A construção social da subhumanidade: Judith Butler e a distribuição diferencial da vulnerabilidade e do luto || A Casa de Vidro

“Os animais são todos iguais, mas uns são mais iguais que outros”, escreve com alta carga de ironia George Orwell em A Revolução dos Bichos (Animal Farm). Era um modo lúdico e sagaz do escritor inglês denunciar o abismo entre a enunciação de um ideal, a igualdade, e o mundo como ele é, onde a desigualdade reina.

Na fábula orwelliana, a tirania dos porcos faz uso do recurso ideológico de anunciar, ao menos da boca pra fora, que os “animais são todos iguais”, para na sequência cortar as asas das pretensões dos animais subalternos: “não se assanhem, oprimidos! respeitem a nova ordem!”, dizem os porcos, que se transformaram em nova elite após a Revolução-na-Granja-do-Mr-Jones.

O substrato histórico que inspira Orwell – os descaminhos da Revolução Russa de 1917 quando, após a morte de Lênin em 1924, cai sob o domínio do stalinismo – não impede que a obra aspire a dizer algo universal: revoluções vem e vão, mas o igualitarismo radical permanece travado em sua concretização.

Como o próprio fenômeno Napoleão – nome que Orwell escolhe dar o porco-rei de sua fábula – demonstra na história da Revolução Francesa: do estandarte tricolor que anunciava Fraternidade, Liberdade e Igualdade em 1789, anos depois o que vigia era um Império, envolvido em altas rixas bélicas fora de suas fronteiras, estruturado de maneira hierárquica e personalista tal qual no Antigo Regime supostamente derrubado.

A frase cômica (pois absurda) “mas uns são mais iguais que outros”, item bizarro da ideologia da nova elite porca, que massacra as pretensões de galinhas, cachorros, ratos e outros bichos de pretenderem gozar dos mesmíssimos direitos gozados pela elite suína. É a frase que explicita a tirania disfarçada sobre um linguajar pseudo-democrático. É um item que desvela o absurdo ideológico na base da farsa: um “novo mundo” que promete o igualitarismo mas fracassa em entregá-lo.

“It is for your sake that we drink that milk and eat those apples. Do you know what would happen if we pigs failed in our duty? Jones would come back!” GEORGE ORWELL, Animal Farm. SAIBA MAIS NO SITE DA BBC.UK

Transpondo o problema da fábula literária orwelliana para o campo da filosofia contemporânea, encontramos no pensamento de Judith Butler uma análise magistral da gênese, da reprodução e da conservação das desigualdades e injustiças sociais.

Ela mostra de que modo ocorre a construção social da subhumanidade, a criação artificial de noções ideológicas que fabricam, nos discursos e nas práticas, uma certa parcela da humanidade como se fosse menos que outra.

Uma parcela da humanidade é estigmatizada como menos do que humana por uma outra parcela da humanidade – e neste processo nossas vidas, que teríamos a tentação de dizer que são igualmente precárias pois somos todos mortais, são tratadas diferencialmente em face desta morte que nos une mas nos separa: algumas vidas são construídas como valiosas (e suas perdas são sentidas como catástrofe a ser pranteada), outras vidas são tidas como matáveis (como se “esmaga um inseto no chão”, para lembrar um verso inesquecível de “Let Down” do Radiohead) e indignas de luto.

Em Vida Precáriaescrito sob o impacto dos atentados do 11 de Setembro de 2001 nos EUA e da “Guerra Contra O Terror” que os sucedeu, a filósofa interroga: “a questão que me preocupa, à luz da violência global recente, é: quem conta como humano? Quais vidas contam como vidas? E, finalmente, o que concede a uma vida ser passível de luto?” (BUTLER: 2019, p. 40)

Butler quer saber: por que não deveríamos chorar a perda de um gay de São Francisco que morreu de AIDS tanto quanto a morte de um grande empresário que se acidentou fatalmente em seu jatinho privê? Por que permitimos que certos grupos sociais sejam tratados como menos humanos que outros, e transformados assim em vidas mais precárias e desprotegidas, mais sujeitas à violência e ao descaso com seus corpos?

“Mulheres e minorias, incluindo minorias sexuais, são, como comunidade, sujeitas à violência, expostas à sua possibilidade, se não à sua concretização. Isso significa que somos constituídos politicamente em parte pela vulnerabilidade social de nossos corpos (…) socialmente constituídos, apegados a outros, correndo o risco de perder tais ligações, expostos a outros, correndo o risco de violência por causa da tal exposição.” (JUDITH BUTLER, op cit, p. 40)

Na filosofia de Butler, somos todos “corpos socialmente constituídos”, condenados o apego e à interdependência, ameaçados com a perda de vínculos, correndo o risco da violência – somos sempre corpos políticos, permeados por afetos e vínculos, constitutivamente vulneráveis. Esta vulnerabilidade comum que poderia nos unir, servindo como o universal concreto que propicia nossa solidariedade (somos todos vulneráveis e precários, portanto “ninguém solta a mão de ninguém”), na prática acaba pervertido através disto que estou chamando aqui de construção social da subhumanidade. Que é a construção de razões, justificativas, ideologias e instituições que permitem tratar certos outros como matáveis, extermináveis – no limite, construir o outro como subhumano, como barata (para relembrar Mukasonga e sua pungente narração literária sobre os genocídios em Ruanda).

Por que a humanidade não cessa de dividir-se em richas fratricidas? Poderíamos responder, com Butler: a guerra não pára pois a humanidade ainda não existe, ainda não se consumou. Ela ainda está cindida entre aqueles que, em sua arrogância e húbris, querem reduzir a alteridade e transformar todo o domínio multicolorido da Outridade (para usar o neologismo cunhado pelo Nobel de Literatura mexicano Octavio Paz) em algo que esteja à altura-de-anão da perspectiva binária.

O colorido dos outros, a polifonia de nossas vozes, o “arco-íris terrestre” que supera em cores o celeste (Eduardo Galeno), acaba mutilado e forçado a entrar numa representação de um pebê empobrecido e monofônico no viés daqueles que constrõe alguns outros como sub-humanos. Para que possam fazê-lo, estes altericidas precisam estar acometidos de algo semelhante àquela “cegueira branca” de que José Saramago foi o genial romancista, e que Fernando Meirelles soube levar o cinema com maestria.

A construção social da subhumanidade, conexa às violências bélicas, aos genocídios, aos massacres de fúria étnica, aos pogroms e chacinas entre seitas, está conexa à cegueira de quem vê o mundo distorcido pelo prisma defeituoso que só enxerga branco e preto, oito ou oitenta, nós vs eles…

Em um dos filmes mais significativos para a história da filosofia contemporânea, Examined Life (Vida Examinada), de Astra Taylor, Judith Butler passeia na companhia de Sunaura Taylor em San Francisco. O papo delas é ocasião para levar filosofia pras ruas e realizar um debate sobre as segregações, que se manifestam concretamente nos territórios urbanos, onde o próprio direito à cidade não é estendido igualitariamente a todos: a pessoa na cadeira-de-rodas, por exemplo, tem vários problemas de acessibilidade que não são apenas questões técnicas e logísticas, mas que tem a ver com um acesso impedido à humanidade plena. 

Butler aproveita este diálogo para destacar que as pessoas ditas “normais”, que não tem nenhuma “deficiência” corpórea visível, podem chegar a ter a ilusão de uma radical auto-suficiência. Isto é falso pois a existência humana só se constitui na relacionalidade – e nossa própria formação psíquica inicial depende radicalmente da teia de relações de nossa primeira infância: “somos, desde o início, mesmo antes da própria individualização, e em virtude de exigências físicas, entregues a um conjunto de outros primários: essa concepção significa que somos vulneráveis àqueles que somos jovens demais para conhecer e julgar e, portanto, vulneráveis à violência; mas vulneráveis também a um outro tipo de contato, um que inclui a erradicação do nosso ser, de um lado, e o apoio físico para nossas vidas, de outro.” (Butler, 2019, op cit, p. 51).

Desde o Iluminismo do séc. XVIII, e das revoluções díspares que ele trouxe em seu bojo (pensemos na França em oposição ao Haiti, contrastando os relatos de Michelet e de C.R.L. James), sabemos que revoluções pautadas por um desejo de construção de direitos universais muitas vezes recaem no erro de, uma vez dotadas de poder, construírem a subhumanidade e a matabilidade de uma parcela da humanidade, violando sua própria pretensão de estender os direitos a todos. Os jacobinos franceses chegaram ao absurdo supremo: decretaram os direitos universais, e excluíram deles dois terços da humanidade, ou seja, as mulheres e as populações sob o domínio colonial do Império Francês.

Quem ousou denunciar estes absurdos, como Olympe de Gouges, perdeu a cabeça nas guilhotinas do Terror revolucionário jacobino. Além de regicidas, os jacobinos, sob a tirania de Robespierre, também cortaram cabeças de feministas e de artistas que denunciavam a construção social da subhumanidade, por exemplo, da população do Haiti – lá onde triunfaria uma outra estirpe de revolução, propulsionada por Toussaint L’Ouverture  e os “jacobinos negros”.

A obra tão preciosa de Judith Butler está aí para nos ensinar caminhos para a desconstrução criativa daquilo que nos mantem atados a sociedades violentas e brutalmente desiguais. Para isso, a filósofo politiza a questão do luto, em sintonia com o conceito feminista de que “o pessoal é político”. Para ela, o luto – o pesar pela perda de um certo vínculo com algum outro – é sempre o índice do quanto somos animais sociais, zoon politikon:

“Muitas pessoas pensam que o luto é privado, que nos isola em uma situação solitária e é, nesse sentido, despolitizante. Acredito, no entanto, que o luto fornece um senso de comunidade política de ordem complexa, primeiramente ao trazer à tona os laços relacionais que têm implicações para teorizar a dependência fundamental e a responsabilidade ética. (…) A paixão, o luto e a raiva nos arrancam de nós mesmos, nos prendem a outros, nos transportam, nos desfazem, nos envolvem, irreversível, se não fatalmente, em vidas que não são as nossas.” (p. 45)

O luto é um lócus onde podemos ler a construção social da subhumanidade: todos os animais humanos são mortais, mas alguns quando morrem não merecem ser chorados. Assim reza a cartilha do luto na boca daqueles que se arrogam o direito de construir parcelas da humanidade como sub, inferiores, matáveis.

Judith Butler nos faz questionar por que somos ensinados a não chorar quando ouvimos falar de palestinos sendo massacrados sob as bombas do estado de Israel sob domínio sionista, mas choramos copiosamente quando a mídia, via Fox News ou Rede Globo, nos pinta o comovente retrato de um soldado do Exército dos EUA que perdeu a vida nos campos-de-batalha do Iraque, supostamente defendendo “a democracia e a liberdade”. Por que ouvir sobre um massacre perpetrado por policiais contra pessoas encarceradas não desperta a mesma comoção pública de luto coletivo quanto o suicídio de um popstar ou astro de Hollywood?

O célebre silogismo que marca a história da filosofia, com sua lógica aparentemente irrefutável – todos os homens são mortais, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal -, na verdade esconde algo que a reflexão ética e o escrutínio crítico da nossa vida coletiva é capaz de desnudar: todos morremos, sim, mas alguns morrem e isto é um catástrofe que muitos irão chorar, enquanto outros morrem e quase todo mundo dá de ombros e, sem sentir muita coisa, nem piedade nem indignação, deixa que sejam enterrados sem que mereçam a esmola de uma lágrima ou de um pensamento enternecido e dilacerado pelo luto.

É verdade que uma mortalidade comum nos une, mas a vulnerabilidade que nos é constitutiva não passa através do “prisma” social sem distorções: algumas vidas são construídas como mais vulneráveis, mais expostas à violência, mais precárias. Importa muito, ou seja, é de uma pertinência urgente, que possamos perceber “as formas radicalmente injustas que a vulnerabilidade física é distribuída globalmente”, como escreve Butler, cuja ética, inspirando-se em Lévinas mas também no “farol moral” de Arundhati Roy, envolve necessariamente a postura de quem atenta para a dor do outro, sensível ao que ele padece, levando em consideração seu rosto, ainda que emudecido pela morte ou ainda vivo mas nas contorções de uma vida sufocante ou de uma morte indigna: através da “consideração da vulnerabilidade dos outros”, ensina Judith, “poderíamos avaliar criticamente e nos opor às condições em que certas vidas são mais vulneráveis do que outras e, assim, certas vidas humanas provocam mais luto do que outras.”

Gaza, July 2014Gaza, Julho de 2014

Escrevi, em 2014, um texto em inglês para o blog Awestruck Wanderer que tentava refletir filosoficamente sobre a dificuldade de “apertar as mãos com a dor dos outros”. O moralista La Rochefoucauld fornece o mote ao dizer que “nem sempre temos a força necessária para suportar os males dos outros”. De fato, não há caminho fácil para a solidariedade, nem exercício indolor da virtude crucial da empatia. É preciso abraçar a aventura da abertura que é descobrir, em todo a glória e em todo o horror, a vulnerabilidade de cada um de nós. Corpo mortal, finito, transitório, ameaçado de morte durante toda sua vida, sou um corpo social cuja vulnerabilidade o congrega a todos os outros corpos sociais, mas  é preciso também perceber os abismos que nos separam devido às injustiças na distribuição das vulnerabilidades. Butler, assim, torna-se nossa aliada imprescindível no processo de desnudamento e superação dos estratagemas sócio-políticos envolvidos na construção da subhumanidade e da matabilidade alheia.

Escrevendo nos EUA pós-11 de Setembro, Butler diz, sobre os obituários da grande imprensa:

“nunca escutamos os nomes dos milhares de palestinos que morreram pelas mãos dos militares israelenses apoiados pelos EUA, ou o número indiscriminado de crianças e adultos afegãos. Eles têm nomes e rostos, histórias pessoais, famílias, passatempos favoritos, lemas pelos quais vivem? (…) Se 200.000 iraquianos foram mortos durante a Guerra do Golfo e seu rescaldo, teríamos nós uma imagem, um enquadramento para qualquer uma dessas vidas, individual ou coletivamente? Haveria uma história que podemos encontrar na mídia sobre essas mortes? Haveria nomes ligados a essas crianças?… Não existem obituários para as vítimas da guerra que os Estados Unidos infligem… o obituário funciona como o instrumento pelo qual a injustiça é publicamente distribuída. (…) As vidas queer que desapareceram no 11 de Setembro não foram publicamente acolhidas na identidade nacional construída nas páginas dos obituários… Mas isso não deveria ser surpresa quando pensamos quão poucas mortes causadas pela AIDS foram passíveis de luto público, e como, por exemplo, o grande número de mortes ocorrendo agora na África não é também evidenciado ou suscetível ao luto na mídia.” (pg. 53-54-56)

A reflexão crítica de Butler, em Vida Precária, nos leva a questionar sobre porquê choramos tão pouco diante dos destinos daqueles que estão detidos sem julgamento em Guantánamo, ou que estão num campo de concentração a céu aberto em Gaza, ou estão amontoados em campos de refugiados ou presídios super-lotados. O livro inclui uma contundente defesa do direito ao dissenso e à liberdade de expressão: Butler diz que não devemos calar nossas críticas contra o imperialismo dos EUA ou contra o sionismo de Israel devido ao temor de sermos taxados como “aliados do terrorismo islâmico” ou “anti-semitas”. A desqualificação do discurso crítico e da denúncia das violações de direitos humanos básicos se dá com frequência, no contexto atual, através da falsificação do dissenso como se fosse traição, quando na verdade é a mais alta responsabilidade do intelectual público estar ao lado dos que foram injustamente detidos e torturados em Abu Ghraib, dos que não tem o “direito a ter direitos” nos territórios palestinos ocupados pelo exército sionista, dos que são chacinados pela polícia ou pelo descaso estatal nas favelas, nos guetos, nos bantustões…

Enxergar a humanidade neles, abraçar sua dor, criticar a desumanização que lhes é imposta, não significa apenas se revoltar contra aquilo que Renato Russo cantava (“a humanidade é desumana…”), é dedicar-se à refazenda de nossa própria humanidade. A humanização é sem fim ainda que a humanidade um dia finde. Para que os humanos possam ser de fato “corpos em aliança”, unidos na vulnerabilidade, juntos no “nós” da revolta contra a desumanização (“eu me revolto, logo somos”, ensinava Camus), é preciso primeiro corroer através da crítica e da ação política tudo aquilo que constrói a subhumanidade alheia, convidando a matar e não chorar – o mais desumano dos atos e que, paradoxalmente, muitas vezes é praticado justamente por aqueles que de modo mais arrogantes se auto-proclamam como os porta-vozes do humano.

Arte de Luciana Siebert

Conceição Evaristo tem uma frase famosa: “eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer.” Aí se expressa uma união que nasce do próprio âmago da vontade de sobrevivência, esta que é a mais primeva e a mais intensa das forças que nos habitam: o que Spinoza chamou de conatus, e que Kalil Gibran disse ser “a ânsia da vida por ela mesma”. As pessoas que estão sob ameaça maior de perder a vida pois encontram-se em situação de precariedade, vulnerabilidade, risco, aquelas pessoas que os poderosos de certo modo marcam para morrer, aquelas pessoas que os políticos palacianos calculam que não valem o esforço de tentar salvar, pessoas que podem tranquilamente perecer, pessoas para quem está vigente o descaso absoluto de uma política do deixar-morrer, são justamente estas as pessoas que precisaram organizar-se de modo solidário.

A união de fato faz a força para quem foi destituído por outrem a ponto de ser forçado à posição de fraco. Judith Butler é uma pensadora-ativista que convoca nossos afetos, a exemplo de Conceição Evaristo, a uma espécie de fratria dos fracos, uma sororidade dos despossuídos, uma aliança dos marginalizados, uma força coletiva que nasça da precariedade de cada um para transformar-se na força de todos, no raiar da consciência salutar e imprescindível de nossa interdependência. Caso estejamos dispersos e desunidos, eles que combinaram de nos matar vão triunfar. Nós, que preferimos a vida ao capital, o amor à ganância, a diversidade em flor ao purismo dos racistas, devemos nos insurgir conjuntamente para que o berro agonizantes dos eugenistas não triunfe, e sim todo o colorido de uma queer-Idade que faça valer, enfim, o mote de Rosa Luxemburgo: “Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.”

QUANDO A ECONOMIA SE TORNA O BERRO AGONIZANTE DOS EUGENISTAS 
Judith Butler em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil (Maio de 2020):
 
“As políticas sociais são armadas e aplicadas de maneira a se configurar como a morte das populações marginalizadas, especialmente, das comunidades indígenas e das populações carcerárias, também daqueles que, como resultado de políticas públicas racistas, nunca tiveram um tratamento de saúde adequado. Afinal, a taxa de mortes nos Estados Unidos neste momento está diretamente correlacionada à pobreza e privação de direitos das populações negras. Quando nos referimos àqueles com “complicações prévias de saúde” estamos geralmente nos referindo àqueles que nunca tiveram a assistência e diagnóstico que precisaram e certamente mereciam. E esse é apenas um dos efeitos mórbidos do capitalismo de mercado. Nós deveríamos usar esse momento para pensar em práticas universais de sistemas de saúde e sua relação com um socialismo global que esclareça o jeito como somos todos interdependentes.
Temos que deixar bem claro que todos os humanos possuem igual valor. E ainda assim a maioria de nossas ideias sobre o que é ser humano implica em estruturas radicalmente desiguais porque algumas pessoas tornam-se mais “humanas” ou “valiosas” aos olhos do mercado e do Estado. Nós ainda não sabemos como seria o humano se nos imaginássemos todos possuindo o mesmo valor. Essa seria uma nova imagem de humano, uma nova ideia e horizonte. Quando ouvimos falar sobre a “saúde” da economia sendo mais importante do que a “saúde” dos trabalhadores, dos idosos e dos mais pobres, somos convidados a desvalorizar o humano para que a economia reine acima dele. Agora se “saúde econômica” significa expor o trabalhador à doença e à morte, então nos voltamos à produtividade e ao lucro, não à “economia”. A brutalidade do capitalismo se apresenta às claras, sem nenhum pudor: o empregado deve ir trabalhar para conseguir viver, porém o local de trabalho é onde sua vida é colocada em risco. Marx já dizia isso na metade do século XIX e assustadoramente esse pensamento ainda se aplica à nossa realidade.
 
Talvez ainda não tenhamos nos decidido entre ficar chocados pela compreensão de que existe uma interdependência global como um fato inerente à nossa existência no planeta ou se seremos puxados de volta ao relato de nossas fronteiras e identidades, lógicas de mercado e individualismo. O que parece claro é que essa dúvida faz parte do nosso desafio contemporâneo. Depende de conseguirmos nos enxergar como criaturas porosas, aquelas em constante troca com os ambientes pelos quais transitam, coabitando com todas as outras formas de vida. E mesmo assim as fantasias da autossuficiência ainda são os resquícios de nossa cultura masculina, e as fantasias de autossuficiência nacional são formas fracas (porém atraentes) de ideologia. Faria toda a diferença nos entendermos como seres interpelados (chamados à ação) por um vírus para conseguirmos nos tornar uma comunidade global, não uma que é apenas efeito da globalização. Agora temos a chance de criarmos novas formas de solidariedade baseadas na ideia de que nossa vida é uma corrente de relações interdependentes. Ambos, indivíduo e nação, terão que ser repensados através dessa nova ótica.
 
A interseccionalidade (categoria teórica que focaliza múltiplos sistemas de opressão a um mesmo sujeito, em particular, articulando raça, gênero e classe) permite que enxerguemos quem é desproporcionalmente afetado pelo vírus, aqueles desproporcionalmente desprotegidos e expostos. Isso porque aqueles cuja morte é mais provável tendem a ser pobres, indígenas, pessoas de raças marginalizadas, aqueles que não possuem o privilégio de ter seguro de saúde. Mulheres que antes já eram impedidas de desempenhar certas funções, que aceitam o trabalho doméstico sem salário, que sofrem abuso em suas casas – todas essas comunidades estão em grande perigo. Deste modo, o que a interseccionalidade nos permite ver é que uma ameaça de doença e morte aumenta em populações que acumulam categorias de discriminação, aqueles corpos que não podem escolher a qual minoria pertencem por estarem com mesma intensidade na intersecção de várias minorias.
 
Pensando como ambos, Trump e Bolsonaro, são favoráveis à abertura da economia mesmo que isso signifique o aumento de mortes de populações vulneráveis, entendemos que esses líderes políticos percebem que essas “comunidades vulneráveis” são mais propensas a sofrerem as consequências do colapso da saúde, e não veem problema algum nisso. Eles não imaginam que seus operários mais jovens e produtivos morrerão. Mas muitos deles podem contrair o vírus e se tornarem focos de transmissão quando voltam para suas casas. Pode ser que eles não compreendam a seriedade da situação, mas também pode ser o caso de estarem dispostos a deixarem corpos morrerem em favor da economia. Bolsonaro parece acreditar no darwinismo social onde apenas os mais fortes sobreviverão, e que apenas os fortes merecem sobreviver. Ele até se imagina imune ao vírus – sua última forma de fantasia narcisista. O narcisismo de Trump difere do de Bolsonaro, pois seu único feito é contabilizar votos em sua mente. E ele não vencerá a próxima eleição se a economia estiver fraca. “É a economia!” se torna agora o grito agonizante dos novos eugenistas.
 
Não me vejo como uma teórica do neoliberalismo e tenho consciência da complexidade desse debate. Eu diria que neste momento há uma estrutura econômica em que números crescentes de pessoas estão em condições limítrofes de vida, expostos à morte, acumulando precariedades. Também há poucas restrições às corporações bilionárias que acumulam riquezas, superando o poder econômico da maior parte dos países. Nós deixamos que essa desigualdade econômica ganhasse forma e agora estamos vendo através de gráficos o quão facilmente a vida dos mais vulneráveis é abandonada e destruída. Minha aposta é de que as versões inalteráveis de masculinidade e feminilidade serão reencenadas dentro de novas formas no liberalismo, mas que o neoliberalismo não é capaz de produzir novas formas de gênero radicalmente diferentes. Ao pedir que pessoas fiquem em casa, os governantes presumem que as casas possuem uma estrutura de cuidado, que a divisão de gênero do trabalho funciona, que mulheres – mesmo quando ainda empregadas e trabalhando de casa – também assumirão os afazeres domésticos e os cuidados com os filhos. Algumas casas não são constituídas por famílias tradicionais, algumas pessoas vivem sozinhas, outras em abrigos com desconhecidos. E mulheres são profundamente atingidas pela violência de gênero quando ficam impedidas de procurar ajuda externa. Então devemos ter em mente que o gênero está sendo redefinido pelo confinamento, para então fazermos o possível para manter vivas as correntes de afeto, comunidades, alianças queer e solidariedade online até podermos, mais uma vez, demonstrar nossos números nas ruas.” (BUTLER, 2020)
 

Novo livro de Judith Butler, “O Poder da Não Violência”

 

Eduardo Carli de Moraes
Abril e Maio de 2020

SAIBA MAIS: Acesse A Casa de Vidro – https://wp.me/pNVMz-6hU

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTLER, JudithVida Precária: Os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
————-. Quando a economia se torna o berro agonizante dos eugenistas – Entrevista ao Le Monde Diplomatique. Maio de 2020.
GARFIELD, R. Morbidity and Mortality among Iraqi Children from 1990 through 1998: Assessing the Impact of the Gulf War and Economic Sanctions. Link.
LUXEMBURGO, Rosa.
ORWELL, George. Revolução dos BichosAnimal Farm. Via site da BBC.

OUTRAS LEITURAS SUGERIDAS:

A PALAVRA DECAPITADA – O destino emblemático de Olympe de Gouges (1748 – 1793), feminista e anti-escravagista decapitada pelos jacobinos

A PALAVRA DECAPITADA

Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

“Homem, você é capaz de ser justo? Quem te deu o soberano império de oprimir o meu sexo?” – Olympe de Gouges (1748 – 1793)

Em Novembro de 1793, ela foi guilhotinada em Paris. Dois anos antes, havia escrito: “A mulher tem o direito de subir ao cadafalso; deve ter igualmente o de subir à Tribuna.” (Declaração dos direitos da mulher e da cidadã – 1791). Olympe de Gouges – feminista, anti-escravagista, dramaturga e ativista – ousou fazer ressoar sua voz e seu verbo numa era de silenciamento da mulher.

As palavras que escreveu e falou foram as razões principais de sua subida ao cadafalso, pois ela havia feito de sua vida uma radical tribuna onde manifestar suas opiniões. Ardente na defesa do igualitarismo entre os gêneros, bandeira impopular junto ao Patriarcado da época, despertou a fúria e a intolerância por parte dos agentes da dominação masculina, que também existiam às mancheias entre os jacobinos – os que se pretendiam renovadores da ordem social carcomida a que se chamou Antigo Regime.

Olympe é condenada à pena capital em uma época marcada pela hegemonia do “Comitê de Salvação Pública” chefiado por Robespierre. Entre 1793 e 1795, aquilo que ficou conhecido como “O Terror”, perpetrado por uma ala dos revolucionários jacobinos, estava então a todo gás, com a realeza e os girondinos sendo varridos da face da terra com inclemência.

Quais foram os crimes que Olympe de Gouges cometeu para merecer perder a vida no mesmo cadafalso onde rolaram as cabeças do rei Luís XVI e da rainha Maria Antonieta? São algumas das questões que a excelente graphic novel de Catel & Bocquet responde com muita classe.

“Em Montauban de 1748, nasce Marie Gouze, criada sob as convenções da França setecentista. Aos 18 anos, mãe e viúva, se vê livre para expressar suas ideias e adota o pseudônimo Olympe de Gouges. Anos depois se muda para Paris, onde participará ativamente da vida política e cultural. Fiel leitora de Rousseau, inspiradas pelas ideias libertárias da França pré-revolucionária, Olympe se dedica intensamente à escrita – atividade que levaria até os últimos dias de sua vida e que a causaria muitos problemas.

Conquistou inimizades e escandalizou os mais conservadores, porém jamais deixou de defender seus ideais libertários. Em 1791, redigiu a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, reivindicando a igualdade entre os sexos e o direito ao voto. Com muita beleza, esta graphic novel conta a trajetória de uma mulher que carimbou seu nome na história da Revolução Francesa. Dos consagrados quadrinistas José-Louis Bocquet e Catel Muller, a HQ retrata através de belos traços os incríveis cenários e personalidades da França do século XVIII.” – Editora Record

Quando triunfou a revolução burguesa na França de 1789, alçando-se para enterrar a monarquia absolutista, os privilégios do clero e as velhas tiranias da realeza, os revolucionários publicaram a famosa “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”. Seu primeiro artigo anunciava: “todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”.

Ao invés de falar em “todos os seres humanos”, prefere-se o masculinismo da expressão “todos os homens”, mas o problema vai bem além de uma mera querela linguística. Na prática, as mulheres se viram excluídas dos direitos de cidadania e os revolucionários que proclamaram a república não tiveram a delicadeza ou a dignidade de conceder a todos os cidadãos o direito a um sufrágio de fato universal (as francesas só conquistam o direito ao voto em 1945!).

É contra isso que Olympe de Gouges se insurge.

Levantando-se para acusar a contradição entre o universalismo dos direitos (defendido na teoria) e os evidentes privilégios conservados pela dominação masculina (que seguiram vigentes na prática), Olympe de Gouges tornou público, em 1791, sua “Declaração Dos Direitos Da Mulher e da Cidadã”. Seus 17 artigos eram sucedidos por uma convocação: “Mulheres, acordem! (…) Quando vocês deixarão de ser cegas? Quais as vantagens que vocês obtiveram da Revolução?” (p. 163)

Eram tempos em que as Luzes do Esclarecimento ameaçavam se difundir para além dos pensadores-machos da Europa como Rousseau, Voltaire, Diderot, Kant, Hume, Helvétius, Condorcet etc. A liberdade de expressão era testada até seus limites, com filósofos ousados que insurgiam-se contra aquilo que percebiam como injustiças a serem reparadas – como fez Voltaire com o Caso Calas.

Na Inglaterra, Mary Wollstonecraft fazia história com seus textos feministas, sobretudo o hoje clássico “Vindication of The Rights of Woman”, texto em que polemiza, de cabeça erguida e argumentação arrojada, contra o tratado pedagógico Emílio, de Rousseau, que pregava a segregação de gênero na educação (Emílio e Sofia não sendo dignos, segundo o filósofo de Genebra, de uma educação igualitária):

“Rousseau declara que uma mulher não deveria sentir-se independente, que ela deveria ser governada pelo temor de exercitar sua astúcia natural e feita uma escrava coquete, a fim de tornar-se um objeto de desejo mais sedutor, uma companhia mais doce para o homem, quando este quiser relaxar… No que diz respeito ao caráter feminino, a obediência é a grande lição a ser inculcada com extremo rigor. Que bobagem!”  – MARY WOLLSTONECRAFT (Boitempo, p. 47)

Além disso, nos agitados salões da intelectualidade parisiense, uma efervescência de agitação feminista também se notava, sobretudo ao redor das esposas de Condorcet e Helvétius.

Às vésperas da Revolução, Olympe escrevia e encenava peças de teatro – como “L’Esclavage des Nègres” (1774) – que causaram imenso rebuliço e polêmica, em especial aquelas que denunciavam a escravidão que o Império Francês praticava em suas colônias. Ativista feminista e abolicionista, Olympe de Gouges punha o dedo na ferida e denunciava o quanto o capitalismo francês retirava seus lucros a partir da escravização em massa de africanos.

“Registre-se que no ano de 1789 a metade do comércio exterior da França e a formação de imensas fortunas tinham base na exploração das riquezas minerais e vegetais das colônias. Além disso, muitos dos que se beneficiavam do comércio colonial eram também proprietários e traficantes de escravos e tinham na escravidão negra a base de suas fortunas.” (Dallari, p. 55)

É nesse contexto que se dá a atividade de denúncia e mobilização realizada por Olympe de Gouges. Dedicada a causar impacto na opinião pública, Olympe chegou a espalhar cartazes por Paris em que atacava com agressividade a figura de Robespierre: “Tu te dizes o autor da Revolução, tu não foste isso, tu não és, tu não serás eternamente mais do que o opróbrio e a execração. Teu hálito infecta o ar puro que nós respiramos. Tu pretendias estabelecer um caminho sobre os despojos dos mortos e subir pelos degraus da mortandade e do assassinato ao andar superior. Grosseiro e vil conspirador!” (Dallari, p. 130)

A acusação lançada contra Olympe, base legal para sua condenação à pena capital, fala das “intenções pérfidas dessa mulher criminosa” que “escreveu e mandou imprimir obras que não podem ser consideradas a não ser como atentados à soberania do povo, pois elas tendem a questionar o que foi formalmente expresso pelo povo na votação” em que “a maioria dos franceses foi a favor do governo republicano” (Dallari, p. 136). Olympe de Gouges, de fato, apesar de feminista e anti-escravagista, havia permanecido aliada ao campo girondino e à defesa da monarquia constitucional.

Naquela manhã de 3 de Novembro de 1793, Olympe foi conduzida coercitivamente para uma das 5 guilhotinas que funcionavam em Paris. Na Place de la Révolution, diante de uma platéia que acompanhava os suplícios como se fossem excitantes espetáculos, debaixo das vaias e das injúrias lançadas contra ela inclusive por damas tricoteiras da elite (grau de sororidade: zero!), teve sua cabeça separada do tronco pelo despencar da lâmina.

Hoje, o nome de Olympe de Gouges está na História como um emblema do movimento feminista nascente na época iluminista, como uma daquelas que “levam a sério a promessa da igualdade e da autonomia” (Varikas, p. 91), e seu busto está na Assembléia Nacional da França. É um dos exemplos mais citados por aquelas que levantam bandeiras como “Lute Como Uma Garota!”, “Meu Corpo, Minhas Regras!” e “Lugar de Mulher É Onde Ela Quiser!”. Está com seu lugar garantido na galeria de mulheres insubmissas e libertárias, na companhia de Mary Wollstonecraft, Flora Tristán, Sojourner Truth, Simone de Beauvoir, Frida Kahlo, Rosa Parks, Maya Angelou, Audre Lorde, Toni Morrison, Bell Hooks, Malala Yousafzai, Marielle Franco (dentre tantas outras). A palavra desta decapitada ainda vive!

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

CATEL; BOCQUETOlympe de Gouges – Feminista, Revolucionária, HeroínaEd. Record, 1a, 2014.

DALLARI, D. A. Os Direitos da Mulher e da Cidadã, por Olímpia de Gouges. Ed. Saraiva, 2016.

VARIKAS, Eleni. Pensar o Sexo e o Gênero. Ed. Unicamp, 2016.

BARCELLA, Laura; LOPES, Fernanda (orgs). Lute Como Uma Garota – 60 Feministas Que Mudaram o Mundo. Cultrix, 2018.

WIKIPÉDIAhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Olympe_de_Gouges.

WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação Dos Direitos da Mulher. Ed. Boitempo, 2018.

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Jesus Cristo segundo Paulo Leminski

“Ecce Homo”, de Caravaggio

 JESUS SEGUNDO LEMINSKI

Uma exploração da bio publicada em “Vida” (Cia das Letras)

por Eduardo Carli de Moraes

O signo Jesus é um dos mais polissêmicos da História humana: sobre o crucificado empilham-se interpretações inumeráveis. Leminski, quando produz sua biografia, publicada em 1984, procura apresentar sua perspectiva de Jesus como um “subversor da ordem vigente, negador do elenco dos valores de sua época e proponente de uma utopia“. Também deseja “revelar o poeta” por trás do profeta (p. 159). A obra inicia-se brincando de noticiário e relatando feito imprensa marrom um factóide ocorrido em Jerusalém:

Pintura de Rembrandt: Jesus expulsa os vendilhões do Templo.

Pintura de Rembrandt: Jesus expulsa os vendilhões do Templo.

“Alguém que atende pelo nome de Jesus invadiu as dependências do Templo, agredindo e expulsando toda a casta de vendedores que ali exercia seu ofício. O lunático, galileu pelo sotaque, entrou, subitamente, chutando as mesas dos mercadores de pombas e outros animais destinados ao sacrifício. Na confusão que se seguiu ao incidente, entre as moedas que rolavam pelas escadas, gaiolas quebradas, pombas que voavam, acorreram os guardas, que não conseguiram deitar mãos no facínora. O tal Jesus desapareceu no meio da multidão. A reportagem apurou que o referido é natural de Nazaré, na Galileia, filho de um carpinteiro. Arrebanhou inúmeros seguidores entre os pescadores do mar da Galileia. Dizem que opera milagres. E descende, por linha direta, do rei Davi.” (p. 160)

O Jesus de Leminski raia no céu do livro com certos arroubos anarquistas, enfurecido contra os adoradores do vil metal, movido pelo desejo de dilacerar os idólatras do bezerro de ouro. Este gesto radical interessa intensamente a Leminski, que sabe muito bem que um poeta não precisa traficar somente com palavras escritas, mas pode expressar-se com seus atos, através de seus ditos e feitos. Como Sócrates e Sidarta Gautama (o Buda) antes dele, Jesus não deixou nada escrito de próprio punho; no entanto, “mudou o mundo como poucos” (p. 165).

Para compreender as raízes e o contexto sócio-cultural de onde emergiu Jesus de Nazaré, Leminski faz-se historiador e pondera:

“O Oriente Médio era o lugar culturalmente mais rico da Antiguidade. (…) Essa parte do globo, afinal, foi berço do judaísmo, do cristianismo e do Islã, as religiões de Moisés, Jesus e Maomé. Não nos deixemos iludir pelas aparentes diferenças entre essas três confissões religiosas, nem por seus conflitos históricos. Com variantes de detalhes, as três afirmam, no fundo, os mesmos princípios: o tribal monoteísmo patriarcalista, o moralismo fundado em regras estritas, a tendência ao proselitismo expansionista, a intransigência. ‘Não haverá outros deuses diante de ti’, parecem dizer as três, afirmando Javé, Jesus e Alá.”

Jesus insere-se numa longa tradição de profetas que anunciam o advento futuro de um certo Reino de Deus, “a começar por esse extraordinário Isaías, que Jesus, superpoeta, gostava de citar. (…) Pela extrema criatividade imagética, voos quase surrealistas de fantasia, vigor e pujança de expressão e formulação, Isaías tem de ser contado entre os grandes poetas da humanidade, no time de Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Bashô, Goethe.” (p. 167)

Leminski também sabe muito bem que o ofício dos profetas do Antigo Testamento desenvolve-se “no auge das agruras que afligiram o povo hebreu, estraçalhado entre os poderes do Egito e da Babilônia-Assíria. (…) Nesse quadro, os profetas exerceram agudo papel político, como assessores e conselheiros dos reis de Judá e Israel. Alguns pagaram com a vida esse envolvimento direto com a História. Quer a lenda que Isaías, aos cem anos de idade, por intrigas de cortesãos, foi acusado de alta traição, condenado à morte e serrado ao meio. (…) A profecia sempre foi uma profissão perigosa.” (p. 168-169)

Jesus, antes de mais nada, é um judeu, que traz em seu próprio corpo a marca de sua pertença aos hebreus: “era circuncidado”. Já adulto, aos 30, Jesus será batizado por João no Rio Jordão, um rito “articulado com a confissão dos pecados, com a categoria ascética da penitência. (…) Entre os judeus, esse rito parece que começou a competir com o da circuncisão, a ablação do prepúcio, que sempre foi, desde Abrão, a marca distintiva do Ham Israel. A história dos conflitos originais entre o judaísmo e o cristianismo poderia ser, liturgicamente, entendida como uma luta entre os ritos da circuncisão e do batismo.” (p. 171-172)

Entre Moisés e Jesus, há um abismo de tempo, cerca de um milênio. Segundo Leminski, “Jesus veio para exagerar a pureza da doutrina de Moisés” (p. 174):

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Moisés

“Entre Moisés e Jesus, há, pelo menos, um bom milênio. Natural que, em mil anos, a religiosidade judaica tenha evoluído para exigências mais sofisticadas e formas mais complexas e abstratas de expressão. Afinal, quando Moisés formulou a Lei, os hebreus eram um povo de beduínos nômades, recém-fugido do cativeiro no Egito, onde os faraós da XXIII Dinastia os empregavam, como escravos, entre dezenas de outros povos, na edificação dos templos e palácios que fizeram a glória do país do Nilo. Depois disso, o povo hebreu passou por uma extraordinária peripécia histórica, conquistando Canaã, constituindo-se em Estado, triunfando com o rei Davi, prosperando com seu filho Salomão, vivendo, enfim, toda a complexidade política e militar dos reinos semitas do Oriente Médio, primeiro, estraçalhado entre as superpotências egípcia e assíria, depois, invadido por persas, gregos macedônios e, enfim, romanos. Por bem ou por mal, a Palestina e o povo hebreu se viram envolvidos pela imensa onda de helenismo que desabou sobre a Ásia com a invasão de Alexandre. A doutrina de Jesus representa uma resposta criativa aos novos tempos que o povo judeu vivia.” (p. 176)

Pieter Brueghel, O Jovem - Cristo e a Adúltera (1600)

Pieter Brueghel, O Jovem – Cristo e a Adúltera (1600)

Jesus não respeita com ortodoxia perfeita os rituais mosaicos, como prova o episódio célebre da adúltera. Uma mulher foi pega no flagra traindo seu marido e “conforme a lei mosaica, a adúltera deveria ser apedrejada pelo povo até a morte” (p. 177). Um sintoma evidente de que estamos diante de uma religião patriarcal e, portanto, machista, é o fato de que o homem que pratica o adultério não é de modo algum sujeito a tais rigores punitivos. Dois pesos, duas medidas. Diante do iminente apedrejamento da adúltera, Jesus lança a provocação:

Quem não tiver pecado
Atire a primeira pedra.

Leminski comenta:

“Homem assim não ia ter vida longa nem morrer na cama. Ia ter um fim como João, seu ‘guru’ e batista, que teve a cabeça cortada por Herodes. Isaías, serrado ao meio. Jeremias, exilado no Egito… A vida de um nabi não era muito segura. Não se brinca, impunemente, com os poderes deste mundo. Jesus chegou a tocar no sacrossanto repouso do sábado, talvez, com a circuncisão, os dois ritos fundamentais do judaísmo. É extraordinariamente minucioso o elenco de proibições, interditos e tabus do sábado judaico, o dia em que se repete, ritualmente, o descanso de Javé, no sétimo dia, depois de criar o universo. No sábado judeu, as atividades são reduzidas a um mínimo. Rabinos extremamente meticulosos, ao longo dos séculos, foram legislando os gestos que violam o sábado, indo do trabalho à alimentação da vida diária à sexual, limitando até o número de passos lícitos, nesse dia de não fazer nada. Ora, sucedeu que, num sábado, discípulos de Jesus passavam ao lado de um campo de trigo. Estavam com fome, agarraram espigas e as comeram. Fariseus estavam presentes e, escandalizados, interpelaram Jesus: ‘Teus discípulos violam o sábado’. É proibido colher nesse dia. Jesus arrasou: ‘O sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado’.” (p. 178)

Agindo menos como teólogo e mais como historiador, Leminski prefere retratar Jesus em seu contexto social e político, em suas interações intersubjetivas, não se aventurando muito a comentar ou criticar as lendas transformadas em dogmas – como a concepção imaculada ou a ressurreição no terceiro dia após a execução. Jesus é essencialmente uma figura subversiva aos olhos do status quo imperial romano, essencialmente um inovador perigoso que é visto com desconfiança pelas autoridades judaicas instituídas. Por isso a biografia leminskiana tem um certo sabor realista, similar àquele que anima o filme de Pier Paolo Pasolini, O Evangelho Segundo Mateus. Podemos polemizar o quanto quisermos sobre os supostos super-poderes milagreiros do nazareno, mas o inegável é que, como figura histórica, Jesus torna explícitos os conflitos, no Oriente Médio, entre Roma e as populações pelo império oprimidas:

“Na teocracia semita, o líder religioso é sempre chefe político. E vice-versa. Basta ver o caso do Irã do Ayatolah Khomeyni. Descendente do rei David, Jesus era o líder carismático do povo numa guerra de libertação contra o imperialismo romano. Sua condenação final diante do poder de Roma, encarnada na pessoa do procônsul Pôncio Pilatos, é significativa: o povo o aclamava, abertamente, como rei. Ao colocar sobre a cruz onde o supliciavam uma placa com a inscrição ‘Jesus de Nazareth, Rei dos Judeus’, os romanos mostravam que não estavam brincando em serviço.

Deixemos de lado as lendas messiânicas sobre o nascimento em Belém. Jesus sempre é chamado de ‘nazareno’, natural de Nazaré. E os primeiros cristãos eram chamados de ‘galileus’. A fábula da fuga ao Egito deu margem a muitas outras lendas. Está em Mateus. Jesus nasce, os magos vêm visitá-lo, o rei Herodes fica sabendo, consulta os sábios para saber onde nasceria o Messias. Citando Miquéias, os sábios apontam Beth-Lehem: Herodes ordena o massacre de todas as crianças com menos de um ano de idade. Avisado por um anjo, José pega a mulher e o filho e foge para o Egito, donde só volta depois que o mesmo anjo, pontual funcionário do Senhor, lhe avisa, em sonho, que dá para voltar, tudo está limpo. Daí, José volta.

A fábula é inverossímil. Só ver a distância a percorrer entre a Galiléia e o Egito, numa época quando as estradas da Ásia viviam infestadas de assaltantes e ainda havia grande quantidade de leões, depois extintos pela caça contínua e sistemática. Não é assim, no entanto, que se trata uma fábula: uma lenda vale por seus significados simbólicos. A fuga da família de Jesus para o Egito era uma volta às origens. Afinal, foi lá que o povo hebreu viveu escravo dos faraós. De lá, Moisés o tirou, para a liberdade, a plenitude, a maioridade, depois da invasão de Canaã (a Palestina), realizada com implacáveis hecatombes, massacres e aniquilação, ao estilo assírio, de cidades inteiras, como conta o Livro de Josué.” (p. 182)

Pintura de Alexander Ivanov (1806 - 1858): Cristo aparece a Maria Madalena após a Ressurreição

Pintura de Alexander Ivanov (1806 – 1858): Cristo aparece a Maria Madalena após a Ressurreição

Frequentador assíduo da obra dos linguistas e estudiosos de semiótica, de Propp a Jakobson, de Peirce a Bakhtin, Leminski enxerga também em Jesus um emissor de linguagem que tem suas peculiaridades: “Talvez, à luz de uma estética da recepção, adequasse seu discurso ao universo dos pequenos lavradores e pescadores dentre os quais arrebanhou seus primeiros seguidores. (…) Jesus parece ter sido muito livre na escolha de suas companhias. Os evangelhos estão cheios das queixas dos fariseus pelo fato de Jesus frequentar pecadores, estrangeiros, publicanos (coletores de impostos para Roma), meretrizes e até gente pior.” (p.  188-189)

Jesus não inventou a parábola destinada a provocar epifania: este já era um “gênero linguístico” praticado por uma antiga tradição oriental, praticada por Confúcio na China, pelos gurus da Índia, pelos sufis do Islã etc. (p. 195). A idolatria a textos considerados sagrados também não foi criação de Cristo, que participa de uma cultura onde livros-ídolos, como a Torá, são comuníssimos. De todo modo, os relatos sobre Jesus, em especial as lendas sobre seus poderes prodigiosos e milagreiros, não perderam sua capacidade de encantar uma vasta fração dos humanos, mesmo após dois milênios já transcorridos:

“Nos evangelhos, Jesus vive fazendo milagres, signa, prodígios, que demonstram sua força sobrenatural. São, na maior parte, milagres médicos ou econômicos: cura de doenças (cegueira, surdez, paralisia) ou multiplicação de alimentos (pão, peixe, vinho), o que bem situa Jesus em seu universo de gente miúda, sempre às voltas com a penúria ou a moléstia. De qualquer forma, os signos foram dados. E, quase dois mil anos depois, estão longe de parar de rolar. De desistir de sua capacidade de serem interpretados.” (p. 198)

Tanto é assim que a literatura não cessa de produzir novas variações sobre este tema aparentemente inesgotável: mesmo um livro altamente experimental e vanguardista como o Finnegans Wake de James Joyce dialoga com os evangelhos, e no século XX tivemos muitos romances importantes publicados e que re-interpretaram o mito, caso de Nikos Kazantzakis com A Última Tentação de Cristo ou José Saramago com O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

Em artigo publicado na Revista Cult, o crítico literário Manoel Ricardo de Lima afirma que, com Vida, Leminski elegeu quatro vidas que estariam “posicionadas radicalmente contra algo que mais atinge o homem moderno: o dinheiro… Essas quatro figuras surgem contra o capital”, considera Manoel. Ora, no caso da biografia sobre Jesus, é explícito um retrato de um profeta-poeta anti-capitalista, como exemplificado pelo episódio no Templo de Jerusalém ou pelo Sermão da Montanha, que enuncia que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus.

“Quando Jesus viveu, a economia de todo o mundo mediterrâneo já era monetária. Nas mãos de egípcios, gregos, gauleses, ibéricos, judeus, circulavam sestércios e asses, cunhados por Roma, pequenos círculos de metal trazendo o perfil e o nome do Imperador, onipresença de Roma. No mundo em que Jesus vivia, o dinheiro era a evidência da presença do dominador: o povo de Israel estava nas mãos do goiim, os pagãos, idólatras, politeístas, que não reconhecem o poder de Jeová, que não sabem que só há um Deus e que esse Deus escolheu um povo para crer nele e só nele. Na Judéia, a mais ínfima moeda era um índice da humilhação nacional.” (p. 203)

O César de então cobrava seus tributos através de todo o Império Romano, acumulando capital às custas de multidões espoliadas, de modo que este ímpeto capitalizador acaba identificado por Jesus com o domínio satânico de Mammon. Conta-se que Jesus e seus doze discípulos inclusive puseram seus bens em comum, vivendo efetivamente em um micro-regime comunista, característica que também marcou a seita de Pitágoras cerca de 500 anos antes. De todo modo, “entre os doze principais [discípulos] que o seguiam, a administração do dinheiro comum estava a cargo de Judas Iscariotes. Pois foi Judas, o homem do dinheiro, quem traiu Jesus, apontando-o às autoridades. Por exatamente trinta dinheiros. Trinta belas moedas de prata, com a imagem do Imperador de Roma.” (p. 206)

O contexto sócio-político que engloba a figura de Jesus é portanto dominado por um Império monetarizado e patriarcal, contra o qual ele realiza uma espécie de levante de escravos. Há mais de Spartacus em Jesus do que sonha a nossa vã historiografia. E Nietzsche, no século 19, saberá ler com clareza o quanto a moral do cristianismo representa uma inversão de valores, uma afirmação dos valores contrários aos vigentes nas classes dominantes, numa espécie de revolução moral preconizada pelos escravos contra a moral de seus senhores. Os últimos serão os primeiros, e se não for na Terra… será no Céu.

Leminski também é magistral ao destacar o caráter machista e falocêntrico das instituições sociais e das mitologias culturais dos monoteísmos nascidos no Oriente Médio. É só lembrar que o mito do Gênesis, “fundamento metafísico do patriarcalismo semita”, conta que Eva nasceu depois de Adão e foi edificada a partir de uma reles costela do macho. “Notável na estrutura do mito da origem de Eva é que ele constitui uma inversão da realidade: biologicamente, é o homem que sai da mulher, não a mulher do homem.” (p. 207)

Ló e suas filhas com a destruição de Sodoma e Gomorra ao fundo. Pintura de Lucas van Leyden (1520).

Ló e suas filhas com a destruição de Sodoma e Gomorra ao fundo. Pintura de Lucas van Leyden (1520).

“O patriarcalismo falocrático, próprio dos pastores nômades, que eram todos os semitas em sua origem, encontrou sua tradução mais literal na poligamia, regime no qual a mulher desaparece enquanto pessoa, reduzida a uma fração de um harém. Os antigos hebreus e o judaísmo posterior são fundamentalmente patriarcalistas, bem como o cristianismo e o Islã, derivados diretos da fé de Moisés. Nesses três credos (no fundo, um só), a mulher não tem acesso às funções sacerdotais: os intermediários entre o sacro e a humanidade são rabinos, padres, ulemás. Isso vem de muito longe. No livro do Gênesis, os primeiros grandes patriarcas hebreus (Abrão, Isaac, Jacó) têm muitas mulheres, como cabe a um próspero sheik do deserto. Como distinguir o esplendor do reino de Salomão, sem lembrar das setecentas mulheres do seu harém, entre as quais brilhava, inclusive, uma filha do faraó do Egito? Nesse universo patriarcal, falocrático, poligâmico, a mulher só pode ter uma existência, uma condição ontológica rarefeita, essencialmente subalterna, secundária, menor, algo entre os camelos e rebanhos e os humanos plenos, que são os machos. Daí, os rigores da lei mosaica contra o homossexualismo e a sodomia, instâncias de aguda feminilização do homem, punidos com a morte.” (p. 207 – 208)

Leminski, nietzschianamente, pondera: “religião de escravos, em seus primórdios, o cristianismo passou por um processo de ascensão social até chegar ao palácio dos imperadores romanos. Nessas altíssimas rodas, os primeiros convertidos foram imperatrizes e grandes damas da família imperial.” (p. 210) Apesar de muitos episódios da saga de Jesus envolverem mulheres, seria exagero fazer dele um feminista. Ademais, “não há traços da vida sexual de Jesus… um homem abstinente dos prazeres da bela aparência e do desfrute de fêmeas.” (p. 211) Aquilo que Nietzsche chamará de ideal ascético manifesta-se em toda a pureza em Jesus, negador da carne e da matéria, influência sobre inúmeras gerações de repressores da sensualidade e da sexualidade: “Para nós, geração permissiva, que viemos depois de Freud e Reich, é incompreensível um mundo em que o sexo é negado. Mas isso é possível. Milhões de monges e monjas, padres e freiras, disseram não ao mais imperioso desejo.” (p. 211)

Em um de seus capítulos mais ousados, Jesus Jacobino, Leminski compara o projeto social de Jesus com o de Robespierre. Este último, cognominado “o incorruptível”, liderou a revolução burguesa na França e, como sabemos, “milhares de cabeças rolaram na guilhotina, condenadas pela sumária justiça revolucionária (revoluções não costumam primar pela gentileza nem pelas boas maneiras).” (p. 216) Se Jesus e Robespierre tem algo em comum, sugere Leminski, é isto: “Eles querem o exagero, a pureza de um princípio. (…) Erro pensar que Jesus veio abrandar os rigores farisaicos da religião de Israel. Ele veio para tornar mais agudas as exigências dessa fé. (…) Ninguém, porém, que conheça os evangelhos pode deixar de ver o caráter violentamente utópico, negador (utopias são negações da ordem vigente: o imaginário é subversivo), prospectivo, des-regrado (r) da pregação de Jesus.” (p. 218)

Profeta, poeta, utopista: Jesus aparece a Leminski como tudo isso junto e misturado. Este messias, tão incômodo quanto um Spartacus (ambos terminaram pregados na cruz pelos romanos), demandava um outro mundo e teve sua boca calada com violência. Em uma interpretação que talvez soe herética aos ouvidos daquelas seitas cristãs mais conservadoras e elitistas, Leminski reclama que a utopia de Jesus seja inserida na galeria do socialismo utópico. E denuncia os inúmeros desvios e perversões que transformam a mensagem de Jesus de Nazaré em algo capaz de produzir Cruzadas, Inquisições, Massacres.

“O Reino de Deus era a restauração da autonomia nacional do povo hebreu. Sobre isso, a autoridade romana não se equivocou, ao pregar o profeta na crux, exemplar suplício com que os latinos advertiam os rebeldes sobre os preços em dor da sua insurreição. Esse o suporte material, sócio-econômico-político, da pregação, por Jesus, de um (novo) Reino, um (outro) poder. Nessa tradução/translação do material para o ideológico, Jesus forneceu um padrão utópico para todos os séculos por vir. As duas grandes revoluções, a Francesa e a Russa, estão carregadas de traços messiânicos de extração evangélica. Ambas prometeram a justiça, a fraternidade, a igualdade, enfim, a perfeição, o ideograma da coisa-acabada projetada sobre o torvelinho das metamorfoses. Natural que seja assim. Afinal, as utopias são nostálgicas, saudades de uma shangrilá/passárgada, estado de excelência que lá se quedou no passado, Idade de Ouro, comunidade de bens na horda primitiva, antes do pecado original da divisão da sociedade em classes, plenitude primitiva, paleolítica, intra-uterina, antes do pesadelo chamado História.

A revolução é o apocalipse, o Juízo Final de uma ordem e de uma classe social: o cristianismo primitivo cresceu à sombra da expectativa da segunda vinda, quando Jesus, vitorioso sobre a morte, voltaria, apocalipticamente, para julgar, ele que foi julgado e condenado pelas autoridades: o retorno do reprimido, a vendeta, o acerto de contas entre os miseráveis da terra e seus prósperos opressores e exploradores. (…) O programa de vida proposto por Jesus é, rigorosamente, impossível. Nenhuma das igrejas que vieram depois invocando seu nome e cultuando sua doutrina o realizou. Religião saída de Jesus não poderia ter produzido Cruzadas, inquisição, pogrons e as guerras de religião entre católicos e protestantes, que ensangüentaram a Europa nos séculos XVI e XVII. O programa de Jesus é uma utopia. Curioso que, na frondosa bibliografia sobre os socialismos utópicos, nunca apareça a doutrina de Jesus como uma das mais radicais.” (p. 221)

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Depoimento de Paulo Botas