso artificial privativo…

A pílula está aí. Na condição natural do animal humano, a felicidade é um pássaro caprichoso. Voa quando voa e não quando pretendemos que voe. Podemos perfeitamente marcar de antemão os dias da semana em que desejamos fazer exercício físico ou sair à noite, mas seria absurdo supor que podemos escolher na folhinha as datas e ocasiões em que desejamos nos sentir plenamente felizes. O nosso bem-estar subjetivo é refratário aos ditames, decretos-lei e medidas provisórias da vontade consciente. O advento da pílula, entretanto, altera dramaticamente o quadro.

A primeira escolha é: experimentar ou não? A curiosidade, é plausível supor, leva a melhor. Se não é ilegal e se estão todos tomando, por que não? Depois de conhecê-la, contudo, como aceitar a mesmice de dias insípidos, a velha angústia inexplicável do espírito por nenhuma causa? Tendo visitado o paraíso bioquimicamente determinado em que o tempo se redoura por uma bagatela, em nome do quê abrir mão agora do dia de ouro escondido em cada dia?

Uma primeira questão é saber se o atalho químico da felicidade tem caminho de volta, mesmo na ausência de dependência física. O mais provável é que o recurso à pílula, uma vez testado, se torne tão trivial como o consumo de bebidas e aspirinas hoje em dia.

Mas o problema maior, creio, não é a dependência psicológica da droga. É o que ela acarretaria do ponto de vista da condição moral do homem. Quais seriam as implicações práticas e éticas dessa possibilidade? O que o experimento mental da pílula nos diz sobre o conceito de felicidade e sobre o lugar e o papel do bem-estar subjetivo na melhor vida ao nosso alcance? O que esperar do progresso científico e tecnológico para a solução dos problemas éticos e existenciais da humanidade? Se a felicidade é a finalidade maior da vida – o objetivo derradeiro ao qual tudo o mais se subordina -, então por que não viver em estado de embriaguez extática? Ser feliz é só o que importa?

HÁ 75 ANOS, NASCIA JOHN LENNON (1940-1980) – ASSISTA AO DOCUMENTÁRIO COMPLETO “LENNON NYC” (LEGENDAS EM PORTUGUÊS, 1h23min)

LENNON NYC
– Um filme de Michael Epstein –
(Legendado em português)

PBS.ORG: 

LENNONYC takes an intimate look at the time Lennon, Yoko Ono and their son, Sean, spent living in New York City during the 1970s.

“New York became a part of who John and I were,” said Ms. Ono. “We couldn’t have existed the same way anywhere else.  We had a very special relationship with the city, which is why I continue to make this my home, and I think this film captures what that time was like for us very movingly.”

“The period that Lennon lived with his family in New York is perhaps the most tender and affecting phase of his life as a public figure,” said Susan Lacy, series creator and executive producer of American Masters as well as a producer of the Lennon film.  “Just as the generation that had grown up with the Beatles was getting a little older and approaching a transitional time in their lives as they started families, they saw this reflected in Lennon as he grew from being a rock star icon into a real flesh and blood person.”

“I have long been moved by the honesty and directness of John’s music,” said Michael Epstein, LENNONYC director, producer and writer.  “And, by using never-before heard studio talkback of John from this period, I think I was able to give the viewer a window into John Lennon that had not been put to film before.”

Following the breakup of the Beatles, Lennon and Ono moved to New York City in 1971, where Lennon sought to escape the mayhem of the Beatles era and focus on his family and private life.  At the same time, he created some of the most acclaimed songs and albums of his career, most of them written at his apartment at The Dakota on Manhattan’s Upper West Side, including Mind Games, Whatever Gets You Thru the Night, I’m Losing You, and Woman. He also remained highly active in the anti-war movement as well as numerous other progressive political causes.

As much as New York made an impact on Lennon and Ono by offering them an oasis of personal and creative freedom, so too did they shape the city.  At a time when New York faced record high crime, economic fallout and seemed to be on the verge of collapse, Lennon and Ono became a beloved fixture in neighborhood restaurants, at Central Park, at sports events and at political demonstrations.

Lennon and Ono also bonded with millions of their fellow New Yorkers in their experience as immigrants.  The film traces their struggle to remain in the U.S. when the Nixon administration sought to deport them, supposedly based on a narcotics violation, but which Lennon insisted was in response to his anti-war activities.

LENNONYC features never-before heard studio recordings from the Double Fantasysessions and never-before-seen outtakes from Lennon in concert and home movies that have only recently been transferred to video.  It also features exclusive interviews with Ms. Ono, who cooperated extensively with the production and offers an unprecedented level of access, as well as with artists who worked closely with Lennon during this period, including Elton John and photographer Bob Gruen (who took the iconic photograph of Lennon in front of the skyline wearing a “New York City” t-shirt).”

Siga viagem na galeria d’A Casa de Vidro:

NYC Apartamento

Pouco tempo antes de ser assassinado em 1980, Lennon e Yoko flagrados por foto na frente do apartamento onde moravam em NYC

NYC

Lennon e oko

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Yoko & Lennon nas ruas de NYC. Fotografia de Bob Gruen

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NYC4Poster

Ciclistas

John Lennon (1940 - 1980) and Yoko Ono pose on the steps of the Apple building in London, holding one of the posters that they distributed to the world's major cities as part of a peace campaign protesting against the Vietnam War. 'War Is Over, If You Want It'.   (Photo by Frank Barratt/Getty Images)

John Lennon (1940 – 1980) and Yoko Ono pose on the steps of the Apple building in London, holding one of the posters that they distributed to the world’s major cities as part of a peace campaign protesting against the Vietnam War. ‘War Is Over, If You Want It’. (Photo by Frank Barratt/Getty Images)

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Peace

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Também recomendadíssimo:

OS EUA CONTRA JOHN LENNONdownload

Maria Rita Kehl: “Justiça ou Vingança?”

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Justiça ou vingança?
Maria Rita Kehl

Maria-RitaSou obrigada a concordar com Friedrich Nietzsche: na origem da demanda por justiça está o desejo de vingança. Nem por isso as duas coisas se equivalem. O que distingue civilização de barbárie é o empenho em produzir dispositivos que separem um de outro. Essa é uma das questões que devemos responder a cada vez que nos indignamos com as consequências da tradicional violência social em nosso país.

Escrevo “tradicional” sem ironia. O Brasil foi o último país livre no Ocidente a abolir a prática bárbara do trabalho escravo. Durante três séculos, a elite brasileira capturou, traficou, explorou e torturou africanos e seus descendentes sem causar muito escândalo.

Joaquim Nabuco percebeu que a exploração do trabalho escravo perverteria a sociedade brasileira –a começar pela própria elite escravocrata. Ele tinha razão.

Ainda vivemos sérias consequências desse crime prolongado que só terminou porque se tornou economicamente inviável. Assim como pagamos o preço, em violência social disseminada, pelas duas ditaduras – a de Vargas e a militar (1964 a 1985)– que se extinguiram sem que os crimes de lesa-humanidade praticados por agentes de Estado contra civis capturados e indefesos fossem apurados, julgados, punidos.

Hoje, três décadas depois de nossa tímida anistia “ampla, geral e irrestrita”, temos uma polícia ainda militarizada, que comete mais crimes contra cidadãos rendidos e desarmados do que o fez durante a ditadura militar.

Por que escrevo sobre esse passado supostamente distante ao me incluir no debate sobre a redução da maioridade penal? Porque a meu ver, os argumentos em defesa do encarceramento de crianças no mesmo regime dos adultos advém dessa mesma triste “tradição” de violência social.

É muito evidente que os que conduzem a defesa da mudança na legislação estão pensando em colocar na cadeia, sob a influência e a ameaça de bandidos adultos já muito bem formados na escola do crime, somente os “filhos dos outros”.

Quem acredita que o filho de um deputado, evangélico ou não, homofóbico ou não, será julgado e encarcerado aos 16 anos por ter queimado um índio adormecido, espancado prostitutas ou fugido depois de atropelar e matar um ciclista?

Sabemos, sem mencioná-lo publicamente, que essa alteração na lei visa apenas os filhos dos “outros”. Estes outros são os mesmos, há 500 anos. Os expulsos da terra e “incluídos” nas favelas. Os submetidos a trabalhos forçados.

São os encarcerados que furtaram para matar a fome e esperam anos sem julgamento, expostos à violência de criminosos periculosos. São os militantes desaparecidos durante a ditadura militar de 1964-85, que a Comissão da Verdade não conseguiu localizar porque os agentes da repressão se recusaram a revelar seu paradeiro.

Este é o Brasil que queremos tornar menos violento sem mexer em nada além de reduzir a idade em que as crianças devem ser encarceradas junto de criminosos adultos. Alguém acredita que a medida há de amenizar a violência de que somos (todos, sem exceção) vítimas?

As crianças arregimentadas pelo crime são evidências de nosso fracasso em cuidar, educar, alimentar e oferecer futuro a um grande número de brasileiros. Esconder nossa vergonha atrás das grades não vai resolver o problema.

Vamos vencer nosso conformismo, nossa baixa estima, nossa vontade de apostar no pior –em uma frase, vamos curar nossa depressão social. Inventemos medidas socioeducativas que funcionem: sabemos que os presídios são escolas de bandidos. Vamos criar dispositivos que criem cidadãos, mesmo entre os miseráveis –aqueles de quem não se espera nada.


MARIA RITA KEHL, 63, psicanalista, foi integrante da Comissão Nacional da Verdade. É autora de “O Tempo e o Cão – A Atualidade das Depressões” (Boitempo) e de “Processos Primários” (Estação Liberdade). Artigo o
riginalmente publicado na Folha de S. Paulo em Julho de 2015.

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