INVENTÁRIO DE CICATRIZES – Poemas de Alex Polari

INVENTÁRIO DE CICATRIZES

Poemas de Alex Polari

 

OS PRIMEIROS TEMPOS DA TORTURA

Não era mole aqueles dias
de percorrer de capuz
a distância da cela
à câmara de tortura
e nela ser capaz de dar urros
tão feios como nunca ouvi.
Havia dias que as piruetas no pau-de-arara
pareciam rídiculas e humilhantes
e nus, ainda éramos capazes de corar
ante as piadas sádicas dos carrascos.
Havia dias em que todas as perspectivas
eram prá lá de negras
e todas as expectativas
se resumiam à esperança algo céticas
de não tomar porradas nem choques elétricos.
Havia outros momentos
em que as horas se consumiam
à espera do ferrolho da porta que conduzia
às mãos dos especialistas
em nossa agonia.
Houve ainda períodos
em que a única preocupação possível
era ter papel higiênico
comer alguma coisa com algum talher
saber o nome do carcereiro de dia
ficar na expectativa da primeira visita
o que valia como uma aval da vida
um carimbo de sobrevivente
e um status de prisioneiro político.
Depois a situação foi melhorando
e foi possível até sofrer
ter angústia, ler
amar, ter ciúmes
e todas essas outras bobagens amenas
que aí fora reputamos
como experiências cruciais.

* * * * *

INVENTÁRIO DE CICATRIZES

Estamos todos perplexos
à espera de um congresso
dos mutilados de corpo e alma.

Existe espalhado por aí
de Bonsucesso à Amsterdam
do Jardim Botânico à Paris
de Estocolmo à Frei Caneca
uma multidão de seres
que portam pálidas cicatrizes
esmaecidas pelo tempo
bem vivas na memória envoltas
em cinzas, fios, cruzes,
oratórios,
elas compõem uma catedral
de vítimas e vitrais
uma Internacional de Feridas.

Quem passou por esse país subterrâneo e não oficial
sabe a amperagem em que opera seus carrascos
as estações que tocam em seus rádios
para encobrir os gritos de suas vítimas
o destino das milhares de viagens sem volta.

Cidadãos do mundo
habitantes da dor
em escala planetária

Todos que dormiram no assoalho frio
das câmaras de tortura
todos os que assoaram
os orvalhos de sangue de uma nova era
todos os que ouviram os gritos, vestiram o capuz
todos os que gozaram coitos interrompidos pela morte
todos os que tiveram os testículos triturados
todas as que engravidaram dos próprios algozes
estão marcados,
se demitiram do direito da própria felicidade futura.

* * * * *

MORAL E CÍVICA II

Eu me lembro
usava calças curtas e ia ver as paradas
radiante de alegria.
Depois o tempo passou
eu caí em maio
mas em setembro tava por aí
por esses quartéis
onde sempre havia solenidades cívicas
e o cara que me tinha torturado
horas antes,
o cara que me tinha dependurado
no pau-de-arara
injetado éter no meu saco
me enchido de porrada
e rodado prazeirosamente
a manivela do choque
tava lá – o filho da puta
segurando uma bandeira
e um monte de crianças,
emocionado feito o diabo
com o hino nacional.

* * * * *

REQUERIMENTO CELESTE COM DIGRESSÕES JURÍDICAS
(POR OCASIÃO DO POUSO DA VIKING 1 EM MARTE)

Resolvi denunciar às amebas de Marte
(caso elas existam)
a minha sui generis situação jurídica
de condenado duplamente
à prisão perpétua,
olvidado em várias esferas
absolvido em uma das vidas
e esperando recurso da outra
e tendo ainda por cima
além de certas transcendências sustadas
mais quarenta e quatro anos de reclusão
a descontar não sei de qual existência.

Resolvi portanto,
romper meu silêncio de quase 6 anos
e denunciar em outros astros
a situação atroz que aqui prevalece
tendo o Ministério Público
pedido duas vezes minha condenação à morte.
Assim sendo, continuo sem grilhetas
cumprindo minha condenação
à danação perpétua
neste pedregulho
cheio de poluição
ditaduras e injustiças
que convencionaram chamar planeta
em eterna órbita
sem ternura ao redor
de uma estrela de 5a grandeza.
Nestes termos,
em lugar sobremaneira ermo,
pede deferimento
com o corpo cheio de feridas
o suplicante
irrecuperável militante
desta província celeste
encravada entre nebulosas
e sentimentos mais nebulosos ainda.

* * * * *

ESCUSAS POÉTICAS II

Alguns companheiros reclamam
que entre tantas imagens bonitas
eu diga em meus poemas que gosto de chupar bucetas
e não vejo como isso atrapalhe a marcha para o socialismo
que é também o meu rumo. Mais ainda,
eu gostaria que nessa nova sociedade por qual luto
todos passassem a chupar bucetas a contento
todos redescobrissem seus corpos massacrados
todos descobrissem que o medo e a aversão ao prazer
a que foram submetidos foi e será sempre
apenas a estratégia dos tiranos.

Outros companheiros reclamam
quanto ao uso da 1a pessoa
em meus poemas, a falta de desfechos
corretos do ponto de vista político
e os resquícios da classe que pertenço.

A isso tudo procuro responder
que a poesia reflete uma vivência particular,
se universaliza apenas nessa medida
e que não adianta você inventar um caminho
para um povo que você não conhece nem soube achar.
Eu bem que gostaria de ter essa solução, é minha senda,
eu estou sinceramente do lado dos oprimidos
só que de uma maneira abstrata
o que errei, errei por eles,
num processo não despido de angústia
e minha poesia teria que se ressentir disso.

Quanto as outras críticas,
o que posso dizer é que a falta de lógica de meus sentimentos
não acompanha a lógica dos manuais de dialética
e que minhas intenções e objetivos
nem sempre correspondem à minha vida real.

O que muitos não entendem
é que eu quero muito falar do meu povo
da sabedoria dele,
das coisas simples
que lhe são mais imediatas
mas que esse canto hoje soaria falso
e que só posso falar disso
quando não precisar inventar nada,
quando minha práxis for essa
o caminho escolhido o certo,
quando não precisar de metáforas.

O dia da redenção tanto pode ser uma aurora quanto um poente,
isso pouco importa
desde que se cante e anuncie
de todas as formas possíveis.

* * * * *

ALEX POLARI foi preso político da Ditadura Militar brasileira por 9 anos (1971-1980). Hoje é uma das lideranças mundiais da comunidade Santo Daime e defende a terapêutica propiciada pela ayahuasca (saiba mais na Trip: https://revistatrip.uol.com.br/trip/alex-polari)

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“No dia seguinte ninguém morreu” – José Saramago sonda a tragicomédia da existência em “As Intermitências da Morte” (2005)

Nunca houve, desde que há mundo, um único dia que tenha transcorrido sem mortes. Não há registro ou notícia, desde que há vidas nesta esfera que rodopia ao redor do sol, de um giro completo do planeta ao redor de seu próprio eixo em que não tivessem se entremesclado no Theatrum Mundi os primeiros gritos dos recém-nascidos com os últimos suspiros dos agonizantes (como já nos ensinava a poesia epicurista de Lucrécio).

Se na realidade nunca houve época em que a morte tivesse entrado em férias, na literatura pode-se fantasiar livremente sobre o inaudito, o inédito, o nunca-dantes-nos-anais-da-história: como aquela formidável época em que a gente parou de morrer. A crônica imaginária destes sucessos extraordinários foi realizada em As Intermitências da Morteromance publicado em 2005 por José Saramago e que assim se inicia:

“No dia seguinte ninguém morreu. O fato, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme… não havia notícia nos 40 volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenômeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas 24 horas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel tão frequentes em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar.” (SARAMAGO – Cia das Letras, 2005, p. 11)

Na trajetória do escritor, este livro é da fase tardia, escrito após a consagração mundial de Saramago em 1998, quando o hoje defunto autor português foi laureado com o Nobel de Literatura, aquele prêmio que concede a tão poucos e seletos mortais a aura de sua glória, auréola de fama que promete a seu detentor que sua obra irá seguir ecoando, enganando a bocarra gigantesca da obscuridade do túmulo que engoliu quem esta obra pariu.

Neste livro, como de praxe, o Saramago é o cronista sagaz de nosso absurdo individual e coletivo. É o autor capaz de enxergar com profunda ironia, tingida de melancolia, todas as nossas adversidades, todas as nossas idiotices, todas as nossas incompletudes. É também o crítico mordaz das religiões instituídas, das máphias políticas, das velharias autoritárias, agindo como um iluminista tardio que age contra todos os obscurantismos que insistem em medievalizar a terra.

Saramago atua, através de sua caudalosa escrita, como um pedagogo sábio que quer nos ensinar a travessia que vai da cegueira à lucidez. Pela via régia do ateísmo, busca a emancipação do pensamento e da sensibilidade, libertos das cataratas de mentiras que nos vendam os olhos. O pior cego é o que não quer ver, o que pôs vendas em seus próprios olhos, em atitude análoga à daquele que está perecendo em uma cela de prisão sem perceber que a chave está por dentro.

Explorado em outras de suas obras, como Ensaio Sobre a Cegueira, o tema da cegueira – não literal, mas sim moral, existencial, relacional – parece estar correlacionado, na obra saramaguiana, com a condição mortal. Como se fôssemos demasiado covardes, a maioria de nós e a maior parte do tempo, para estar with eyes wide open diante de nossa condição.

Preferimos a semi-obscuridade – a falta de lucidez – de nossas fés e ideologias, que tanto contribuem para que vivamos com eyes wide shut (nome, aliás, do notável filme de despedida de Stanley Kubrick). Cegos de propósito, pois nunca suficientemente corajosos para encarar, no espelho, a caveira que nos olha de volta por detrás da pele da face. Crânio escondido por detrás da cara que é o retrato de nosso futuro incontornável.

O único animal que sabe que vai morrer inventa, através da história, os ópios e morfinas espirituais que mediquem sua angústia da finitude. A música do Morphine expressa isto à perfeição em Cure for Pain, uma das mais belas canções do finado Mark Sandman: “someday there’ll be a cure for pain, that’s the day I’ll throw my drugs away”.

Saramago sabe que as religiões instituídas, aí incluída a católica apostólica romana, sempre insistiram no tema da “morte como porta única para o paraíso celeste, onde, dizia-se, nunca ninguém entrou estando vivo, e os pregadores, no seu afã consolador, não duvidavam em recorrer a todos os métodos da mais alta retórica e a todos os truques da mais baixa catequese para convencerem os aterrados fregueses de que, no fim de contas, se podiam considerar mais afortunados que os seus ancestres, uma vez que a morte lhes havia concedido tempo suficiente para prepararem as almas com vista à ascensão do éden” (p. 133). A extinção da morte é um perigo para a sobrevivência das religiões instituídas, estas profanas criações humanas destinadas a pôr em circulação os ópios fantasiosos que acalmam os terrores e angústias do bicho que sabe que vai morrer.

Há muito tempo estou convencido – e nisto a leitura de Saramago muito contribuiu – de que as religiões e as mitologias são incompreensíveis em um horizonte onde não coloquemos, no cerne, a mortalidade humana e o nosso protesto contra ela. Diante da morte invencível, os seres humanos erguem suas catedrais e suas preces; imaginam-se triunfantes em um além-túmulo que o poeta Tennyson chamará de local do Segundo Nascimento; Idolatram a figura de um crucificado que supostamente voltou à vida depois de três dias morto. Só inventamos deuses pois morremos – e é porque morremos que “se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo.”

Pintura de Andrea Mantegna – “Lamentação de Cristo”

Mortais humanos apegam-se com esperanças fervorosas ao sonho de ressurreição, e olhando, seja de frente ou de soslaio, seus destinos de criatura temporárias, abraçando ou recusando esta ciência fatal, os seres que somos recusam-se a ir ladeira abaixo, no processo que conduz pra baixo da terra, em silêncio e resignação. Para lembrar o célebre estribilho poético: We not go quietly into that good night… We rage, rage against the dying of the light! (Dylan Thomas)

Como disse Albert Camus, “o ser humano é a única criatura que se recusa a ser o que é.” E a danada da morte tem tudo a ver com isso. Ela é, para os viventes, aquilo que Manuel Bandeira chamou de “a indesejada das gentes” – e os suicidas sempre foram minoria da humanidade, pois os que buscam com ânsia uma morte que lhes dê fim aos tormentos e angústias sempre foram menos numerosos do que aqueles que foram impelidos à sobrevivência resiliente até que o tempo os matasse com seus instrumentos do costume, como as doenças e as violências bélicas. Ainda assim, o suicídio e a eutanásia são fenômenos que nos obrigam a refletir sobre o direito de morrer, quando a vida não é mais sentida como digna de ser vivida, um tema abordado com muita sensibilidade e pungência por filmes como Mar Adentro de Amenábar ou Amor de Haneke.

Saramago, no espaço livre de seu livro, suspende as leis natural que estão por aí desde que o mundo é mundo. Mago plenipotente no espaço de seu romance, ele conta uma história fantasiosa: na alvorada de um ano novo, todos os 10 milhões de habitantes de um certo país subitamente descobrem que a morte saiu de férias. Por tempo indeterminado. Sem aviso prévio, abandonou o posto e desistiu de seu fatal ofício, há tantos milênios incansavelmente exercido.

Não se sabe os motivos de sua greve, e ninguém explicou se o fenômeno é uma casual e efêmera transformação da ordem cósmica, que logo re-entrará nos eixos costumeiros, ou se as regras da vida e da morte foram alteradas para sempre neste pequeno rincão da terra. A princípio, é o fervor patriótico e todos comemoram o privilégio. Logo depois, percebem que a morte sair de férias irá acarretar um imenso transtorno – tanto é assim que os fluxos migratórios irão se acentuar, com inúmeros nômades-peregrinos querendo chegar a outro país onde ainda se tem a possibilidade de morrer.

Tudo se transtorna com as férias que a morte resolveu tirar: os hospitais ficam repletos de doentes terminais, os asilos de velhos sofrem com o excesso dos agonizantes estão à espera de seu ocaso, os escritórios das companhias de seguros e os bancos onde elas depositam seus capitais entram em crise…

Os impactos na economia são tremendos – e não apenas no pequeno nicho que são as empresas funerárias, que fornecem aos que sobrevivem os necessários auxílios para o despojo daquelas partes do ex-vivo tão brutalmente chamados por alguns de “restos mortais”, aquilo que, abandonado pela chama da vida, apodrece logo com exalações de odores pútridos e que por isso corremos a afastar de nossas fuças e vistas.

A teledramaturgia, nos últimos anos, foi responsável pela criação de uma obra-prima das séries dramáticas com A Sete Palmos (Six Feet Under), da HBO, cujas 5 temporadas expuseram em minúcias as vidas da família Fisher e seus agregados afetivos enquanto tocam avante a difícil empreitada de gerir uma funerária.

Saramago também se interessa por todas as indústrias que lucram com a morte, mas é mais como um crítico ácido que ele atua, nunca como alguém que não enxergue a problemática complexa que envolve hospitais, asilos, funerárias e os elos que os conectam aos poderes políticos e eclesiásticos. As altas cúpulas do clero e as altíssimas autoridades do reino são alvo da pena mordaz de Saramago, que em inúmeros livros despeja sua ironia sobre o fenômeno da vinculação teologia-política (Memorial do Convento, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Caim etc.).

Em As Intermitências da Morte, o romance revela tudo o que ocorre no curto período em que a morte cessa de desempenhar suas funções.

“A igreja”, por exemplo: “saiu à arena do debate montada no cavalo-de-batalha do costume, isto é, os desígnios de deus são o que sempre foram, inescrutáveis, o que, em termos correntes e algo manchados de impiedade verbal, significa que não nos é permitido espreitar pela frincha da porta do céu para ver o que se passa lá dentro.

Dizia também a igreja que a suspensão temporária e mais ou menos duradoura de causas e efeitos naturais não era propriamente uma novidade, bastaria recordar os infinitos milagres que deus havia permitido se fizessem nos últimos 20 séculos, a única diferença do que se passa agora está na amplitude do prodígio, pois que o que antes tocava de preferência o indivíduo, pela graça da sua fé pessoal, foi substituído por uma atenção global, não personalizada, um país inteiro por assim dizer possuidor do elixir da imortalidade, e não somente os crentes, que como é lógico esperam ser em especial distinguidos, mas também os ateus, os agnósticos, os heréticos, os relapsos, os incréus de toda a espécie, os afeiçoados a outras religiões, os bons, os maus e os piores, os virtuosos e os maphiosos, os verdugos e as vítimas, os polícias e os ladrões, os assassinos e os doadores de sangue, os loucos e os sãos de juízo, todos, todos sem exceção, eram ao mesmo tempo as testemunhas e os beneficiários do mais alto prodígio alguma vez observado na história dos milagres…” (p. 75)

Descrente em milagres como bom ateu, Saramago brinca de imaginar as consequências que tomariam o mundo caso este milagre ocorresse e a “Velha da Capa Preta” parasse de trabalhar. O desemprego dos coveiros seria a menor de nossas encrencas. A editora Companhia das Letras sintetizou bem os charmes e graças do romance:

De repente, num certo país fabuloso, as pessoas simplesmente param de morrer. E o que no início provoca um verdadeiro clamor patriótico logo se revela um grave problema.

Idosos e doentes agonizam em seus leitos sem poder “passar desta para melhor”. Os empresários do serviço funerário se vêem “brutalmente desprovidos da sua matéria-prima”. Hospitais e asilos geriátricos enfrentam uma superlotação crônica, que não pára de aumentar. O negócio das companhias de seguros entra em crise. O primeiro-ministro não sabe o que fazer, enquanto o cardeal se desconsola, porque “sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja”.

Um por um, ficam expostos os vínculos que ligam o Estado, as religiões e o cotidiano à mortalidade comum de todos os cidadãos. Mas, na sua intermitência, a morte pode a qualquer momento retomar os afazeres de sempre. Então, o que vai ser da nação já habituada ao caos da vida eterna?

LEIA OUTRO TRECHO

Vale lembrar que, na arte brasileira, há também um magnum opus que se equipara a Saramago na capacidade de expressar de maneira criativa e expressiva o enrosco humano com a mortalidade: estou falando da música de Siba, depois regravada por Juçara Marçal em seu álbum Encarnado, “A Velha da Capa Preta”:

A morte anda no mundo
Vestindo a mortalha escura
Procurando a criatura
Que espera a condenação
Quando ela encontra um cristão
Sem vontade de morrer
Ele implora pra viver
Mas ela ordena que não
Quando o corpo cai no chão
Se abre a terra e lhe come
Como uma boca com fome
Mordendo a massa de um pão

A morte anda no mundo
Espalhando ansiedade
Angústia, medo e saudade
Sem propaganda ou esparro
Sua goela tem pigarro
Sua voz é muito rouca
Sua simpatia é pouca
E seu semblante é bizarro
A vida é corno um cigarro
Que o tempo amassa e machuca
E morte fuma a bituca
E apaga a brasa no barro

A morte anda no mundo
Na forma de um esqueleto
Montando um cavalo preto
Pulando cerca e cancela
Bota a cara na janela
Entra sem ter permisão
Fazendo a subtração
Dos nomes da lista dela
Com a risada amarela
É uma atriz enxerida
Com presença garantida
No fim de toda novela

Disse a morte para a foice:
Passei a vida matando
Mas já estou me abusando
Desse emprego de matar
Porque já pude notar
Que em todo lugar que eu vou
O povo já se matou
Antes mesmo d’eu chegar
Quero me aposentar
Pra gozar tranqüilidade
Deixando a humanidade
Matando no meu lugar

A personificação da morte não é novidade na história da arte – de Van Gogh (pintura acima) a Bergman (em um filme como O Sétimo Selo), artistas de várias vertentes já representaram a dita cuja de muitas maneiras, como um esqueleto que fuma um cigarro ou como uma jogadora de xadrez que oferece ao rival a oportunidade de adiar sua estadia entre os vivos, desde que consiga não tomar um xeque-mate.

No caso de Saramago, ele se deleita em imaginar as enrascadas em que a morte responsável por matar os humanos entraria caso mudasse seus métodos imemoriais. A morte, quando sai dos trilhos, acaba por descarrilhar todo o trem da vida. Primeiro, ela escolhe as férias, mas depois decide retornar à labuta, mas com outra estratégia: mandará pelo correio uma carta de cor violeta, avisando aos que estão na iminência de morrer que lhes resta apenas uma semana de vida…

Poética, a morte pensa em enviar, ao invés de cartas, borboletas – em especial a espécie acherontia atroposdotada pela natureza de um visual curiosamente fúnebre. São maneiras irônicas de Saramago nos sugerir, com muita graça, que a morte sempre fez parte da vida e que ainda bem que é assim. Esta funcionária exemplar causaria o caos caso falhasse no desempenho de suas funções. Hospitais engarrafados de tantos doentes, asilos às dúzias tendo que ser construídos às pressas, empresas de enterros indo à falência, e religiões instituídas caindo no colapso – tudo isso como resultado da temporária intermitência da morte em seu ofício.

Se a vida fosse impossível de perder, que valor teria? Não temos apreço senão por aquilo que é a um só tempo precioso e destrutível. Sabemos e sentimos que tudo de bom que vivemos é efêmero e temporário, e André Gide ensinava que quem não pensa suficientemente na morte não consegue dar o devido peso e urgência à vida: “Um pensamento insuficientemente constante sobre a morte”, escrevia Gide, “nunca deu valor suficiente ao mais ínfimo instante de vida.”

Nas páginas de Saramago, é como se a morte aparecesse como a necessária força de renovação das coisas. Sem morte, tudo estagnaria e o mundo viraria um amontoado de velharias. O fluxo cósmico perderia sua fluidez. As velharias se amontoariam, sufocando o novo. Só através da morte é que a vida pode inovar. No balé infindável de Eros e Tânatos, o palco do mundo vê a emergência sem fim de novas formas. Metamorfoses advindas interminavelmente da dialética inextirpável da vida e da morte.

Pintura de Michael Wolgemut, “A Dança dos Esqueletos”

Em seus momentos mais filosóficos, As Intermitências da Morte nos faz refletir sobre os diversos modos de findar a existência, de acordo com o organismo vivo que chega a seu ocaso, como no capítulo 6, em que um peixinho de aquário, alçando-se por sobre as águas, pergunta (perdendo seu pobre fôlego):

“Já pensaste se a morte será a mesma para todos os seres vivos, sejam eles animais, incluindo o ser humano, ou vegetais, incluindo a erva rasteira que se pisa e a sequoia giganteum com os seus 100 metros de altura, será a mesma a morte que mata um homem que sabe que vai morrer, e um cavalo que nunca o saberá. E tornou a perguntar, Em que momento morreu o bicho-da-seda depois de se ter fechado no casulo e posto a tranca à porta, como foi possível ter nascido a vida de uma da morte da outra, a vida da borboleta da morte da lagarta, e serem o mesmo diferentemente, ou não morreu o bicho-da-seda porque está na borboleta… Disse o espírito que paira sobre as águas do aquário, o bicho-da-seda não morreu, dentro do casulo não ficou nenhum cadáver depois de a borboleta ter saído, tu o disseste, um nasceu da morte do outro, Chama-se metamorfose, toda a gente sabe do que se trata, disse condescendente o aprendiz de filósofo….” (p. 72)

Morte e vida dançam o rock da metamorfose no fluido palco do universo, mas cada organismo tem seu modo de experenciar o seu próprio processo de dissolução: se é verdade que o homo sapiens é o único animal consciente de sua própria mortalidade, ainda que ele tanto se esforce para recalcar e reprimir esta ciência (através de métodos psicológicos brilhantemente iluminados por Ernest Becker em A Negação da Morte, belíssimo livro laureado com o Pulitzer), não se pode negar que outros animais dotados de sistema nervoso central e altamente sensíveis aos estímulos ambientais também batalhem com todas as forças de seu âmago contra quem quer lhes impor a morte. Ser um animal é estar animado pelo duro desejo de durar.

Um pomar não nos dá a mesma impressão de resiliência, de perseverança na existência, de manifestação concreta do conatus conceituado na filosofia de Spinoza, o que torna bastante cômicos e risíveis os argumentos de certos carnívoros que, diante da argumentação de vegetarianos em prol da libertação animal, argumentam que as cenouras e os alfaces gostam tão pouco de terem suas vidas abreviadas quanto os porcos e bois abatidos nas milhares de factory farms desde nosso mundo.

Neste debate, Jacques Derrida foi ao cerne do problema ao dizer que a questão crucial a se colocar, diante da vida de um outrem não-humano, é esta: “esta criatura pode sofrer?” E só um mentecapto seria capaz de avaliar, no termômetro da sofrência, que um porco ou uma galinha sofrem menos que uma maçã ou um brocólis com a interrupção de sua existência para fins alimentícios humanos. O apego à vida é evidente maior quanto mais ampla é a consciência que o animal possui de sua condição existencial – e, como Peter Singer argumenta, é um escândalo global chocante o quanto nossas economias ainda estão baseadas no morticínio ultra-disseminado de criaturas que sofrem imensamente com o processo mortífero que os humanos lhes impõem, ao invés de adotarmos uma cultura culinária mais sábia pois atenta aos interesses de seres sencientes semelhantes a nós mesmos.

Passando ao largo dessas questões, o romance de Saramago prefere focar nas reações humanas diante da aproximação da data fatal nas novas condições impostas pela Dona Morte, que no âmbito do romance resolveu inovar em seus métodos. O affair quase romântico da morte com um violoncelista serve como emblema saramaguiano para os poderes transformadores da arte: sob o impacto da aproximação da morte, o músico toca seu Bach, seu Chopin, seu Beethoven, com tal feeling e potência expressiva que tudo transfigura a seu redor.

Saramago imagina então que a morte, encantada com a musicalidade deste mortal que ela não consegue se decidir a matar, escolhe fazer o que nunca antes fizera – é só lembrar que ela não teve piedades, em sua ação pretérita, de gênios musicais colhidos tão cedo do jardim da vida como Schubert, Mozart ou Janis. A morte depõe suas armas diante da música, adia suas tarefas, deixa para depois o único mandamento que segue – “matarás!” Enfeitiçada pela música que fazem os vivos, a morte que nunca dorme decide-se a deixar a foice encostada e vai tirar uma soneca – afinal suas pálpebras pesam após tanto tempo de ação em completa insônia. “E no dia seguinte ninguém morreu…”

“O que à morte impressionava era ter-lhe parecido ouvir naquela música uma transposição rítmica e melódica de toda e qualquer vida humana, corrente ou extraordinária, pela sua trágica brevidade, pela sua intensidade desesperada, e também por causa daquele acorde final que era como um ponto de suspensão deixado no ar, no vago, em qualquer parte, como se, irremediavelmente, alguma cousa ainda tivesse ficado por dizer… (p. 171)

É nossa sina de seres temporários que nunca possamos abandonar o palco depois de tudo termos dito. Resta sempre muito por dizer, e o resto é silêncio. Na literatura de Saramago, este incontornável da condição humana recebe um tratamento literário que é tonificante, não só pela liberação lúdica que nos fornece, aliviando a gravidade com que costumamos tratar do assunto e polvilhando tudo com um espírito de jocosa ironia, mas também pela intensificação de nossa consciência do quão tragicômico é este clarão entre dois nadas que cada um de nós chama de vida.

A morte saramaguiana tem muita graça e lendo este romance pude me divertir a imaginá-la como um funcionária exemplar, que desde a alvorada da vida exerceu suas funções de maneira impecável, mas que enfim decide reclamar seus direitos trabalhistas e reclamar do patrão (deus ou o universo, segundo o gosto do freguês…), já que ela já labuta há milênios, sem férias nem direito a greve, matando 24 horas por dia, inclusive em feriados religiosos e nos horários mais impróprios da madrugada.

A morte é parte inextricável e incontornável da vida de que cada um de nós não detêm a posse mas somente o fugaz usufruto. E a sabedoria epicurista sempre ensinou que não há carpe diem sem memento mori. Saramago, acredito, assinaria embaixo caso a morte tivesse lhe deixado mãos para escrever. Também assinaria embaixo, provavelmente, de duas idéias filosóficas que muito aprecio: a primeira, de Montaigne, que dizia que “filosofia é aprender a morrer”, e a segunda, de André Comte-Sponville, que ensina que “é preciso pensar a morte para amar melhor a vida – em todo caso, para amá-la como ela é: frágil e passageira.”

O pensamento de Saramago, tão filiado a um certo ímpeto de lucidez iluminista que batalha contra o obscurantismo e o fanatismo, busca conduzir-nos a esta sábia apreciação de nossa existência mortal que é tão rara e preciosa. Escrevendo logo após os atentados de 11 de Setembro de 2001, Saramago soube conectar com profundidade os fatores inextricáveis mortalidade religiosidade ao escrever “O Factor Deus”, excelente provocação filosófica-política que é recomendável como posfácio às Intermitências da Morte:

“De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta dos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas sem excepção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como os outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que isto seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel.

Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os taliban, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente os textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conluio pactuado entre Religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos, o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.

E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gémeas de Nova Iorque e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela acção dos homens, cobriram e teimam em cobrir de torpor e sangue as páginas da História.

Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o “factor Deus”, esse está presente na vida como se efectivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o “factor Deus” o que se exibe nas nota de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos e não a outra…) a benção divina. E foi o “factor Deus” em que o deus islâmico se transformou que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o “factor Deus”, esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem, acabou por fazer do homem uma besta.

Ao leitor crente (de qualquer crença…) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiram, não peço que passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento se não puder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do “factor Deus”. Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.” – SARAMAGO / O FACTOR DEUS

Por Eduardo Carli de Moraes, Goiânia, Julho de 2018

 

POEMAS DA PRÁXIS @ A CASA DE VIDRO – Agostinho Neto, Patativa de Assaré & Carlos Rodrigues Brandão

Do Povo Buscamos a Força

Agostinho Neto (1922 – 1979)

Não basta que seja pura e justa
a nossa causa
É necessário que a pureza e a justiça
existam dentro de nós.

Dos que vieram
e conosco se aliaram
muitos traziam sobras no olhar
intenções estranhas.

Para alguns deles a razão da luta
era só ódio: um ódio antigo
centrado e surdo
como uma lança.

Para alguns outros era uma bolsa
bolsa vazia (queriam enchê-la)
queriam enchê-la com coisas sujas
inconfessáveis.

Outros viemos.
Lutar pra nós é ver aquilo
que o Povo quer
realizado.
É ter a terra onde nascemos.
É sermos livres pra trabalhar.
É ter pra nós o que criamos
Lutar pra nós é um destino –
é uma ponte entre a descrença
e a certeza do mundo novo.

Na mesma barca nos encontramos.
Todos concordam – vamos lutar.

Lutar pra quê?
Pra dar vazão ao ódio antigo?
ou pra ganharmos a liberdade
e ter pra nós o que criamos?

Na mesma barca nos encontramos
Quem há-de ser o timoneiro?
Ah as tramas que eles teceram!
Ah as lutas que aí travamos!

Mantivemo-nos firmes: no povo
buscáramos a força
e a razão

Inexoravelmente
como uma onda que ninguém trava
vencemos.
O Povo tomou a direção da barca.

Mas a lição lá está, foi aprendida:
Não basta que seja pura e justa
a nossa causa
É necessário que a pureza e a justiça
existam dentro de nós.

In: Poemas de Angola

Cante Lá Que Eu Canto Cá

Patativa do Assaré

Poeta, cantô de rua,
Que na cidade nasceu,
Cante a cidade que é sua,
Que eu canto o sertão que é meu.Se aí você teve estudo,
Aqui, Deus me ensinou tudo,
Sem de livro precisá
Por favô, não mêxa aqui,
Que eu também não mexo aí,
Cante lá, que eu canto cá.Você teve inducação,
Aprendeu munta ciença,
Mas das coisa do sertão
Não tem boa esperiença.
Nunca fez uma paioça,
Nunca trabaiou na roça,
Não pode conhecê bem,
Pois nesta penosa vida,
Só quem provou da comida
Sabe o gosto que ela tem.Pra gente cantá o sertão,
Precisa nele morá,
Tê armoço de fejão
E a janta de mucunzá,
Vivê pobre, sem dinhêro,
Socado dentro do mato,
De apragata currelepe,
Pisando inriba do estrepe,
Brocando a unha-de-gato.

Você é muito ditoso,
Sabe lê, sabe escrevê,
Pois vá cantando o seu gozo,
Que eu canto meu padecê.
Inquanto a felicidade
Você canta na cidade,
Cá no sertão eu infrento
A fome, a dô e a misera.
Pra sê poeta divera,
Precisa tê sofrimento.

Sua rima, inda que seja
Bordada de prata e de ôro,
Para a gente sertaneja
É perdido este tesôro.
Com o seu verso bem feito,
Não canta o sertão dereito,
Porque você não conhece
Nossa vida aperreada.
E a dô só é bem cantada,
Cantada por quem padece.

Só canta o sertão dereito,
Com tudo quanto ele tem,
Quem sempre correu estreito,
Sem proteção de ninguém,
Coberto de precisão
Suportando a privação
Com paciença de Jó,
Puxando o cabo da inxada,
Na quebrada e na chapada,
Moiadinho de suó…

SIGA OUVINDO O POEMA DECLAMADO e ACESSE O TEXTO NA ÍNTEGRA:


As gentes de qualquer favela, vila ou lugar de camponeses
têm os seus sábios, seus cientistas, sacerdotes, artesãos,
artistas, juízes, professores e estrategistas.
Eles são como nós, nossos iguais do povo em artes e ofícios.
Mas às vezes o educador popular olha em volta e não os vê
e assim trabalha sem eles, ou contra eles;
passa ao largo da sua sabedoria subalterna,
nada aprende com eles sobre as práticas populares
e nem ajuda a fazê-los aprenderem
a reinventar os seus símbolos e os usos sociais deles.

(…) os agentes da Cultura Popular são uma gente para nós
sem face, anônima ou coletiva, a quem chamamos de
“povo”, “o povão”, “a massa”.
Ou eles são então os sujeitos com apenas meio nome, apelidos
sem os nossos títulos de doutor, dom, mestre ou professor:
Lula, Percival, Joaquim de Goiás, Patativa do Assaré, Dona Maria,
Chico Poteiro, Severino Pelado, Santo, Zé Moreira…
Eles são os “intelectuais tradicionais” da roça e da cidade:
rezadores, benzedeiras, artistas de cordel, inventores de mitos,
violeiros repentistas, capitães de ternos de congos, mães-de-santo.

São também, convertidos de uma face à outra da prática e da cultura,
os sujeitos que ajudam a conduzir a consciência de classe
pelo território difícil das muitas frentes de combate:
o líder operário, o presidente do sindicato sem pelego,
o artista militante, os agentes das comunidades de base,
as mães do clube de bairro, as mulheres do movimento “das mulheres”,
os dirigentes anônimos dos comitês de greve, os organizadores
populares dos partidos do povo.

Juntos eles constroem os dois lados da cultura popular:
o que reflete a vida no passado e o que pensa a do futuro.
Eles são os verdadeiros professores de uma Educação de Classe
e, quando se educam a si próprios com a prática de que são parte,
fazem avançar a prática, a consciência e a cultura
de que são os verdadeiros guias.



A CASA DE VIDRO LIVRARIA – Novidades no Acervo

Luis Felipe Miguel, “Dominação e Resistência. Desafios Para Uma Política Emancipatória” (Boitempo, 2018): https://www.estantevirtual.com.br/mod_perl/info.cgi?livro=1158159371

A obra apresenta uma discussão sobre o sentido da democracia e sua relação com os padrões de dominação presentes na sociedade. A ordem democrática liberal não pode ser entendida como a efetiva realização dos valores que promete, pois a igualdade entre os cidadãos, a possibilidade de influenciar as decisões coletivas e a capacidade de desfrutar de direitos são sensíveis às múltiplas assimetrias que vigoram na sociedade. Porém, tampouco pode ser lida segundo a crítica convencional às “liberdades formais” e à “democracia burguesa”, que a apresenta como mera fachada desprovida de qualquer sentido real. Assim, a democracia não é um ponto de chegada, e sim um momento de um conflito que se manifesta como sendo entre aqueles que desejam domá-la, tornando-a compatível com uma reprodução incontestada das assimetrias sociais, e quem, ao contrário, pretende usá-la para aprofundar contradições e avançar no combate às desigualdades. Portanto, o conflito na democracia é um conflito também sobre o sentido da democracia, isto é, sobre quanto ela pode se realizar no mundo real como projeto emancipatório e quanto as instituições vigentes contribuem para promovê-la ou para refreá-la.


Raquel Rolnik – “Territórios Em Conflito – São Paulo: Espaço, História e Política” >>> https://bit.ly/2I7UA0R – Publicado pela Três Estrelas, 2017, 280 pgs.

“Territórios em conflito” é um livro sobre o passado, o presente e o futuro de São Paulo, cidade-mundo de 20 milhões de habitantes. Um dos principais nomes do urbanismo brasileiro, Raquel Rolnik apresenta, em linguagem simples e direta, os conflitos, temas e opções políticas que definiram a história da metrópole, desde sua fundação até hoje. Apesar de ser um poderoso polo econômico, financeiro e cultural, São Paulo é marcada pela pobreza, pela desigualdade e pela incerteza quanto a seu futuro. Ao refletir sobre a trajetória da cidade, a autora aponta caminhos para que se possa construir, aqui e agora, um lugar melhor e mais justo. A primeira parte do livro, “São Paulo”, é uma versão atualizada e ampliada da obra homônima de grande sucesso publicada em 2001. A segunda traz 46 artigos em que Rolnik se posiciona sobre questões atuais da vida da cidade. A última parte reúne quatro ensaios que analisam desde a formação das imensas periferias nos anos 1970 até as manifestações que tomaram as ruas do país em junho de 2013.


“Pequeno Tratado das Grandes Virtudes”, de André Comte-Sponville(Editora WMF Martins Fontes, 2016, 3ª ed, 400 pgs): https://www.estantevirtual.com.br/mod_perl/info.cgi?livro=1162681851

Obra-prima do filósofo francês, traduzido para mais de 25 idiomas, o objeto deste livro são as virtudes. Sem a pretensão de evocar todas elas, tampouco de esgotar uma em particular, o autor indica neste pequeno tratado – dirigido mais ao grande público que aos filósofos profissionais – as que julga mais importantes, o que são, ou o que deveriam ser, e o que as torna sempre necessárias e sempre difíceis. André Comte-Sponville, filósofo materialista, nasceu em Paris, em 1952. Ex-aluno da École Normale Supérieure, foi professor de filosofia e por muito tempo mestre de conferências na Universidade de Paris I, de onde saiu para se dedicar exclusivamente a escrever e a dar conferências fora da universidade. Nem otimista, nem pessimista, procura ver as coisas como elas são, sem se iludir. De um ponto de vista epistemológico, aproxima-se do racionalismo crítico de Karl Popper. Separa radicalmente a ordem prática (os valores) e a ordem teórica (o conhecimento). Para André Comte-Sponville filosofar é pensar a sua vida e viver seu pensamento. Ele propõe uma metafísica materialista e uma espiritualidade sem Deus; o conjunto podendo constituir uma “sabedoria para o nosso tempo”. Novo, 400 páginas.


LUTE COMO UMA GAROTA: 60 Feministas Que Mudaram o Mundo – Laura Barcella & Fernanda Lopes (orgs) – Editora Cultrix, 472 pgs, 2018.

Estamos vivendo novos tempos: a discussão sobre os direitos das mulheres não se concentra mais em grupos específicos e a luta feminista amplia seu debate na sociedade. Da violência contra a mulher à cultura do estupro, uma série de questões é tema de conversas frequentes na mídia e nas redes sociais. Mas como chegamos até aqui? Quem nos ajudou nessa trajetória? “Lute como uma Garota” reúne o perfil de figuras importantes da militância feminista, abrangendo das pioneiras do século XVIII às estrelas pop dos dias de hoje, como Frida Kahlo, Simone de Beauvoir, Oprah Winfrey e Madonna, além de nomes essenciais da luta no Brasil, apresentando um pouco de nossa história. Com prefácio de Mary Del Priore, apresentação de Nana Queiroz e todo ilustrado, “Lute como uma Garota” mostra a força das mulheres.


 “A Nova Segregação – Racismo e Encarceramento Em Massa” (Boitempo) >>> https://www.estantevirtual.com.br/mod_perl/info.cgi?livro=1191344803

O bombástico “A nova segregação: racismo e encarceramento em massa” (The New Jim Crow: Mass Incarceration in the Age of Colorblindness), de Michelle Alexander, revela os alicerces do racismo estrutural no coração da democracia liberal moderna. Publicada originalmente em 2010, a obra vendeu mais de 600 mil exemplares e permaneceu na lista de mais vendidos do The New York Times por mais de 120 semanas. O livro desafiou a noção de que o governo Obama assinalava o advento de uma nova era pós-racial. A obra teve um efeito explosivo na imprensa e no debate público estadunidense, acumulando prêmios e inspirando toda uma geração de movimentos sociais antirracistas. A nova segregação ganhou o NAACP Image Award de melhor não ficção em 2011. A edição brasileira tem apresentação de Ana Luiza Pinheiro Flauzina, orelha de Alessandra Devulsky, revisão técnica e notas Silvio Luiz de Almeida. Pedro Davoglio assina a tradução.


TESTEMUNHO TRANSIENTE, de J. G. Pessanha >>> https://www.estantevirtual.com.br/mod_perl/info.cgi?livro=1191300561

Esta tetralogia composta pelos livros “Sabedoria do nunca”, “Ignorância do sempre”, “Certeza do agora” e “Instabilidade perpétua” transita por diferentes gêneros como aforismo, poesia em prosa, conto, ensaio filosófico, auto e heterotanatografia. O que constitui sua peculiaridade está nesse hibridismo de formas em que diferentes gêneros aparecem simultaneamente. Assim, o que poderia ser classificado como escrita de si é ao mesmo tempo um ensaio sobre Heidegger e a atualidade. Ou um ensaio sobre Kafka é também uma autobiografia. Esse procedimento se baseia na ideia de emprestar sua própria ferida e marca para ler os autores a partir de comunhões de posição. Não se trata, portanto, de uma intertextualidade pós-moderna e livresca, mas visceral, que autoriza a incorporação de vários eus. A temática central da obra de Juliano Garcia Pessanha está ligada à questão da diferença entre nascer para fora e nascer para dentro do mundo. Investigação que do ponto de vista filosófico equivale a uma onto-topologia testemunhal. Quem segue o percurso desses escritos acompanha os deslocamentos pelos quais o próprio corpo é escrito em uma poética do encontro. Sobre essa obra já se debruçaram críticos como Alcir Pécora (Unicamp), Franklin Leopoldo e Silva (USP) e Leyla Perrone-Moisés (USP), entre outros.


Rebecca Solnit, “Os Homens Explicam Tudo Para Mim” (Ed. Cultrix, 2017): https://www.estantevirtual.com.br/mod_perl/info.cgi?livro=1169062646

Rebecca Solnit foca seu olhar inquisitivo no tema dos direitos da mulher começando por nos contar um episódio cômico: um homem passou uma festa inteira falando de um livro que “ela deveria ler”, sem lhe dar chance de dizer que, na verdade, ela era a autora. A partir dessa situação, Rebecca vai debater o termo mansplaining, o fenômeno machista de homens assumirem que, independente do assunto, eles possuem mais conhecimento sobre o tema do que as mulheres, insistindo na explicação, quando muitas vezes a mulher tem mais domínio do que o próprio homem. Por meio dos seus melhores textos feministas, ensaios irônicos, indignados, poéticos e irrequietos, as diferentes manifestações de violência contra a mulher, que vão desde silenciamento à agressão física, violência e morte. “Os Homens Explicam Tudo para Mim” é uma exploração corajosa e incisiva de problemas que uma cultura patriarcal não reconhece, necessariamente, como problemas. Com graça e energia, e numa prosa belíssima e provocativa, Rebecca Solnit demonstra que é tanto uma figura fundamental do movimento feminista atual como uma pensadora radical e generosa. 


Tom Stoppard, “Rock’n’Roll e Outras Peças” (Companhia das Letras, 2011, 624 pgs): https://www.estantevirtual.com.br/mod_perl/info.cgi?livro=1164548553

Tom Stoppard é uma das vozes mais importantes do teatro europeu pós-Beckett. Longe de ser um total desconhecido por aqui, o autor, responsável pelo roteiro de “Shakespeare Apaixonado”, entre outros, ainda não tinha sido traduzido no Brasil. Com uma seleção de peças que cobre as características mais importantes e mais renovadoras de cada fase da produção de Stoppard, o volume apresenta desde as releituras satíricas dos clássicos e da história (como em Rosencrantz e Guildenstern morreram , que reencena o Hamlet de Shakespeare pelos olhos de dois personagens menores; e em Pastiches , que revê o enredo de A importância de ser prudente , de Oscar Wilde, com um elenco composto por Lênin, Tristan Tzara e James Joyce), passando pela produção mais vanguardística ( O verdadeiro inspetor Cão, O Hamlet de Dogg , o Macbeth de Cahoot), chegando aos momentos mais “ortodoxos” da produção dos anos 1980 (aqui representada pela brilhante De verdade) e finalmente à fase lírica e pessoal mais recente do autor (representada por Arcadia e pela própria Rock ‘n’ Roll).


ACERVO COMPLETO: www.estantevirtual.com.br/acasadevidro_livraria.
SITE: www.acasadevidro.com.

CORNUCÓPIA DOS LIVROS – Sobre o valor da leitura e da escrita para a existência, Seguido de: “Diário de Leituras [Ano: 2017]”

O grande escritor argentino Ernesto Sabato costumava descrever a leitura como uma “busca febril”. Jamais um hábito gelado ou ato desinteressado, mas sim algo que engaja de maneira intensa a criatura que, como você e eu, está em embarcada “en este complejo, contradictorio e inexplicable viaje hacia la muerte que es la vida de cualquiera.”


Antes Del Fin (1998) 
é o livro em que Sabato, pressentindo o fim da viagem vital, escreveu febrilmente como testemunho de sua vida e como sessões-de-recomendações às gerações mais jovens. Sempre que lhe paravam em uma rua, uma praça ou um metrô, para perguntar a Sabato – já que era o autor de livros celebrados como O Túnel Sobre Heróis e Tumbas – quais os livros que deviam ser lidos, ele dizia sempre:

Lean lo que les apasione, será lo único que los ayudará a soportar la existência.” (p. 17)

É este tipo de devoração febril e apaixonada dos livros, buscados como vias de acesso a algo que pode modificar a existência, que me entusiasma. E este entusiasmo pelos livros eu não posso evitar em mim que venha acompanhado pela a vontade de que isso se torne contagioso, produza epidemia (a colheita será de poetas e cantores, não de cadáveres mas de vida revitalizada!).

Nutro a humilde utopia de que mais gente enxergue no ler uma das mais importantes e deleitosas atividades da vida, e passe a ler (mais e melhor) não porque alguém ordenou, não porque a professora mandona mandou (empunhando palmatórias ou provas!), não pois alguma autoridade que aplica testes ou concursos exigiu… Ler como ato autêntico da vontade que escolhe esforçar-me por auto-transcender-se e aprimorar-se.

Gosto da descrição que Sabato faz do ler como atividade que engaja coração e mente, que põe alertas todos os sentidos, que estimula a inteligência sem resfriar o coração, que nos catalisa para que entremos em um estado de intensa procura (e de preferência também descoberta) de verdades difíceis e percepções raras:

“He dedicado muchas horas a la lectura y siempre há sido para mí uma búsqueda febril. Nunca he sido un lector de obras completas y no me he guiado por ninguna clase de sistematización. Por el contrario, en medio de cada una de mis crisis he cambiado de rumbo, pero siempre me comporté frente a las obras supremas como si me adentrara en un texto sagrado; como se en cada oportunidad se me revelaran los hitos de un viaje iniciático. Las cicatrices que han dejado en mi alma atestiguan que de algo de eso se ha tratado. Las lecturas me han acompañado haste el día de hoy, transformando mi vida gracias a esas verdades que sólo el gran arte puede atesorar.” (SABATO, Antes Del Fin – Buenos Aires: La Nación, 2002, p. 42)

O escritor sai transformado de sua escrita, o leitor sai transformado de sua leitura, e estes posições invertem-se com frequência: quem muito lê, acaba escrevendo, ainda que seja para comentar os livros que leu, e por aí já vai ensaiando os passos que pode seguir se decidir levar a sério o ofício de escritor… Esta transformação íntima, psíquica, anímica, afetiva, propiciada pelos livros, é também algo evocado por uma muito disseminada citação de Franz Kafka, em que ele clama para que o livro se transforme em um machado com o qual devemos destruir “o mar gelado” que levamos por dentro.

Sou um leitor que não costuma forçar a barra com livros que não está apreciando, lançando-lhes longe para preferir aqueles livros que nos apaixonam, que nos lançam àquele estado de exaltação subjetiva, comovendo-nos e assim transformando-nos não só no sentido da suportação da existência, mas do aprendizado cada vez mais ampliado dos caminhos para o bem viver e o bem morrer.

Como livreiro e blogueiro, tenho tentado pôr minha formação profissional em jornalismo e filosofia a serviço da difusão dos bons conteúdos e da disseminação do excelente vício da bibliofilia. Gosto do meme, exposto acima sem pudor, que convida a encher uma taça de vinho, sentar-se à poltrona, ligar a luminária e “tomar um porre de livros pois a ressaca vai ser de cultura!” O professor de filosofia em mim já vem querendo adicionar: faço-lhes bons votos de que a ressaca seja também de sabedoria!

Se for um vício, a bibliophilia me parece um dos mais benignos – e que sentido haveria em chamar de vício uma coisa boa? Vamos dar asas, portanto, às bibliophilias, mas com o salutar senso crítico bem vigilante. Ler muito não faz milagre: há quem encerre sua cabeça, como o avestruz na areia, num círculo estreito de um único livro, considerado como “sagrado”. É um crime contra todos os livros já escritos na história do mundo. Você achar que toda a verdade está em um único livro, pois ditado por Deus, Alá, Buda, Xangô ou sei lá quem, produz a hecatombe da diversidade estonteante que também faz tanta da graça inesgotável da leitura.

Ler é viajar ao coração pulsante das alteridades em profusão. É conhecer por dentro o processo linguístico de criação, de expressão, de formação, que moveram o escritor a parir este seu rebento-livro. Ler é ter acesso a um diálogo com os mortos, ainda que de mão-única: posso tentar refutar o Macbeth de Shakespeare, questionando se ele de fato pensa que esta vida não passa de “a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing…”, mas não haverá resposta senão o próprio eco infindo da obra, nunca totalmente passada enquanto nós, do presente, a ressuscitamos, dando-lhe novo alento.


Um perigo que enxergo na bibliophilia está quando, levada ao excesso, ela conduz ao logocentrismo, à logorréia, à verbosidade solipsista – é o perigo de ficar de nariz tão afundado nos livros, que você passa a delirar que o mundo é feito de palavra… O mundo, sabemos pela parte dele somos, que constituímos, é também carne, osso, sangue, vômito, guerra, opressão, resistência… E sempre há imenso saber e sabedoria que necessitamos ir buscar para além dos livros – ou seja, nas vivências.

Como filósofo, não consigo me desviar de ter em mira aquilo que estimula a caminhada de filósofos há milênios: a sophia, que certamente pode ser comunicada em uma miríade de formas, sendo o livro apenas um dos possíveis veículos da sabedoria. É preciso sempre insistir na oralidade filosofante de figuras seminais como Sócrates, Diógenes de Sínope e Sidarta Gautama – que fizeram da fala o barco de transporte de suas respectivas sabedorias. A escuta atenta da fala do outro é via magna de acesso àquele incremento de sabedoria que é objetivo da filosofia promover incessantemente.  Sabato tem belíssimas palavras sobre o tema da sabedoria transmitida para além dos livros, em reflexões que somam-se de modo simbiótico com aquilo que disse Walter Benjamin sobre a função social do narrador:

“En las comunidades arcaicas, mientras el padre iba en busca de alimiento y las mujeres se dedicaban a la alfarería o al cuidado de los cultivos, los chiquitos, sentados sobre las rodillas de sus abuelos, eran educados en su sabiduría; no en el sentido que le otorga a esta palabra la civilización cientificista, sino aquella que nos ayuda a vivir y a morir; la sabiduría de esos consejeros, que en general eran analfabetos, pero, como um día me dijo el gran poeta Senghor, en Dakar: ‘La muerte de uno de esos ancianos es lo que para ustedes sería el incendio de una biblioteca de pensadores y poetas.'” (SABATO, Antes del Fin, Buenos Aires, La Nación, p. 18).

Léopold Sédar Senghor (1906 – 2001)

 



P.S. – Abaixo, procurei reunir num cyber-báu as leituras que marcaram minha travessia biblióphila pela vida neste ano de 2017. É um espécie de “diário” – que também atua como portal de entrada – onde registro a jornada pelos livros que atravessei do princípio ao fim. O que é sinal de que mantiveram minha atenção e meu interesse. Os abandonados pelo caminho, os que parei de ler no meio ou nas primeiras páginas, não figuram nesta lista. Eis alguns dos companheiros-de-papel (e de Kindle…) que me fizeram companhia e entusiasmaram a minha busca febril por uma viva vivível, linkados com os textos e artigos que pude tecer sobre alguns deles.

Eduardo Carli de Moraes / Goiânia, Jan. 2018

2017

01. ANTONIO SKÁRMETAA Insurreição (La Insurrección)2017-001-skamerta-insurreicaoEd. Francisco Alves, 1983, coleção Latino-América
trad. Reinaldo Guarany


02. VIOLETA PARRAPoesia (capa dura, 472 pgs)portadavioletaBelíssimo livro publicado pela Universidade de Valparaíso,
em parceria com
a Fundación Violeta Parra – Chile, 2016

SAIBA MAIS: Arder até as cinzas, renascer como Fênix:
A potência da palavra povoada de V. Parra


03. JOSÉ MARTÍ, Vibra el aire y retumba (Poesia)
[SAIBA MAIS – Leia o poema Yugo y Estrella]
2017-03-jose-martiBuenos Aires: Editorial Losada, 1997; 232 pgs.


04. ALFREDO SIRKISRoleta Chilenaroleta_chilenaRio de Janeiro: Record, 1981.


05. MARCELO ALVESCamus: Entre o Sim e o Não A Nietzsche


06. ANTONIO SKÁRMETA, O Dia Em Que A Poesia Derrotou um Ditador (Los Días Del Arcoíris) – Ed. Record, 2012

o-dia


07. VERONICA STIGGER
Onde a Onça Bebe Água

onca


08. ELIANE BRUM
A Vida Que Ninguém Vê
eliane-brum-a-vida-que-ninguem-ve-capa

AS VIDAS QUE QUASE NINGUÉM VÊ: Como o jornalirismo de Eliane Brum visibiliza a diversidade humana e a unicidade dos destinos >>> http://wp.me/pNVMz-1xx


09. ANGELI, O Lixo da História


10. ELENI VARIKASA Escória do Mundo
Leia um trecho em que Varikas trata da poetisa Phillis Wheatley


11. FRANCISCO ORTEGA, Amizade e Estética da Existência em Foucault

LER POST


12. BOB MARLEY – GUERREIRO RASTA
http://wp.me/pNVMz-3Ch


13. HANNAH ARENDTSobre a Revolução  (Cia das Letras)


14. IAN MCWEAN, Enclausurado (Nutshell)


15. OTTO RANK, O Trauma Do Nascimento


16. GABRIEL TARDE, As Leis Sociais


17. MICHEL FOUCAULT, A Coragem da Verdade 
Curso no Collège de France, 1984 (Ed. Martins Fontes)


18. MARILENA CHAUÍ, Introdução à História da Filosofia – Vol. 1: Dos pré-socráticos a Aristóteles


19. GABRIEL TARDE (1843 – 1904)A Opinião e As Massas
(Ed. Martins Fontes)


20. DIÓGENES, O CÍNICO
de Luis E. Navia 
Ed. Odysseus
CLICK E SAIBA MAIS


21 .MACHADO DE ASSIS – Ressurreição


22. MACHADO DE ASSIS – Helena


23. VLADIMIR SAFATLE – Só Mais um Esforço


24. ANTÔNIO RISÉRIO – A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros


25. ROSANA SUAREZ – Nietzsche e a Linguagem


26. LÚCIA NAGIB – A Utopia no Cinema Brasileiro


27. JORGE AMADO – Jubiabá


28. MARGARET ATWOOD – O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale)


29. BERNARDO KUCINSKI – K. – Relato de uma Busca


30. ROGER BASTIDE – O Sonho, o Transe e a Loucura


31. BELL HOOKS – Ensinando a Transgredir


31. PAULO FREIRE – Cartas a Guiné-Bissau


32. ELIZABETH KOLBERT – A Sexta Extinção


33. HANS JONAS – Matéria, Espírito, Criação


34. HANS JONAS – O Conceito de Deus Após Auschwitz


“A Dança dos Aldeões”, de P Paul Rubens

35. BARBARA EHRENREICH – Dançando nas Ruas


36. KATE EVANS – Rosa Vermelha


37. STEPHEN GREENBLATT – A Virada 


38. DORIAN ASTOR – Lou Andreas-Salomé


39. GEORGE ORWELL (1903 – 1959) – “O Que é Fascismo? E Outros Ensaios”


40. HEINE HEIN? POETA DOS CONTRÁRIOS – Heinrich Heine e André Vallias


41. MAURICIO RABUFFETTI – Mujica: A Revolução Tranquila


42. AUGUSTO BOAL – Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas


43. MARY WOLLSTONECRAFT – Reivindicação dos direitos das mulheres


 

44. ANDRÉ DAHMER – A Cabeça É A Ilha


 

Paulo Freire

45. MOACIR GADOTTI E JOSÉ EUSTÁQUIO ROMÃO – Paulo Freire e Amílcar Cabral – A Descolononização das Mentes





 

E.C.M. – 3/1/18

ANTÍDOTOS CONTRA O MAL DE ALZHEIMER NACIONAL – Sobre o romance “K. – Relato de Uma Busca”, de Bernardo Kucinski (Cia das Letras, 2016, 176 pgs)

O MAL DE ALZHEIMER NACIONAL
E UMA TERAPIA LITERÁRIA
CONTRA A MURALHA DE SILÊNCIO

por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro

Logo no primeiro capítulo de “K. – Relato de Uma Busca” (Cia das Letras, 2016, 176 pgs, compre já)Kucinski evoca o espectro de um certo “mal de Alzheimer nacional”. Escapando de ser apenas um romance autobiográfico, onde um sujeito elaboraria apenas seus traumas individuais, K. é um livro salutar por exumar os ossos de nosso passado coletivo. Um romance que se alça ao nível de retrato de uma época, mas que também visa ir além da descrição e agir como um antídoto contra o tal Alzheimer. A literatura como remédio. Nisto, seus efeitos e intenções parecem-me em sintonia com a Comissão Nacional da Verdade (2012 -2014), instituída durante a presidência de Dilma Rousseff, ou com iniciativas como o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, um dos locais mais imprescindíveis de se conhecer em Santiago do Chile.

Neste diagnóstico médico-sociológico que o livro veicula, o Brasil estaria adoentado devido a uma disseminada tendência ao esquecimento de seu passado, em especial devido ao recalque e ao pacto de silêncio que recobre boa parte do que ocorreu de terrível e atroz nos anos da ditadura militar (1964 – 1985) no trato truculento do regime com os opositores políticos (sobretudo aqueles que aderiram à resistência armada). Ainda que já estejamos carecas de saber que “um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la” (frase atribuída a figuras tão díspares quanto Che Guevara, Edmund Burke e George Santayana), parecemos agir muito pouco, e muito mal, em prol de um autêntico trabalho de acerto-de-contas com o passado. A Lei da Anistia de 1979 sacramentou a impunidade dos perpetradores fardados de torturas e homicídios, tendo feito pouco pela tão propalada “reconciliação nacional”.

A esperança infrutífera pode ser uma tortura. E os torturadores que agiam nas ditaduras militares latino-americanas o sabiam bem. Adicionaram ao seu arsenal de maldades aquilo que veio a ser chamado, por eufemismo, de “desaparecimentos” de adversários políticos. Dar um chá-de-sumiço em alguém significa condenar os amigos e familiares do desaparecido ao tormento infindável de uma esperança angustiosa e quase sempre vã. É roubá-los do direito ao luto.

Todos aqueles que tinham vínculos afetivos com o morto sofrerão, às vezes por anos, em uma busca dolorosa pelo sumido, sem nunca poderem ter a satisfação mínima de seu desejo de justiça contra os perpetradores ditatoriais do sumiço. Sumiço que é sintoma de terrorismo de Estado: agentes públicos das forças de segurança praticando, contra cidadãos-ativistas, sequestros seguidos de tortura, assassinato e ocultação de cadáveres. É no epicentro de uma dessas tragédias que nos coloca o romance de Bernardo Kucinski, assim apresentado pela editora:

Ana Rosa Kucinski, assassinada e desaparecida pela ditadura militar brasileira em 1974, aos 32 anos de idade. Professora da USP, Ana Rosa era formada em Química, doutora em Filosofia e militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN)

“Em 1974, a irmã de Bernardo Kucinski, Ana Rosa Kucinski (1942 – 1974), professora de Química na Universidade de São Paulo, é presa pelos militares ao lado do marido e desaparece sem deixar rastros. O pai dela, dono de uma loja no Bom Retiro e judeu imigrante que na juventude fora preso por suas atividades políticas, inicia então uma busca incansável pela filha e depara com a muralha de silêncio em torno do desaparecimento dos presos políticos.

K. narra a história dessa busca. Lançado originalmente em 2011 pela editora Expressão Popular, em 2013 ganhou nova edição pela Cosac Naify, e finalmente, em 2016, chegou à Companhia das Letras. Ao longo desses anos, K. se firmou como um clássico contemporâneo da literatura brasileira.”

A importância história desta obra literária está muito além de uma investigação sobre o “caso Ana Rosa” e das peripécias do pai dela –  Meier Kucinski – em busca de seu paradeiro. A empatia do leitor é a todo momento instigada pelo texto em que narram-se as tentativas de K. em desvelar a verdade sobre Ana Rosa, que quase sempre bate com a cabeça em uma espessa muralha de silêncio e desinformação, e através deste processo todo um continente de memória coletiva soterrada começa a vir a toda. Não só Ana Rosa, mas centenas de vítimas do regime ressurgem das ruínas e pedem-nos que lhe concedamos a acolhida de nossa atenção, nossa compaixão, nossa indignação.

A sensação de desnorteio em que nos lança o romance é kafkiana e a inicial K., além da óbvia referência a Kucinski, também evoca a influência de Kafka guiando a pena de Bernardo. Vítima tanto do antisemitismo reinante na Praga de seu época quanto do totalitarismo familiar encabeçado por seu pai, Franz Kafka é talvez o escritor que mais marque com sua influência a escritura de Kucinski em K. Descendentes de poloneses, muitos deles mortos no Holocausto, os Kucinski estão em posição que os capacita a realizar paralelos entre os procedimentos da ditadura militar no Brasil e a do III Reich alemão em seus genocídios na Polônia. É o que dá o tom em vários trechos do livro – como nas reflexões finais do capítulo “Sorvedouro de Pessoas”:

“Até os nazistas que reduziam suas vítimas a cinzas registravam os mortos. Cada um tinha um número, tatuado no braço. A cada morte, davam baixa num livro. É verdade que nos primeiros dias da invasão houve chacinas e depois também. Enfileiravam todos os judeus de uma aldeia ao lado de uma vala, fuzilavam, jogavam cal em cima, depois terra e pronto. Mas os goim de cada lugar sabiam que os seus judeus estavam enterrados naquele buraco, sabiam quantos eram e quem era cada um. Não havia a agonia da incerteza; eram execuções em massa, não era um sumidouro de pessoas.” (p. 25 – P.S.: contestado por este trecho por alguém que trabalha no Museu do Holocausto, Kucinski sentiu-se na necessidade de escrever Os Visitantes, sequência de K., também publicado pela Cia das Letras).

O sumidouro de pessoas, sintoma de uma espécie de fascismo tupiniquim, era um dos modos forjados pela ditadura para lidar com as pessoas que aderiram à luta armada que a contestava. A repressão contra os guerrilheiros e militantes da esquerda teve por parte da repressão militar alguns episódios de genocídio (como no Araguaia), de pseudo-suicídios (como o de Vladimir Herzog), de assassinatos explícitos (como o de Carlos Marighella). Ana Rosa e seu marido Wilson Silva encarnam duas figuras que servem de ícone para centenas de outros brasileiros cujas vidas sumiram, tragadas pela máquina assassina instaurada a partir do Dia da Mentira de 1964.

Negando aos familiares os restos mortais do adversário político assassinado, a ditadura negava não só possibilidade de enterrar um ente amado com dignidade, lápides e epitáfios celebrando o falecido. A ditadura fazia algo pior: impunha a tortura psicológica a todos aqueles que conviveram com os assassinados. Além disso, o desaparecimento manifesta a prudência de facínoras que desejam permanecer impunes: sem o cadáver como prova inconteste do crime, dificilmente pode-se condenar os perpetradores. Ao impedir a despedida e o luto dos familiares pela vítima, como requinte de crueldade imposto pelos ditadores e seus funcionários, o regime militar também escondia suas atrocidades – não só aquela dos manda-chuvas, dos Fleurys, mas também a dos reles soldados e PMs obedientes, funcionários na maquinaria desumanizadora e que banaliza o mal.

Em seu trabalho Relampejos do Passado – Memória e Luto dos Familiares de Desaparecidos Políticos da Ditadura Civil-Militar Brasileira (Ed. Unifesp, 2017), Amanda Brandão Ribeiro relembra o Caso Kucinski em seu pungente capítulo “O Caminho dos Ossos”, destacando que

“o jornalista e escritor Bernardo Kucinski expressou insatisfação quanto à reparação conduzida pela USP em relação à irmã, Ana Rosa, professora de Química da universidade. Militantes da ALN, Ana Rosa e o marido Wilson Silva desapareceram em abril de 1974 no centro da cidade de São Paulo e nunca mais foram vistos. Segundo depoimento do ex-delegado Cláudio Guerra, o casal foi levado para a Casa da Morte, onde sofreu diversos tipos de sevícias, inclusive sexuais, sendo posteriormente incinerados nos fornos da usina Cambahyba. Fazia anos que a família da Ana Rosa solicitava que a USP retificasse sua demissão por “abandono” de emprego, decidida pela Congregação do Instituto de Química um ano após o desaparecimento da professora. Somente em 1995, com a lei dos mortos e desaparecidos, o reitor anulou o documento. Entretanto, em audiência pública organizada pela Comissão da Verdade – SP com intuito de debater as condições da demissão de Ana Rosa e de pressionar o Instituto a pedir desculpas oficialmente pelo ato, Bernardo expôs  suas críticas quanto à execução da reparação:

— O que me aborreceu muito aqui na USP foi que quando eu pedi a anulação da demissão da minhã irmã, a assessoria jurídica da Reitoria teve a ousadia de produzir um parecer, em linguagem jurídica, de quase 100 páginas, em que afinal concedia a anulação da demissão, mas justificava a posição anterior. Ou seja, não seja, não há autocrítica, não há reconhecimento da conivência. Não se avança em cima dos erros cometidos! Esse é o grande problema: a universidade não reconhece o grau de colaboração que seus agentes e muitos professores tiveram com o regime militar.

Na data em que se completaram 40 anos do desaparecimento de Ana Rosa, o Instituto de Química da USP pediu desculpas publicamente pela demissão da professora e inaugurou uma escultura em sua homenagem [veja reportagem do Estadão]. Contudo, o reconhecimento por parte da universidade de sua colaboração com os órgãos de repressão da ditadura não foi feito.” (RIBEIRO, Amanda Brandão: Sp, Unifesp, 2017, p. 132-133)

No país da impunidade para as elites rapinadoras, convivendo com o Estado Penal mais truculento para as chamadas “ralés”, a imensa maioria dos torturadores a serviço do regime militar jamais serão punidos: “todos eles morrerão de morte natural, rodeados de filhos, netos e amigos, homenageados seus nomes em placas de rua.” (KUCINSKI, K., p. 29 – ver também o capítulo “As ruas e os nomes”, p. 149 a 153) Sobre este tema, Vladimir Safatle escreveu contundes palavras em seu livro mais recente, Só Mais Um Esforço: 

“Nenhum outro país protegeu tanto seus torturadores, permitiu tanto que as Forças Armadas conservassem seu discurso de salvação através do porrete, integrou tanto o núcleo civil da ditadura aos novos tempos de redemocratização quanto o Brasil. Há de se lembrar que o Brasil é o único país da América Latina onde os casos de tortura aumentaram em relação à ditadura militar. Por isso, nenhum outro país latino-americano teve um colapso tão brutal de sua ‘democracia’ como o nosso, com uma polícia militar que age como manada solta de porcos contra a própria população que paga seus salários. Nenhum outro país latino-americano precisa conviver com um setor proto-fascista da classe média a clamar nas ruas por ‘intervenção militar’, a ponto de invadir o plenário do Congresso Nacional com suas bandeiras. Tudo isso demonstra algo claro: a ditadura brasileira venceu. Como um corpo latente sob um corpo manifesto, ela se conservou e a qualquer momento pode novamente emergir.” (SAFATLE, 2017. p. 65)

Por isso, como Safatle e Edson Teles vêm defendendo, a tarefa da memória é urgente para a nossa renovação política, é algo que devemos encarar sem tardar, sob o risco de na repetição de tragédias soçobrar e voltar a soçobrar. O desinteresse pela nossa história, inclusive em seus aspectos mais grotescos e horrendos, só pode gerar ao esvaziamento de nossa experiência cidadã. Sem a memória do passado e as lições que isso pode nos ensinar, somos engolfados na monstruosidade de um presente desenraizado, esvaziado de sentido, não alimentado pela sabedoria que a experiência e a sofrência de gerações pregressas nos comunica. Amnésicos de nossas tragédias coletivas, estaríamos por isso mesmo condenados a repeti-las.

É o que indicam os graves sintomas recentes: a fratura exposta no esqueleto da democracia que foi o golpe de 2016, que têm como uma de suas cenas emblemáticas o deputado Bolsonaz, por ocasião da votação do impeachment de Dilma, em Abril de 2016, fazendo o elogio do coronel Ultra, chefe do DOI-Codi entre 1970 e 1974  – o que lhe rendeu poucos dissabores além de uma cusparada na cara que lhe concedeu, em momento à la Angeli’s Bob Cuspe, o deputado Jean Wyllys (PSOL). Que o mesmo Bolsonazi esteja, ao raiar de 2018, em segunda posição nas intenções de voto para a presidência da República, é mais um triste lembrete do Alzheimer nacional de que fala Kucinski e que é nossa tarefa urgente medicar e operar.

O imediatismo reinante na sociedade de consumo capitalista talvez conspire, com poderio avassalador, contra a lentidão do trabalho de recordação. Isto não o faz menos necessário e salutar. Kucinski, recriando na ficção a tragédia de sua irmã Ana Rosa e da busca aflita de seu pai, Meir Kucinski (1904-1976), pelo paradeiro da assassinada, legou-nos o que Eric Nepomuceno descreveu como “uma narrativa de vertigem, escrita de forma pungente e avassaladora. Mais que um grito de dor e revolta, mais que um uivo inconformado, é um lento, sossegado, estonteante lamento.”

Nepomuceno & Galeano, guerrilheiros da memória

Na Argentina, a ditadura tinha por costume sumir com os corpos “atirando-os de um avião ao mar bem longe da costa” (p. 58), sepultando anonimamente e sem pompas fúnebres os inimigos do regime. No Chile, após o golpe de 11 de Setembro de 1973 que instaurou o regime fascista-liberal Pinochetista, além das chacinas sumárias do Estádio Nacional, começaram a ser vistos em Santiago os cadáveres boiando nas águas, tornadas assim mais rubras que de costume, do rio Mapocho. Sobre a situação chilena durante a conturbada derrubada de Allende e instauração da ditadura, Alfredo Sirkis deixou-nos um belo livro, Roleta Chilena, que soma-se ao seu já clássico relato em primeira mão de algumas peripécias da guerrilha brasileira em Os Carbonários.

Sobre o proceder carniceiro dos algozes brasileiros, Kucinski nos fornece detalhes assustadores, como naquele capítulo brilhante, “A Terapia” (p. 113 a 124), de teor altamente hardcore, onde dá voz à faxineira Jesuína, a serviço de Fleury. Ela relembra seu serviço em um casarão em Petrópolis, rodeado por muros altos, em bairro de gente grã-fina. Jesuína relembra:

“Quando os carros chegavam, o portão abria, automático, os carros entravam com o preso e logo levavam ele para baixo, onde estavam as celas… Lá no andar de baixo, além das celas, também tinha uma parte fechada, onde interrogavam os presos, era coisa ruim os gritos, até hoje escuto os gritos, tem muito grito nos meus pesadelos. (…) Eu servia os presos, limpava as celas, tentava me fazer de boazinha. A cara deles era de apavorar, os olhos esbugalhados; tremiam, alguns ficavam falando sozinhos, outros pareciam que já estavam mortos, ficavam assim meio desmaiados…

Lá em baixo tinha uma garagem virara para os fundos, parecendo um depósito de ferramentas; levavam os presos para lá e umas horas depois saíam com uns sacos de lona bem amarrados, colocavam os sacos numa caminhonete estacionada de frente pro portão da rua, pronta para sair, e iam embora. Acho que levavam esses sacos para muito longe, porque essa caminhonete demorava sempre um dia inteiro para voltar. Aí eles lavavam tudo lá embaixo com uma mangueira, esfregavam, esparramavam cândida. Atiravam umas roupas e outras coisas no tambor e punham fogo.

Os presos eram levados para lá, sempre um só de cada vez, e nunca mais eu via eles. Lá em cima eu via pela janela eles serem levados para dentro da tal garagem, nunca vi nenhum deles sair. Nunca vi nenhum preso sair. Nunca… Uma vez eu fiquei sozinha quase a manhã inteira, os PMs mineiros saíram bem cedo de caminhonete dizendo que tinham acabado os sacos de lona, o lugar onde compravam era longe, iam demorar. O Fleury tinha voltado para São Paulo de madrugada. Eu sozinha tomando conta. Então desci até lá embaixo, fui ver. A garagem não tinha janela, e a porta estava trancada com chave e cadeado. Uma porta de madeira. Mas eu olhei por um buraco que eles tinham feito para passar a mangueira de água. Vi uns ganchos de pendurar carne igual nos açougues, vi uma mesa grande e facas igual de açougueiro, serrotes, martelo. É com isso que tenho pesadelos, vejo esse buraco, pedaços de gente. Braços, pernas cortadas. Sangue, muito sangue.” (KUCINSKI, p. 120-123)

Este capítulo notável do livro de Kucinski focaliza uma sessão de psicoterapia em que Jesuína, elaborando seus traumas, trazendo de volta à luz suas lembranças assombradas, traz à tona também fragmentos da tragédia coletiva que interessa ao autor de K. desenterrar. O pai de Ana Rosa, assim, fica mesmo solitário no palco do romance, que divide com outros narradores, em um livro polifônico, que evoca múltiplas perspectivas em seu modo de construção fragmentário e labiríntico.

Sobre o processo de escrita dos traumas – não apenas enquanto catarse, mas também como maneira de expor feridas que dizem respeito não só ao indivíduo ferido, mas também às tragédias vivenciadas pela comunidade que ele integra – a psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da Comissão Nacional da Verdade, em seu prefácio ao livro de contos de Kucinski Você Vai Voltar Para Mim, faz pertinentes reflexões sobre este tema:

“Passado um tempo subjetivo em que o silêncio e o estupor são as únicas reações possíveis ante o evento traumático, as vítimas e as testemunhas se põe a falar. Ou a escrever. Não é um capricho: é uma necessidade. É preciso compartilhar o acontecido com o outro, os outros. O pesadelo recorrente de Primo Levi, de que ao voltar para casa ninguém acreditaria no seu testemunho, não pode se realizar. As vítimas de todas as experiências de terror sentem a necessidade de incluir cada terrível fragmento do Real no campo coletivo da linguagem, como forma de diluir a dor individual na cadeia de sentido que recobre a vida social.” (KEHL, p. 16)

A situação aflitiva descrita em K. também dá as caras no conto “Joana”, uma das 28 narrativas curtas que integra Você Vai Voltar Para Mim. A protagonista Joana é uma senhora que costuma vagar pelas cidade conversando com moradores de rua e que, como o narrador revela, carrega o fardo de uma perda similar à de K:

“Seu marido foi preso em 1969. Era metalúrgico e se chamava Raimundo. Católico praticante como ela. Vieram do Nordeste em busca de uma vida um pouco melhor em São Paulo. Já tinham então dois filhos. Aqui Raimundo se ligou a um grupo da Ação Popular que organizava operários nas fábricas.

Um dia, bem cedo, a polícia foi à casa deles e levou Raimundo. Sem mandado de prisão, sem nada. Soube-se depois que ele foi espancado de modo tão brutal que morreu no mesmo dia. Seus gritos eram ouvidos em outras celas. Para ocultar o homicídio, no caso doloso e qualificado, pois acompanhado do crime acessório de abuso de autoridade, a polícia cometeu outro crime, o de ocultamento de cadáver. Sumiram com o corpo de Raimundo.

Tudo isso foi comprovado, depois que acabou a ditadura, por documentos e depoimentos em várias comissões. Só não se sabe, nunca se soube, para onde levaram o corpo e como se desfizeram dele. Se foi enterrado como indigente ou incinerado, ou disposto de outra forma… Embora o próprio cardeal tenha assegurado a Joana que o marido foi espancado até não restar nele sopro de vida, ela não aceitou que ele tivesse morrido. Cadê o corpo?, ela perguntou. E sempre pergunta. Diz que só vai se considerar viúva no dia em que trouxerem o atestado de óbito de Raimundo e mostrarem sua sepultura…” (KUCINSKI, 2014, Cosac Naif, p. 58-59)

O impacto emocional de K. provêm também da autenticidade com que Kucinski pinta o retrato das metamorfoses afetivas do pai, Meier, em sua epopéia em busca da verdade sobre Ana Rosa, desde os primeiros dias de seu sumiço até chegar à uma espécie de desalentada exaustão. Quando Ana Rosa desaparece, ele  “tateia como um cego o labirinto inesperado da desaparição”; “depois, quando se passaram muitos dias sem respostas, esse pai ergue a voz; angustiado, já não sussurra, aborda sem pudor os amigos, os amigos dos amigos e até desconhecidos; assim vai mapeando, ainda como um cego com sua bengala, a extensa e insuspeita muralha de silêncio que o impedirá de saber a verdade. Descobre a muralha sem descobrir a filha”; “quando as emanas viram meses, é tomado pelo cansaço e arrefece, mas não desiste. O pai que procura a filha desaparecida nunca desiste. Esperanças já não tem, mas não desiste. Agora quer saber como aconteceu. Onde? Quando exatamente? Precisa saber, para medir sua própria culpa.” (p. 83-85)

Um dos tormentos de K., depois do desaparecimento da filha, está em sentir-se culpado por estar demasiado submerso em seus estudos de íidiche e seus debates intelectuais, a ponto de ter prestado pouca atenção às atitudes da filha, sua escolha pela luta armada via ALN, seu relacionamento com Wilson (retratado de modo divertido no capítulo “Livros e Expropriação”, p. 49 a 52). K. sente o peso de uma culpa que não é estranha aos sobreviventes de pogroms, genocídios, holocaustos – a culpa por ter sobrevivido. Em um dos capítulos mais reflexivos e filosóficos da obra, Kucinski tecerá uma rica meditação que evoca as obras de Milan Kundera e Franz Kafka – dois mestres em retratar na literatura as densas vidas de tchecos em meio às tempestades históricas – além de um debate pertinente sobre o filme A Escolha de Sofia, de Alan J. Pakula (já dissecado em A Casa de Vidro neste artigo):

Meir Kucinski (1904-1976), o pai de Ana Rosa e Bernardo, inspiração para o personagem K. Foto via Ateliê.

“Embora cada história de vida seja única, todo sobrevivente sofre em algum grau o mal da melancolia. Por isso, não fala de suas perdas a filhos e netos; quer evitar que contraiam esse mal antes mesmo de começarem a construir suas vidas. Também aos amigos não gosta de mencionar suas perdas e, se são eles que as lembram, a reação é de desconforto. K. nunca revelou a seus filhos a perda de suas duas irmãs na Polônia, assim como sua mulher evitava falar aos filhos da perda da família inteira no Holocausto.

O sobrevivente só vive o presente por algum tempo; vencido o espanto de ter sobrevivido, superada a tarefa da retomada da vida normal, ressurgem com força inaudita os demônios do passado. Por que eu sobrevivi e eles não? É comum esse transtorno tardio do sobrevivente, décadas depois dos fatos.

No filme A Escolha de Sofia, uma polonesa é obrigada pelo ocupante nazista a escolher qual dos seus dois filhos ela prefere que sobreviva: o menino ou a menina? Se fosse judia não teria escolha, iriam os dois para o crematório; sendo polaca o guarda inventa um novo jogo, que a mãe faça a escolha, caso contrário as duas crianças serão mortas. A Escolha de Sofia tornou-se expressão de uma escolha impossível, na qual todas as opções são igualmente dolorosas.

Mas a pergunta a ser feita é: por que o soldado alemão decidiu submeter a mão ao tormento da escolha quando era mais simples matar logo as duas crianças e também a mãe, ou ele próprio decidir qual delas matar e qual poupar? Sadismo? Talvez. Mas um sadismo funcional, porque através desse mecanismo o criminoso transferiu à mãe a culpa pelo filho morto. Não foi ela quem escolheu? Esse sentimento de culpa vai se apossando da alma da mãe no decorrer dos anos até que já anciã, sobrevivente de guerra vivendo na América, Sofia se suicida, não suportando mais a carga de uma culpa que nunca foi dela.

A culpa. Sempre a culpa. A culpa de não ter percebido o medo em certo olhar. De ter agido de uma forma e não de outra. De não ter feito mais. A culpa de ter herdado sozinho os parcos bens do espólio dos pais, de ter ficado com os livros que eram do outro. De ter recebido a miserável indenização do governo, mesmo sem a ter pedido. No fundo a culpa de ter sobrevivido.

Milan Kundera diz que Kafka não se inspirou nos regimes totalitários, embora seja essa a interpretação usual, e sim na sua experiência familiar, no medo que tinha de ser julgado negativamente pelo seu pai. Em O Processo, Joseph K. examina seu passado até os ínfimos detalhes, em busca do erro escondido, da razão de estar sendo processado. No conto O Veredito, o pai acusa o filho e ordena-lhe que se afogue. O filho aceita a culpa fictícia e vai se atirar ao rio tão docilmente quanto mais tarde Joseph K. vai se deixar executar, acreditando que de fato errou, pois disso era acusado pelo sistema. Como Sofia, no fim se matou.

Também os sobreviventes daqui estão sempre a vasculhar o passado em busca daquele momento em que poderiam ter evitado a tragédia e por algum motivo falharam. Milan Kundera chamou de ‘totalitarismo familiar’ o conjunto de mecanismos de culpabilização desvendados por Kafka. Nós poderíamos chamar o nosso de ‘totalitarismo institucional’.

Porque é óbvio que o esclarecimento dos sequestros e execuções, de como e quando se deu cada crime, acabaria com a maior parte daquelas áreas sombrias que fazem crer que, se tivéssemos agido diferentemente do que agimos, a tragédia teria sido abortada.

Por isso, também as indenizações às famílias dos desaparecidos – embora mesquinhas – foram outorgadas rapidamente, sem que eles tivessem que demandar, na verdade antecipando-se a uma demanda, para enterrar logo cada caso. Enterrar os casos sem enterrar os mortos, sem abrir espaço para uma investigação. Manobra sutil que tenta fazer de cada família cúmplice involuntária de uma determinada forma de lidar com a história.

O ‘totalitarismo institucional’ exige que a culpa, alimentada pela dúvida e opacidade dos segredos, e reforçada pelo recebimento das indenizações, permaneça dentro de cada sobrevivente como drama pessoal e familiar e não como a tragédia coletiva que foi e continua sendo, meio século depois.” (BERNARDO KUCINSKI, p. 154-156)

A evocação da escolha impossível de Sofia (interpretada por Meryl Streep), no filme de Pakula, serve-nos também como alerta contra aqueles que, ainda hoje, tentam justificar as atrocidades da ditadura militar com a repetição do argumento vil: foram mortos pois eram guerrilheiros, ou seja, terroristas, ou seja, bandidos – e “bandido bom é bandido morto”.

Contra este acintoso argumento, que lança o estigma e a culpa sobre os assassinados, precisamos resgatar em minúcias as histórias de vida, e os exemplos de bravura e auto-sacrifício, de todos os que pereceram na luta contra o regime sanguinário e açougueiro instaurado pelo golpe de 1964. É preciso celebrar a memória de centenas de Anas Rosas e Herzogs. É preciso afrontar a muralha de silêncio que deseja-nos apartados da verdade sobre o que se passou com nosso povo. É preciso, agora e no futuro, afastar de nós este “cale-se” amargo, “de vinho tinto, de sangue”.

Kucinski legou-nos, através de sua terapia literária, de sua escrita impregnada de autenticidade, de sua busca pelo desvelamento do passado, um indispensável remédio contra o “mal de Alzheimer nacional”. Engulamos esta medicina em altas doses, antes que o tropel da ditadura volta a cavalgar sobre nós, fazendo de nós mera carne a ser estripada em seus açougues da desumanidade. Os esquecidiços, os amnésicos, os desenraizados, serão sempre os vetores da Banalidade do Mal desvendada por Arendt, os servis funcionários do “totalitarismo institucional” que ainda está longe de ter sido aposentado da História.

E.C.M., Goiânia, Dezembro de 2017

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POESIA MUSICADA: WALY SALOMÃO (1943 – 2003) por Caetano Veloso, Jards Macalé, João Bosco, Gilberto Gil, Adriana Calcanhoto, Lirinha, Paralamas do Sucesso, Luiz Melodia etc.

“Eu não sou um fóssil, sou um míssil.”
Waly Salomão

A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com) reúne neste espaço uma coletânea-amálgama com as canções que, através da história da música brasileira, desde o Tropicalismo até nossos dias, beberam na fonte fecunda que foi Waly Salomão (1943 – 2003). “Tenho fome de me tornar tudo o que não sou”, dizia Waly. Segundo Leminski, “essa fome se traduziu, com exuberância, num percurso vivencial e criativo em que Waly, se não chegou a se tornar tudo, foi muitas coisas” (Leminski, Veja, 10/8/1983).

Antonio Risério, tentando resumir o irresumível, arriscou: “pensamento agudo, língua afiada, voz de trovão, o baianárabe Waly é um happening ambulante. Um trickster. Uma verdadeira monta-russa de grossura e de finesse, indo das baixarias de botequim à suprema limpeza do construtivismo de Maliévitch.” Foi também Waly o “audaz navegante da Navilouca junto com Torquato Neto, mas tendo por timão as invenções de Oiticica”, como relembra Davi Arrigucci Jr, que destaca ainda: “o poeta retornava à raiz da modernidade e a Poe, evocando a concepção da poesia sob o signo de Proteu: da mudança ou da metamorfose, que ora assume e reafirma com força plena.” (p. 476).

Suba o volume, escancare os sentidos e boa jornada pelas Walycanções!

Seleção de canções por Eduardo Carli & Diego de Moraes



A FÁBRICA DO POEMA
Waly Salomão & Adriana Calcanhotto

In memoriam Lina Bo Bardi (1914-1992)

Sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por
palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite da pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-se os dedos estarrecidos.
sinédoques, catacreses,
metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão chave é:
sob que máscara retornará o recalcado?

(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou rasurá-la daqui do poema)

pois a questão chave é:
sob que máscara retornará?

OUÇA:

Por Lirinha (Cordel do Fogo Encantado)

Por Adriana Calcanhotto



MUSA CABOCLA
Waly Salomão e Gilberto Gil

Uirapuru canta no seio da mata
Papagaio nenhum solta um pio
Sereia canta sentada na pedra
Marinheiro tonto medra pelo mar

Sou pau de resposta, gibóia sou eu, canela
Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela

Coração pipoca na chapa do braseiro
Sou baunilha, sou lenha que queima
Que queima na porta do formigueiro
E ouriça o pelo do tamanduá

Mãe matriz da fogosa palavra cantada
Geratriz da canção popular desvairada
Nota mágica no tom mais alto, afinada

Sou pau de resposta, jibóia sou eu, canela
Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela




ALTEZA
Waly Salomão e Caetano Veloso

Quando meu homem foi embora
Soprou aos quatro ventos um recado
Que meu trono era manchado
E meu reino esfiapado
Sou uma rainha que voluntariamente
Abdiquei cetro e coroa
E que me entrego e me dou
Inteiramente ao que sou
A vida nômade que no meu sangue ecoa
Abro a porta do carro fissurada
Toma-me ao mundo cigano
E sou puxada por um torvelinho
Abraça a todos os lugares
Chamam por mim os bares poeirentos
E eu espreito da calçada
Se meu amor bebe por lá
Como me atraem os colares de luzes
À beira do caminho
Errante, pego o volante
E faço nele o meu ninho
Pistas de meu homem
Aqui e ali rastreio
Parto pra súbitas, inéditas, paisagens.
Acendo alto o meu farol de milha
Em cada uma das cidades por que passo
Seu nome escuto na trilha
Aldeia da Ajuda, Viçosa
Porto Seguro, Guarapari, Prado
Itagi, Belmonte, Prado
Jequié, Trancoso, Prado
Meu homem no meu coração
Eu carrego com todo cuidado
Partiu sem me deixar nem caixa-postal, direção
Chego a um lugar
E ele já levantou a tenda
Meu Deus! Será que eu caí num laço
Caí numa armadilha, uma cilada
E que este amor que toda me espraiou
Não passou de uma lenda
Pois quando chego num lugar
Dali ele já levantou a tenda
A tenda

OUÇA COM BETHÂNIA:



TALISMÃ
Waly Salomão e Caetano Veloso

Minha boca saliva porque eu tenho fome
E essa fome é uma gula voraz que me traz cativa
Atrás do genuíno grão da alegria
Que destrói o tédio e restaura o sol

No coração do meu corpo um porta-jóia existe
Dentro dele um talismã sem par
Que anula o mesquinho, o feio e o triste
Mas que nunca resiste a quem bem o souber burilar

Sim, quem dentre todos vocês
Minha sorte quer comigo gozar?

Minha sede não é qualquer copo d’água que mata
Essa sede é uma sede que é sede do próprio mar
Essa sede é uma sede que só se desata
Se minha língua passeia sobre a pele bruta da areia

Sonho colher a flor da maré cheia vasta
Eu mergulho e não é ilusão, não, não é ilusão
Pois da flor de coral trago no colo a marca
Quando volto triunfante com a fronte coroada de sargaço e sal

Sim, quem dentre todos vocês
Minha sorte quer comigo gozar?
Sim, quem dentre todos vocês
Minha sorte quer comigo gozar?

OUÇA COM BETHÂNIA:



ASSALTARAM A GRAMÁTICA
de Waly Salomão, Musicada por Lulu Santos

Assaltaram a gramática
Assassinaram a lógica
Meteram poesia
na bagunça do dia a dia
Sequestraram a fonética
Violentaram a métrica
Meteram poesia
onde devia e não devia
Lá vem o poeta
com sua coroa de louro,
Agrião, pimentão, boldo
O poeta é a pimenta
do planeta!
(Malagueta!)

OUÇA COM PARALAMAS NO SUCESSO (Ao vivo no Rock in Rio 1985)





MAL SECRETO
Waly Salomão e Jards Macalé

Não choro,
Meu segredo é que sou rapaz esforçado,
Fico parado, calado, quieto,
Não corro, não choro, não converso,
Massacro meu medo,
Mascaro minha dor,
Já sei sofrer.
Não preciso de gente que me oriente,
Se você me pergunta
Como vai?
Respondo sempre igual,
Tudo legal,
Mas quando você vai embora,
Movo meu rosto no espelho,
Minha alma chora.
Vejo o rio de janeiro
Comovo, não salvo, não mudo
Meu sujo olho vermelho,
Não fico calado, não fico parado, não fico quieto,
Corro, choro, converso,
E tudo mais jogo num verso
Intitulado
Mal secreto.

OUÇA COM JARDS E FREJAT

OUÇA COM WALY E LUIZ MELODIA



REAL GRANDEZA
Álbum de Jards Macalé: As parcerias com Waly Salomão

1 – 00:00 – Olho de Lince; 2 – 04:20 – Rua Real Grandeza; 3 – 07:30 – Senhor dos Sábados; 4 – 10:38 – Anjo Exterminado; 5 – 13:53 – Dona de Castelo; 6 – 17:20 – Vapor Barato; 7 – 21:52 – Mal Secreto; 8 – 25:40 – Negra Melodia; 9 – 29:59 – Revendo Amigos; 10 – 34:51 – Berceuse Crioulle; 11 – 38:09 – Pontos de Luz.



VAPOR BARATO
Waly Salomão e Jards Macalé

Sim
Eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu não acredito mais em você

Com minhas calças vermelhas
Meu casaco de general
Cheio de anéis
Eu vou descendo por todas as ruas
Eu vou tomar aquele velho navio
Eu vou tomar aquele velho navio
Aquele velho navio

Eu não preciso de muito dinheiro,
Graças a Deus
E não me importa, e não me importa não

Oh minha honey baby, baby, baby
Honey baby

Sim
Eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu estou indo embora

Talvez eu volte
Um dia eu volto, quem sabe
Mas eu preciso
Eu preciso esquecê-la

A minha grande
A minha pequena
A minha imensa obsessão
A minha grande obsessão

Oh minha honey baby, baby, baby,
Honey baby

OUÇA COM O RAPPA:



ANJO EXTERMINADO
Waly e Jards

Ouça com Adriana e Jards



ZONA DE FRONTEIRA
Waly Salomão, Antonio Cícero e João Bosco

Rei
Eu sei que sou
Sempre fui
Sempre serei
Oba
De um continente por se descobrir

Alguns sinais
Estão aí
Sempre a brotar
Do ar
De um território que está por explodir
Sim
Mas é preciso ser sutil
Pois justo na terra de ninguém
Sucumbe um velho paraíso
Sim, bem em cima do barril
Exato na zona de fronteira
Eu improviso o brasil.
Rei
Eu sei que sou
Sempre fui
Sempre serei
Oba
De um continente por se descobrir

Alguns sinais
Estão aí
Sempre a brotar
Do ar
De um território que está por explodir
E
Minha cabeça voa assim
Acima de todas as montanhas e abismos
Que há no país
Mas algo chama a atenção
Ninguém jamais canta duas vezes uma mesma canção.

Do álbum Zona de Fronteiraque inclui 12 faixas, a maioria delas parcerias entre Waly, Bosco e Cícero.
Ouça mais uma canção deste disco abaixo:



HOLOFOTES
Waly Salomão, Antonio Cícero e João Bosco

Dias sem carinho
Só que não me desespero:
Rango alumínio
Ar, pedra, carvão e ferro.
Eu lhe ofereço
Essas coisas que enumero:
Quando fantasio
É quando sou mais sincero
Desde o fim da nossa história
Eu já segui navios
Aviões e holofotes
Pela noite afora.
Me fissurarm tantos signos
E selvas, portos, places,
Línguas, sexos, olhos
De amazonas que inventei.
Eis a Babilônia, amor,
E eis Babel aqui:
Algo da insônia
Do seu sonho antigo em mim.
Eis aqui
O meu presente
De navios
E aviões
Holofotes
Noites afora
E fissuras
E invenções:
Tudo isso
É pra queimar-se
Combustível
Pra se gastar
O carvão
O desespero
O alumínio
E o coração

OUÇA:



SALOMÃO, Waly.  Poesia Total.  São Paulo: Companhia das Letras, 2014.  549 p.  13,5×21 cm.   ISBN  978-85-359-2400-8   Capa e projeto gráfico: Elisa von Randow.  Foto da capa: Marcia Ramalho.  Antologia com toda a obra poética do autor, em ordem cronológica. Inclui também uma fortuna crítica ao final. COMPRAR LIVRO NA LIVRARIA A CASA DE VIDRO.

SINOPSE – Waly Salomão foi uma das figuras mais fecundas e heterogêneas da vanguarda brasileira. Não é à toa que Caetano Veloso, em música dedicada a ele, diz: “tua marca sobre a terra resplandece […] e o brilho não é pequeno” (ouça abaixo).  Baiano, filho de sírio com sertaneja, Waly foi ponta de lança de uma geração de poetas que — num movimento de resistência à censura — contrariaram os princípios formais da tradição e pensaram a produção literária a partir de sua articulação com as outras artes, o que contribuiu para sua escrita tão permeável às diversas manifestações do inquieto cenário cultural no Brasil das décadas de 1970 e 1980. Seus versos continuaram se reinventando ao longo dos anos 1990 e 2000, e consolidaram seu papel de poeta múltiplo em livros como Algaravias, lançado em 1996.  Poesia Total reúne pela primeira vez a obra poética completa de Waly Salomão, desde Me segura que eu vou dar um troço, de 1972, até Pescados vivos, de 2004. O volume traz ainda uma seção de canções inéditas em livro, além de apêndice com os mais relevantes textos sobre sua obra, assinados por nomes como Antonio Cícero, Francisco Alvim e Davi Arrigucci Jr.  Em Gigolô de Bibelôs, seu segundo livro, o seguinte verso ecoa: “tenho fome de me tornar em tudo que não sou”. Tal desejo de abolir fronteiras e de confronto com os limites — entre o eu e o outro, entre a prosa e a lírica, entre a arte e a vida — é uma das principais marcas da obra de Waly Salomão. Poesia total é uma viagem sem volta: um “processo incessante de buscas poéticas”, como disse o próprio autor sobre seu trabalho poético-visual, os Babilaques.



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OS ÚLTIMOS DIAS E PALAVRAS DE PAULO FREIRE (1921 – 1997): em Abril de 1997, um pataxó incinerado e uma Marcha do MST em Brasília são testemunhados pelo criador da Pedagogia do Oprimido

Em 02 de Maio de 1997, no Hospital Albert Einstein em São Paulo, faleceu Paulo Freire, fulminado por um “infarto agudo do miocárdio” (acesse: cronologia no Projeto Memória). Em seus últimos dias entre os vivos, ele havia testemunhado um Brasil cravejado por contradições, a um só tempo profundamente indignante e promissor.

No mês anterior ao falecimento de Freire, em Abril de 2017, uma imensa Marcha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) fez Freire vibrar e pulsar com seu ânimo revivificado. O MST descruzava os braços para a construção coletiva de um mundo menos opressivo e anunciava um outro Brasil, que tivesse vencido a “agressiva injustiça que caracteriza a posse da terra entre nós” – e por isso fez por merecer as palavras celebratórias do mestre:

“O MST, tão ético e pedagógico quanto cheio de boniteza, não começou agora, nem há 10 ou 15 ou 20 anos. Suas raízes mais remotas se acham na rebeldia dos quilombos e, mais recentemente, na bravura de seus companheiros das Ligas Camponesas que há 40 anos foram esmagados pelas mesmas forças retrógadas do imobilismo reacionário, colonial e perverso. (…) A luta pela reforma agrária representa o avanço necessário a que se opõe o atraso imobilizador do conservadorismo.

Exemplo histórico de retrocesso é a luta perversa contra a reforma agrária, em que os poderosos donos de terras e que querem continuar donos das gentes também, mentem e matam impunemente. Matam camponeses como se fossem bichos danados e fazem declarações de um cinismo estarrecedor: ‘Não foram os nossos seguranças que atiraram nos invasores, mas caçadores que andavam pelas redondezas.’ O menosprezo pela opinião pública revelado neste discurso fala do arbítrio dos poderosos e da segurança de sua impunidade. E isto no fim do segundo milênio… E ainda se acusam os Sem Terra de arruaceiros e baderneiros porque assumem o risco de concretamente denunciar e anunciar. Denunciar a realidade imoral da posse da terra entre nós e de anunciar um país diferente.

Com a experiência histórica os Sem Terra sabem muito bem que, se não fosse por suas ocupações, a reforma agrária pouco ou quase nada teria andado.” (FREIRE, P. Pedagogia da Indignação. P. 69-62-35)

E por falar em matar gente como se fosse bicho, vale lembrar o que ocorreria, neste Abril de 2017, poucos dias depois do MST colocar cerca de 100.000 pessoas na Esplanada dos Ministérios, acirrando a pressão sobre o governo FHC, no ano seguinte ao massacre de Eldorado dos Carajás. Na mesma Brasília que havia sido palco da grande manifestação dos Sem Terra, seria incinerado vivo o índio pataxó Galdino Jesus dos Santos. É sobre este tema que Paulo Freire escreve suas últimas palavras públicas, em uma carta pedagógica toda encharcada da emoção que tanto o caracterizou e o comoveu: a indignação ardente diante das opressões injustas e das “trágicas transgressões da ética”:

Galdino Jesus dos Santos, da etnia pataxó, na ala dos queimados do Hospital de Brasília. Ele foi queimado por cinco jovens enquanto dormia no dia 20 de abril de 1997. No dia seguinte, dia 21, Galdino morreu. (Brasília, DF, 20.04.1997. Foto de Leopoldo Silva/Folhapress). SAIBA MAIS: Memorial da Democracia

“Cinco adolescentes mataram hoje, barbaramente, um índio pataxó, que dormia tranquilo, numa estação de ônibus, em Brasília. Disseram à polícia que estavam brincando. Que coisa estranha. Brincando de matar. Tocaram fogo no corpo do índio como quem queima uma inutilidade. Um trapo imprestável. Para sua crueldade e seu gosto da morte, o índio não era um tu ou um ele. Era aquilo, aquela coisa ali. Uma espécie de sombra inferior no mundo. Inferior e incômoda, incômoda e ofensiva.

É possível que, na infância, esses malvados adolescentes tenham brincado, felizes e risonhos, de estrangular pintinhos, de atear fogo no rabo de gatos pachorrentos só para vê-los aos pulos e ouvir seus miados desesperados, e se tenham também divertido esmigalhando botões de rosa nos jardins públicos com a mesma desenvoltura com que rasgavam, com afiados canivetes, os tampos das mesas de sua escola. E isso tudo com a possível complacência quando não com o estímulo irresponsável de seus pais.

Que coisa estranha, brincar de matar índio, de matar gente. Fico a pensar, mergulhado no abismo de uma profunda perplexidade, espantado diante da perversidade intolerável desses moços desgentificando-se, no ambiente em que decresceram em lugar de crescer.

Penso em suas casas, em sua classe social, em sua vizinhança, em sua escola. Penso, entre outras coisas, no testemunho que lhes deram de pensar e de como pensar. A posição do pobre, do mendigo, do negro, da mulher, do camponês, do operário, do índio neste pensar. Penso na mentalidade materialista da posse das coisas, no descaso pela decência, na fixação do prazer, no desrespeito pelas coisas do espírito, consideradas de menor ou de nenhuma valia. Adivinho o reforço deste pensar em muitos momentos da experiência escolar em que o índio continua minimizado. Registro o todopoderosismo de suas liberdades, isentas de qualquer limite, liberdades virando licenciosidade, zombando de tudo e de todos.

Imagino a importância do viver fácil na escala de seus valores em que a ética maior, a que rege as relações no cotidiano das pessoas, terá inexistido quase por completo. Em seu lugar, a ética do mercado, do lucro. As pessoas valendo pelo que ganham em dinheiro por mês. O acatamento ao outro, o respeito ao mais fraco, a reverência à vida não só humana mas vegetal e animal, o cuidado com as coisas, o gosto da boniteza, a valoração dos sentimentos, tudo isso reduzido a nenhuma ou quase nenhuma importância.

Se nada disso, a meu juízo, diminui a responsabilidade desses agentes da crueldade, o fato em si de mais esta trágica transgressão da ética nos adverte de como urge que assumamos o dever de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais como do respeito à vida dos seres humanos, à vida dos outros animais, à vida dos pássaros, à vida dos rios e das florestas. Não creio na amorosidade entre mulheres e homens, entre os seres humanos, se não nos tornamos capazes de amar o mundo. A ecologia ganha uma importância fundamental neste fim de século. Ela tem de estar presente em qualquer prática educativa de caráter radical, crítico ou libertador.

Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor.

Se a educação sozinha não transforma a realidade, sem ela tampouco a sociedade muda.

Se a nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da equidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o diferente e não de sua negação, não temos outros caminho senão viver plenamente a nossa opção. Encarná-la, diminuindo assim a distância entre o que fizemos e o que fazemos.

Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos outros.” (FREIRE, Paulo. PI. P. 76)

Segundo Nita, estas foram as últimas palavras escritas por Paulo, em 21 de Abril de 1997, e servem como emblema para os últimos dias vivenciados pelo autor da Pedagogia do Oprimido: “Paulo mostrava sua alegria incontida ao ler em voz alta as passagens que escrevera sobre a Marcha do MST e indignado alguns esboços que então tinha feito, naquele mesmo dia, sobre o atentado criminoso contra Galdino”, relembra Nita (p. 79).

“As notícias da mídia estiveram voltadas para a dramática história que acontecera na madrugada de Brasília, irônica ou propositadamente (?) no Dia do Índio… Ao ter a notícia de que o nosso índio pataxó não resistira à ‘dor indizível de seu corpo em chamas’, Paulo escreveu então essas palavras derradeiras. Mais contundentes e mais cheias de indignação… Testemunharam a energia emanada de sua indignação e de seu amor; a vontade de trabalhar e de participar, criticamente, da vida de seu país; e o gosto de viver que Paulo levou consigo na madrugada de 2 de Maio de 1997.” (ANA MARIA ARAÚJO FREIRE, P.I., p. 79)

Segunda esposa de Paulo Freire, Ana Maria Araújo Freire escreveu uma das mais completas biografias dele: Paulo Freire – Uma História de Vida, lançado em 2005 e premiado com o 2º lugar do Prêmio Jabuti daquele ano (em 2017, a Paz & Terra o relançou em luxuosa edição, com capa dura, com quase 600 páginas e recheada de fotos).  

Ali Nita relembra os últimos momentos entre os vivos de Paulo e seus planos para o futuro imediato (que nunca se realizariam). Ele estava prestes dar início a um curso que lecionaria na Universidade de Harvard, em parceria com Donaldo Macedo, e após ter acertado o contrato estava imerso em reflexões sobre como seria sua prática docente em uma universidade que, apesar de tão prestigiosa, era “tão elitista e conservadora”; além disso, Paulo Freire preparava-se para viajar para Cuba, onde receberia das mãos de Fidel Castro o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Havana. A indesejada das gentes, porém, veio fulminar o mestre enquanto este plantava suas couves (para relembrar um ensaio inesquecível de Montaigne). Escreve Nita (2017, p. 556):

“Paulo morreu da única coisa que o poderia matar: do coração. Seu coração dadivoso nunca tinha se poupado em oferecer-se aos que dele precisavam. Seu coração amoroso não suportou a malvadez e os desrespeitos praticados pelos invejosos e perversos sobre os fracos e oprimidos. Seu coração generoso não aguentou as dores do mundo. Paulo desgastou-se no amor. Por tanto amar. De muito e intensamente amar. Por sua valentia de tanto amar.

Lembro-me de que, ainda no Hospital Albert Einstein, Frei Betto foi abraçar-me… Escreveu esta carta de despedida intitulada A Leitura do Mundo:

https://soundcloud.com/outras-palavras/frei-betto-paulo-freire-a-leitura-do-mundo

«Ivo viu a uva», ensinavam os manuais de alfabetização. Mas o professor Paulo Freire, com o seu método de alfabetizar conscientizando, fez adultos e crianças, no Brasil e na Guiné-Bissau, na Índia e na Nicarágua, descobrirem que Ivo não viu apenas com os olhos. Viu também com a mente e se perguntou se uva é natureza ou cultura.

Ivo viu que a fruta não resulta do trabalho humano. É criação, é natureza. Paulo Freire ensinou que semear uva é ação humana e sobre a natureza. É a mão, multiferramenta, despertando as potencialidades do fruto. Assim como o próprio ser humano foi semeado pela natureza em anos e anos de evolução do Cosmo.

Colher a uva, esmagá-la e transformá-la em vinho é cultura, assinalou Paulo Freire. O trabalho humaniza a natureza e, ao realizá-lo, o homem e a mulher se humanizam. Trabalho que instaura o nó de relações, a vida social. Graças ao professor, que iniciou sua pedagogia revolucionária com operários do SENAI de Pernambuco, Ivo viu também que a uva é colhida por bóias-frias, que ganham pouco, e comercializada por atravessadores, que ganham melhor.

Ivo aprendeu com Paulo que, mesmo sem ainda saber ler, ele não é uma pessoa ignorante. Antes de aprender as letras, Ivo sabia erguer uma casa, tijolo a tijolo. O médico, o advogado ou o dentista, com todo o seu estudo, não era capaz de construir como Pedro. Paulo Freire ensinou a Ivo que não existe ninguém mais culto do que outro, existem culturas paralelas, distintas, que se complementam na vida social.

Ivo viu a uva e Paulo Freire mostrou-lhes os cachos, a parreira, a plantação inteira. Ensinou a Ivoque a leitura de um texto é tanto melhor compreendida quanto mais se insere o texto no contexto do autor e do leitor. É dessa relação dialógica entre texto e contexto que Pedro extrai o pretexto para agir. No início e no fim do aprendizado é a práxis de Ivo que importa. Práxis-teoria-práxis, num processo indutivo que torna o educando sujeito histórico.

Ivo viu a uva e não viu a ave que, de cima, enxerga a parreira e não vê a uva. O que Ivo vê é diferente do que vê a ave. Assim, Paulo Freire ensinou a Ivo um princípio fundamental da epistemologia: a cabeça pensa onde os pés pisam. O mundo desigual pode ser lido pela ótica do opressor ou pela ótica do oprimido. Resulta uma leitura tão diferente uma da outra como entre a visão de Ptolomeu, ao imaginar-se com os pés no sol.

Agora Ivo vê a uva, a parreira e todas as relações sociais que fazem do fruto festa no cálice do vinho, mas já não vê Paulo Freire, que mergulhou no Amor na manhã de 2 de maio. Deixa-nos uma obra inestimável e um testemunho admirável de competência e coerência.

Paulo deveria estar em Cuba, onde receberia o título de Doutor Honoris Causa, da Universidade de Havana. Ao sentir dolorido seu coração que tanto amou, pediu que eu fosse representá-lo. De passagem marcada para Israel, não me foi possível atendê-lo. Contudo, antes de embarcar fui rezar com Nita, sua mulher, e os filhos, em torno de seu semblante tranqüilo: Paulo via Deus.

Frei Betto

 

Que importância teria para nós, no Brasil de 2017, há 20 anos já separados da morte de Paulo Freire, relembrar as circunstâncias em que ele se foi? Para nós, acossados pelo avanço reacionário também na educação, com o projeto Escola Sem Partido mascarando a cavalgada dos neo-censores, com Mendoncinha do DEM(ônio) à frente do MEC e consultando Alexandre Frota sobre políticas públicas educacionais? Neste fundo-de-poço em que afundamos no período pós-democrático que se seguiu ao Golpe Parlamentar de 2016, de que multiformes maneiras pode a vida e a obra do criador da Pedagogia do Oprimido nos inspirar e iluminar?

Em primeiro lugar, eu diria que a importância é extrema pois ele é um daqueles poucos intelectuais públicos de impacto histórico que mantêm muita viva sua capacidade de nos comover. De nos acordar para uma vida ativa, de intervenção no mundo, e não de acomodação covarde a um mundo visto como imutável ou fatalmente determinado. Capaz de nos colocar na senda da prática coletiva que é a única que jamais trilharam os transformadores sociais que puseram mãos à obra na construção de um alter-mundo.

Em segundo lugar, relembrar e reavivar a chama de Paulo Freire é também essencial para pensarmos nossa utopia, aquilo que lá do horizonte distante guia os nossos passos presentes. Concretizar totalmente a utopia de um mundo menos opressivo e mais justo do que descalabro de mundo atual talvez seja impossível, talvez até mesmo indesejável, mas abdicar totalmente de utopia nos faz chafurdar na apatia dos que não se mobilizam, ou mesmo no conservadorismo imobilista dos reacionários, apegados demais às tradições passadas – por mais perversas e injustas que sejam – para ousarem inventar um amanhã melhor. Paulo Freire está aí, no presente e no futuro, para nos ensinar a “pensar o amanhã”.

Paulo Freire ensina-nos, a todos, sobre o “direito que tem o ser humano de comparecer à História não apenas como seu objeto, mas também como sujeito. O ser humano é, naturalmente, um ser da intervenção no mundo… Inacabado como todo ser vivo – a inconclusão faz parte da experiência vital -, o ser humano se tornou, contudo, capaz de reconhecer-se como tal. A consciência do inacabamento o insere num permanente movimento de busca… Só o ser inacabado, mas que chega a saber-se inacabado, faz a história em que socialmente se faz e se refaz. (…) Aí radicam, de um lado, a sua educabilidade, de outro, a esperança como estado de espírito que lhe é natural.” (p. 139)

Frases assim – que fazem Freire merecer figuras nas páginas de O Princípio Esperança de Ernst Bloch – fazem de Freire uma espécie de profeta. Sua dialética da denúncia e do anúncio revela pensador atento àquilo que o filósofo marxista Karel Kosík chamada de A Dialética do Concreto. Somos seres vivos condenados à finitude, à inconclusão, e os únicos cientes de seu inacabamento que os move à permanente busca em que se radica o processo educativo – que também não pode ser concebido senão como processo permanentemente recomeçado, nunca acabado.

Nossa educação não acaba nunca, e nossas lutas contra a opressão tampouco. Recusar-se a participar do mundo comum, cruzar os braços e nada fazer, é uma ofensa que realiza-se contra nossa vocação ontológica de ser-mais. Juntos, coligados, nas lutas contra a multiplicidade de opressões que nos esmagam, solidários no ímpeto de rebeldia criativa contra um mundo caduco, é que mais fazermos rebrilhar o ser-mais que está entre os nossos possíveis. Freire, sábio do in: intervenção, inserção, interação, inconclusão na ciência de si mesma e que sai então em busca de uma inter-educação, dialógica e mutuamente instrutiva.

Em sua “radical recusa à ordem desumanizante” (p. 49), Paulo Freire afirma a necessidade do pensamento e da práxis utópicos. Em Pedagogia da Indignação, lemos Paulo Freire confessar ao leitor, com sua costumeira sinceridade desabrida, que suas cartas “devem se achar ‘ensopadas’ de fortes convicções ora explícitas, ora sugeridas. A convicção, por exemplo, de que a superação das injustiças que demanda a transformação das estruturas iníquas da sociedade implica o exercício articulado da imaginação de um mundo menos feio, menos cruel. A imaginação de um mundo com que sonhamos, de um mundo que ainda não é, de um mundo diferente do que aí está e ao qual precisamos dar forma… Gosto de ser gente porque o mudar o mundo é tão difícil quanto possível.” (PAULO FREIRE, op cit, p. 43)

O que o mundo exige de nós, como Marx já o dizia, não é apenas sua compreensão, mas sua transformação. E para cumprirmos esta meta, o mestre sempre ensinou, é preciso que tenhamos a coragem de sempre denunciar e anunciar. A unidade dialética entre a denúncia da realidade conspurcada por opressões multiformes e o anúncio de um outro mundo possível que não é somente sonhado, mas criado pela coletividade em conjunto em trabalho de parto de um alter-real, é um dos legados mais preciosos deste sábio que foi Paulo Freire. Relembrar como foram seus últimos dias e palavras entre os vivos – com o impacto que ele sofreu das mega-marchas do MST e do crime hediondo contra Galdino – é também reavivar a chama de um pensador da práxis que insistiu sempre: o que a vida exige de nós é a valentia de amar.

Eduardo Carli de Moraes
21 de Novembro de 2017

 

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TRILHA SONORA SUGERIDA:

“Índio”
Autores: Gabriel Moura, Seu Jorge e Sergio Granha
Intérprete: Farofa Carioca
Ano de lançamento: 1998
Ouça o álbum completo Moro no Brasil

“Hoje são 250 mil, mataram milhões
De tristeza e solidão
Na bala, no chicote, na humilhação
Índio foi queimado vivo quando dormiu
Índio comeu peixe poluído do rio
Índio quer saber se chega ao ano dois mil
Índio veio morar numa favela do Rio.”


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O AMOR SEM RESTRIÇÕES À TOTALIDADE DA VIDA: Lou Salomé & Nietzsche – Confluências e Dissonâncias

Lou Salomé, Paul Rée e Friedrich Nietzsche em fotografia de Jules Bonnet

HINO À VIDA (1881)
de Lou Salomé [1861 – 1937]

Tão certo quanto o amigo ama o amigo,
Também te amo, vida-enigma
Mesmo que em ti tenha exultado ou chorado,
mesmo que me tenhas dado prazer ou dor.

Eu te amo junto com teus pesares,
E mesmo que me devas destruir,
Desprender-me-ei de teus braços
Como o amigo se desprende do peito amigo.

Com toda força te abraço!
Deixa tuas chamas me inflamarem,
Deixa-me ainda no ardor da luta
Sondar mais fundo teu enigma.

Ser! Pensar milênios!
Fecha-me em teus braços:
Se já não tens felicidade a me dar
Muito bem: dai-me teu tormento.

Ouça a composição de Friedrich Nietzsche
“Hymnus an das Leben”
Partitura da música completa: http://bit.ly/Ra8SR0 | Arranjo: Peter Gast
Assista/escute com orquestra: http://youtu.be/FIOIUlDB5yU


Sabemos que o poema Hino à Vida, de Lou Salomé, era profundamente venerado por Nietzsche. Tanto que o filósofo compôs a música para acompanhar os versos de sua amiga, tendo sido esta a única partitura que publicou em vida, com arranjos para orquestra e coro a cargo de Peter Gast. A celebração da existência, o dionisíaco evoé entoado por um sujeito capaz de dizer um sagrado sim à tudo que a “vida-enigma” contêm é um elo de união entre Nietzsche e Lou Salomé, dois destinos que se entrelaçam de maneira inextricável. Nietzsche, tanto adorava a filosofia de Heráclito, sua descrição da Phýsis como um devir cósmico onde tudo flui e o “combate é o pai de todas as coisas”, deve ter encontrado uma sabedoria heraclitiana em Lou: “deixa-me ainda no ardor da luta”, ela entoava, “sondar mais fundo seu enigma.”

Em ambos somos ensinados que a existência não precisa ser compreendida para ser amada. E que é possível um amor inclusivo, que abraça até mesmo o que a condição de ser vivo envolve de mais trágico e doloroso – a doença, a finitude, a fragilidade dos laços humanos. A vida, com tudo o que tem de exultação ou depressão, de delícia ou sofrimento, comovia Nietzsche a ponto dele parir uma obra que é pura “estrela dançarina” que brota de um íntimo em exuberante estado de caos. Que a loucura em que soçobrou não nos impeça de celebrar também a sabedoria deste maluco beleza que quis conclamarmos a esta “afirmação dionisíaca em face do mundo, tal qual ele é, sem redução, sem exceção nem escolha, (…)  que é o estado mais elevado que um filósofo pode atingir: manter diante da existência uma atitude dionisíaca, e para isso eu tenho uma fórmula: amor fati. Para isso, devem-se considerar os aspectos renegados da existência não somente como necessários, mas como desejáveis.” (Nietzsche, F. Fragmentos Póstumos 13: 16 [32] verão de 1888).

Nietzsche age como porta-voz de uma sabedoria plenamente fiel à terra, agressivamente críticas das ilusões em forma de esperanças supraterrenas e deuses transcendentes. A celebração dionisíaca da existência imanente em todo seu esplendor e fúria é louvada como uma das capacidades supremas que marca o espírito libertado. Nietzsche, pois, transmite na história da ética as coordenadas e os horizontes para que pratiquemos coletivamente uma transvaloração da axiologia hegemônica, que postula a transcendência como o lócus do valor e da redenção e exige, por isso, os mais atrozes sacrifícios: assassinar a vida em prol da quimera de uma outra condição no além-túmulo que não passa de delírio da mente crente, alienada de sua efetiva condição.

Em Humano Demasiado Humano – Um Livro Para Espíritos Livres, podemos aqui e acolá notar a presença do tema do amor: Nietzsche faz uma conclamação, um apelo, para que o amor tenha por meta a imanência e não a transcendência, isto é, que amemos esta vida real e concreta onde florescemos e fenecemos, desapegados de qualquer fantasia sobre uma vida paradisíaca no além-morte, artigo de fé nefasto que arrasta-se desde o idealismo platônico e segue marcando a ideologia de todas as doutrinas teístas. Nietzsche, no livro dedicado a Voltaire no centenário de sua morte, dá conselhos de moralista: “Eis o melhor meio de começar cada dia: perguntar-se ao despertar se nesse dia não podemos dar alegria a pelo menos uma pessoa. Se isso pudesse valer como substituto do hábito religioso da oração, nossos semelhantes se beneficiariam com tal mudança.” (§589) O filósofo expressa este louvor ao amor terrestre e mundano, em oposição à idolatria religiosa de ídolos sobrenaturais ou metafísicos, em frases lapidares: “Não há no mundo amor e bondade bastantes para que tenhamos direito de dá-los a seres imaginários.” (§129)

O espírito livre nietzschiano quer prestar suas homenagens à tradição Iluminista e seus combates contra o obscurantismo – este, que com tanta frequência justifica os horrores que pratica na Terra invocando a quimera do paraíso transcendente. Se matam hereges na fogueira, se assassinam uma Hipátia ou um Giordano Bruno, se queimam livros de Demócrito e Epicuro, se mandam calar na marra a voz dos dissidentes, é tudo para melhor garantir que os “Homens de Bem” possam gozar das delícias de crer no Paraíso.

Neste, aliás, segundo Tertuliano, uma das mais deleitosas gostosuras que hão de gozar os bem-aventurados que forem promovidos para o Céu terão como um de seus gozos celestiais a observação das penas crudelíssimas e ultra dolorosas de que serão vítimas os danados no Inferno. Os que Deus aceitará de volta no ninho de seu Éden, que presenteará com a concretização da promessa messiânica do “os últimos serão os primeiros”, blessed are the meek ‘cause theirs is the Kingdom of God, poderão se deliciar no Céu com a visão de seus adversários terrestres ardendo na câmara de torturas infernal. Eis aí uma autêntica religião para sádicos e vingativos…

Todos os horrores descritos por Dante Aleghieri no Inferno da Divina Comédia, todos os quadros apavorantes da mentalidade paranóica medieval capturados nos quadros de Hieronymous Bosch, atordoam a consciência do crente demasiado convicto na existência de um Além, de um prosseguimento de nossa consciência no período pós-morte, as punições e recompensas celestiais ou infernais que Epicuro e Lucrécio já denunciavam como algumas das principais inimigas da serenidade, da felicidade, da ataraxia humana.

Tais delírios de vida supraterrena podem lançar o sujeito ao niilismo da fé: a negação do valor à vida concreta, ao corpo presente, aos sentidos reais, aos prazeres possíveis de serem vivenciados pelos entes que somos, isto é, consciências corporificadas e com prazo de validade neste fluxo ininterrupto do Universo que integramos: onimovente, cíclico, animado por uma Vontade transpessoal que nos transborda por todos os lados e que é plena exuberância criativa e cosmo-poiésis infinda. Somos parte disso, e que felicidade pode dizer Sim!

Para Nietzsche, não há paraísos senão os imanentes, logo precários, como tudo que é real. Tanto sabedoria quanto amor são para aqui e para já – ou nunca serão. No “Hino à Vida”, o poema de Lou Salomé que Nietzsche tanto reverenciava, percebemos uma significativa contribuição filosófica e estética ao tema do amor à imanência e da fidelidade à terra.

Dorian Astor, autor de duas biografias dedicadas às vidas e espíritos entrelaçados de Nietzsche e Lou Salomé, relembra alguns dos principais momentos deste convívio. Nascida em 1861, em São Petersburgo, na Rússia, a jovem Lou Salomé, quando tinha aproximadamente 20 anos, seria “iniciada à filosofia árida e fascinante de Nietzsche, que espera dela muito mais do que ela pode dar, mas que lhe passa todas as armas do espírito livre” (ASTOR, 2015, p. 8) A jovem Lou teria sido para Nietzsche não somente uma discípula que ele fervorosamente desejava ter sob seu círculo de influência, mas também uma das mulheres que mais conseguiu encantar e apaixonar ao filósofo – que propôs a ela casamento em duas ocasiões, e em ambas foi rejeitado.

Motivo de inumeráveis fofocas e boatos, o ménage à trois que envolveu Lou Salomé, Nietzsche e Paul Rée possui uma imagem icônica dos três, Lou com o chicote em mãos, Nietzsche e Rée na posição de cavalos atrelados a uma charrete – fotografia que ilustra a obra magistral O Bufão dos Deuses, de Maria Cristina Franco Ferraz, uma das mais perspicazes e bem informadas comentadoras de Nietzsche hoje em atividade. Um tema ainda pouco comentado e difundido é a qualidade assombrosa das contribuições das mulheres para nossa compreensão de Nietzsche: além de Maria Cristina, figuras como Scarlett Marton, Rosana Suarez, Sarah Kofmann, Rosa Dias, além da própria Lou Salomé, autora do crucial livro Nietzsche Através de Suas Obras (1894), têm alargado nossos horizontes sobre o nietzschianismo com contribuições inestimáveis.

A tríade Nietzsche – Lou – Rée já ganhou crônicas cinematográficas, a mais significativa delas sendo o filme Além do Bem e do Mal, da cineasta italiana Liliana Cavani, lançado em 1977. Lou, transfigurada em uma personagem só vagamente assemelhada à mulher real, marcou presença também em Quando Nietzsche Chorou, romance de Irvim Yalom que fantasia sobre o convívio (que nunca ocorreu) entre Nietzsche e o Breuer, e que ganhou versão cinematográfica em 2007 na película dirigida por Pinchas Perry.

Em nenhuma destas duas obras a relação de Nietzsche e Lou Salomé ganha um retrato devidamente aprofundado, que revelasse a densidade psicológica e a complexidade do vínculo entre eles. Em especial, passa-se em silêncio, com frequência, sobre aquilo que mais fortemente os unia, que era a experiência da descrença, ou seja, a vivência da perda da fé. Na apostasia, eles comungavam. Nietzsche, filho de pastor protestante, que teve relações bastante conflitivas com a beatice da mãe e da irmã, iria se tornar um dos mais radicais críticos da religião cristã instituída, proclamando-se O Anticristo, o dinamitador de uma tradição decadente, o filósofo que a golpes de martelo vinha para pôr fim ao reinado de um deus quimérico e em seu século já moribundo, caído no descrédito crescente, submergido por marés cada vez mais altas de ceticismo, agnosticismo, ateísmo (uma vaga histórica de descrença militante que inclui Feuerbach, Marx, Engels, Darwin, Freud, Camus, Sartre, Comte-Sponville, Onfray, e por aí vai).

Ilustração: Charb, do Charlie Hebdo, em Marx: Manual de Instruções, de Bensaïd (Ed. Boitempo)

“Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!” – Nietzsche, Gaia Ciência, §125

Lou, é evidente, era muito mais serena, menos agressiva e bélica, mais tranquila e sábia, na expressão de seu pensamento às vezes profundamente subversivo dos dogmas vigentes e fés hegemônicas. Também na vida de Lou são relatados conflitos familiares que a opõe à sua mãe: “a incredulidade da filha, suas atividades intelectuais, sua repugnância pelo casamento, suas uniões livres, ou seja, os ventos de liberdade e independência que soprarão sobre sua vida, foram constantes motivos de reprovação por  sua mãe”, escreve Astor (p. 13).

Tanto Nietzsche quanto Lou, desde muito jovens, irão se rebelar contra uma noção sacrificial sobre a condição humana, quase sempre vinculada a uma crença religiosa demasiado dogmática e inquestionada que conduz o sujeito a sacrificar o que ele tem de mais seguro. O ascetismo é a ética enlouquecida pela mania da auto-mortificação, em que o sujeito alucinado de idealismo religioso volta-se contra seu corpo, sua mente, sua vida presente, sua vontade de existir pulsando em seu seio, seu conatus ou seu élan vital (como diriam Spinoza ou Bergson), sua vontade de potência como dirá Nietzsche, no altar da esperança, muito provavelmente infundada, falaciosa, mentirosa – de ganhar através deste sacrifício o tíquete de acesso, depois da morte, a uma vida melhor, paradisíaca, escondida em Cucolândia das Nuvens e prometida aos obedientes, aos servis, aos mansos, aos que não resistem à opressão, aos escravos satisfeitos de sua escravidão, que contentam-se em sonhar com uma vingança do além-túmulo.

Lou e Nietzsche comungam na suspeita de que aqueles que sacrificam a vida na esperança de uma vida-após-a-morte estão na ilusão, cometem um crime contra si mesmos e contra a energia da Vida que neles pulsa. Sem ser uma feminista militante – ela está longe de escrever um livro-manifesto como o Vindication of the Right of Woman de Mary Wollstonecraft – Lou Salomé contribui com seu exemplo vivo para a disseminação de noções libertárias sobre a mulher independente, autônoma, crítica, criativa, multi-talentosa, que ousa buscar o conhecimento para além das balizas tradicionais. Para Astor, “sem dúvida ela esteve em conflito com a imagem sacrificial da mulher” (p. 14)

Anaïs Nin (1903 – 1977), em seu prefácio à biografia escrita por H. F. Peters, Lou – Minha Irmã, Minha Esposa (RJ: Zahar, 1974), escreve:

“Graças à sensibilidade, compreensão e empatia do autor, adquirimos o conhecimento íntimo de uma mulher cuja importância para a história do desenvolvimento da condição feminina é imensa. Peters traçou com amor um retrato que nos comunica o talento e a coragem de Lou. Lou Andreas-Salomé simboliza a luta para transcender convenções e tradições nos modos de pensar e de viver. Como é possível a uma mulher inteligente, criativa, original, relacionar-se com homens de gênio sem ser dominada por eles? O conflito entre o desejo da mulher de se fundir com o amado e ao mesmo tempo manter sua identidade própria é a luta da mulher moderna. Lou viveu todas as fases e evoluções do amor, da entrega à recusa, da expansão à contração. Casou-se e levou vida de solteira, amou homens tanto mais velhos quanto mais novos. Sentia-se atraída pelo talento, mas não queria ser apenas musa ou discípula. (…) Como era bela, o interesse masculino passava com frequência da admiração à paixão; se Lou não correspondia, era considerada fria. Sua liberdade consistiu em dar expressão às suas necessidades inconscientes profundas. Viu a independência como a única maneira de realizar o movimento. E, para ela, o movimento era o crescimento e a evolução constantes.” (ANAÏS NIN, 1974, pg. 9-10)

Ficamos tentados a dizer que Nietzsche, que em Humano Demasiado Humano descrevia os espíritos livres como amigos imaginários, inventados pelo filósofo para que fizessem companhia a ele em sua solidão de adoentado nômade, encontra em Lou Salomé um espírito livre em carne-e-osso, em todo o esplendor de uma jovem mulher audaz, vivaz, perspicaz, prova viva da exuberância do lema iluminista: sapere aude – ousa saber. Como Nietzsche não sentiria, diante dela, inúmeras afinidades que a tornavam uma mente irmã, uma provável discípula, uma desejável esposa? Ele, Nietzsche, encontrou muitas similaridades na postura existencial dele e de Lou Salomé: ambos preferiam pensar livre ao invés de enterrar-se vivo no túmulo dos dogmas rígidos, das convicções imutáveis e das fés congelantes. Como diz Peters, “Nietzssche e Lou estavam ambos em busca – e daí o segredo de sua afinidade – de uma nova fé, que afirmasse o poder e a glória da vida, sem exigir a mortificação da carne.” (PETERS, 1974, p. 81)

 

O historiador George Minois, que devotou mais de 700 páginas à A História do Ateísmo (Ed. Unesp), relembra em seu livro uma carta de Fritz Nietzsche à sua irmã Elisabeth onde ele diz:  “Se queres a paz da alma e a felicidade, então crê; se queres ser um discípulo da verdade, então busca.” E Minois comenta: “A primeira posição é a mais confortável. Mas quando se perde a fé, não se pode mais voltar atrás.” (MINOIS, 2014, p. 626)

Em livro recente, Marcos de Oliveira Silva abordou com maestria o tema da Autópsia do Sagrado – Religião, Ateísmo e Contemporaneidade em Nietzsche (2012), onde o autor reconhece muitas semelhanças entre a crítica nietzschiana da religião e outro importante pensador alemão contemporâneo, Ludwig Feuerbach, prenunciador do “a religião é ópio do povo” de Karl Marx.

Feuerbach “acreditava que o fenômeno religioso era basicamente um meio fantasístico de compensação; assim, diferente do pretenso altruísmo da religião, o filósofo explica que o verdadeiro teor das ideias religiosas é sempre de fundo o egoísmo, ou de outra forma, o utilitarismo é a base central da ideação religiosa. A ideia de uma benévola providência é uma importante arma contra a angústia, essa crença gera uma sensação de sentido para as coisas. As injustiças e dificuldades sentidas no mundo terreno seriam hipoteticamente reparadas e superadas eternamente no ‘reino de Deus’. Este desejo de conferir à existência um sentido absoluto pode ser percebido pela frase do senso comum que afirma que ‘Deus tarda, mas não falha’. Porém, a lógica do ateísmo de Feuerbach ensina que ‘além de sempre tardar, Deus sempre falha’. Isso foi dito da seguinte maneira pelo filósofo:

Ludwig Feuerbach (1804-1872)

“O além chega sempre tarde com suas curas; ele cura o mal depois que ele já passou, só com, ou após a morte… O amor que o além criou, que consola o sofredor, é o amor que cura o doente depois que ele faleceu, que dá água ao sedento que já morreu de sede, que dá alimento ao faminto depois que ele já morreu de fome…Deixemos pois os mortos e só nos ocupemos com os vivos!  Se não acreditarmos mais numa vida melhor mas quisermos, não isoladamente, e sim com a união de forças, criaremos uma vida melhor, combateremos pelo menos as injustiças e os males crassos, gritantes, revoltantes, pelos quais a humanidade tanto sofre.” (FEUERBACH, 1989, pp. 236-237)

De acordo com as Preleções sobre a essência da religião, segundo o “viés ateísta proposto por Feuerbach, a difusão sistemática das variadas promessas religiosas desempenha estrategicamente um papel muito importante na perpetuação da miséria de um povo…. é um conjunto de falsas promessas… apontam para uma solução a partir de uma intervenção sobrenatural, acreditam assim que não o homem mas sim as ‘mãos divinas’ mudarão o rumo do nosso sofrido mundo. Criticamente, Feuerbach vê esta doce esperança como uma forma alienante de abafar nossas reais responsabilidades terrenas, um obstáculo ideológico ao avanço de nosso ímpeto revolucionário que pede mudanças efetivas.  Assim sendo, acreditando em uma grandiosa revolução vinda do céu, reforçamos a nossa covardia diária que nos impede de enfrentar de forma concreta aqueles que nos oprimem… Esperando usufruir a bela paisagem lúdica de um paraíso pós-morte, para o filósofo, deixamos de construir os alicerces necessários para uma sociedade mais justa.” (OLIVEIRA, 2012, p. 123)

2. A MORTE DE DEUS: DE TENDÊNCIA HISTÓRICA A METAMORFOSE SUBJETIVA

Lou Salomé soube enxergar também o quanto havia de narcisismo infantil no apego do sujeito à crença em um Deus-Pai. Auto-psicanalisando-se, descobriu na sua própria infância um “Deus que é o melhor aliado do narcisismo da garotinha”, o “grande instituidor de presentes”, mas também aquela instância superior que a pequena Lou invoca quando sente-se injustamente punida pelos pais. Ou seja, quando ela apanha por ter sido considerada pelas autoridades familiares como desobediente ou travessa,  apela para o Bom Deus como uma espécie de Juiz Justiceiro que mora nas nuvens: “eu era, com frequência, uma criança ‘má’, e por isso tive que travar doloroso contato com uma varinha de bétula, coisa que nunca deixei de denunciar ostensivamente ao Bom Deus.” (p. 16)

Na literatura de Lou, podemos encontrar uma narrativa ficcional de 1922 chamada A hora sem Deus, onde mais uma vez entra em cena a noção infantil de um Deus como Grande Vigia, Olho Que Tudo Vê, Guardião do Rebanho dos Homens: “Ele que vê o que está escondido, com Seus olhos onipresentes, para os quais a coberta da cama não era um obstáculo”, escreve Lou. Ela percebe que este Deus era como uma espécie de brinquedo da menina, manipulado em sua imaginação como o boneco de um juiz, “aliando-se com a criança perante todos os adultos com suas noções e interesses estranhos e suas paixões pela pedagogia.” Para Astor, “Deus constitui, assim, a instância de uma relação primordial consigo mesma, e nem um pouco uma experiência da alteridade. Deus é momento de uma dialética; é aquele que deve morrer, aquele que deve ser superado no movimento da maturação, de uma afirmação de si que é conquistada de maneira autônoma.” (p. 17)

Ou seja, Lou Salomé parece defender que a maturidade humana só chega quando sabemos matar dentro de nós – o único lugar onde ele jamais viveu – o Deus de nossa infância, sepultando esse narcisismo espectral e delirante de modo a conquistarmos para nós A Hora Sem Deus, momento de superação, de auto-transfiguração, onde essa “relação fantasiosa um pouco frágil chegou ao fim”. (…) A morte de Deus, longe de autorizar o imoralismo, fundará rigorosamente a submissão incondicional a um princípio de realidade.” (p. 17)

Utilizando-se de terminologia Freudiana – afinal de contas, Lou Salomé também terá significativa contribuição à história da Psicanálise como movimento científico internacional no âmbito da medicina das mentes e se tornará talvez a primeira mulher a atuar na profissão de psicanalista, apoiada pelo próprio Freud – Lou mostra as difíceis batalhas do sujeito para superar a ilusão religiosa nascida do princípio de prazer e do desejo de consolo, rumo a uma consciência cada vez mais desperta ao real e lúcida na efetividade.

Astor percebe muito bem que “o motivo, em modo menor, é quase nietzschiano, e percebemos em sua magistral obra sobre o filósofo, Friedrich Nietzsche em suas obras (1894), que Lou Andreas-Salomé reconheceu o instinto profundo que preside esta conscientização da morte de Deus: para ela, “os motivos que incitam a maior parte dos indivíduos a se emancipar da religião são quase sempre de ordem intelectual, e essa emancipação não se efetua sem dolorosas lutas”. De modo que, como comenta Astor, “o problema vital da infância não é, para Lou, a perda do Deus pessoal, que no fundo é apenas a queda de uma fruta madura demais. É do lado de cá que acontece a desaparição primordial, ao mesmo tempo em que a ascensão ao real.”

A desaparição, a dissolução, a superação da crença em Deus no universo subjetivo do indivíduo, as metamorfoses que isto implica, as tarefas novas que daí decorrem, implicam que o processo da apostasia, do tornar-se ateu, do lançar-se aos mares abertos da descrença e de aventura intelectual, é vivido praticamente como uma espécie de segundo nascimento. O parágrafo inicial da autobiografia de Lou Salomé, Minha Vida, com admirável radicalidade, narra o nascimento humano:

“Nossa primeira experiência, coisa notável, é a de um desaparecimento. Momentos antes, éramos um todo indivisível, todo Ser era inseparável de nós; e eis que fomos lançados ao nascimento, nos tornamos um pequeno fragmento desse Ser e precisamos cuidar, desde então, para não sofrer outras amputações e para nos afirmarmos em relação ao mundo  exterior que se ergue a nossa frente numa amplidão crescente, e no qual, deixando nossa absoluta plenitude, caímos como num vazio – que em primeiro lugar nos despojou.” (LOU SALOMÉ, Minha vida.)

Lou evoca uma indistinção originária entre o eu e o mundo, um período antes do nascimento do sujeito individuado, onde o bebê ainda não possui consciência de si, encontra-se fundido no grande todo, experimentando o que Freud chamará de “sentimento oceânico”, antes da saída do mundo intra-uterino, pontapé inicial do processo de individuação e que Otto Rank tematizará em O Trauma do Nascimento e que ganhou genial expressão literária em recente romance de Ian McEwan (Enclausurado / Nutshell). 

Segundo Astor, “Lou tomou de Schopenhauer a ideia de que o nascimento é uma queda no mundo das aparências, segundo um princípio de individuação que limita o ser singular e aliena sua compreensão do grande Todo: ‘No mais profundo de si mesmo, o nosso ser rebela-se em absoluto contra todos os limites. Os limites físicos são-nos tão insuportáveis quanto os limites do que nos é psiquicamente possível: não fazem verdadeiramente parte de nós. Circunscrevem-nos mais estreitamente do que desejaríamos.’ Ao dizer isso, ela não clama o inconveniente de ter nascido, mas antes afirma, com o Nietzsche de O Nascimento da Tragédia, a força plástica e individuante do apolíneo, a reconquista artística da onipotência dionisíaca, que é poder de vida. Ela não cessará de repetir, até o fim de sua vida, a seguinte alegre afirmação:

“A vida humana, ah!
A vida sobretudo – é poesia.
Inconscientes, nós a vivemos, dia a dia,
Passo a passo – mas em sua intangível
Plenitude ela vive e nos traduz em poesia.”

LOU ANDREAS-SALOMÉ

Astor atribui tais idéias à uma profunda assimilação do “amor fati” de Nietzsche, esse “amor pelo destino e essa sabedoria que só podem ser adquiridos ao preço de um esforço heróico”, que Lou caracterizará como uma identificação plenamente afirmativa e celebratória com a totalidade da vida. Lou celebra “o encanto supremo que confere à vida seu caráter efêmero demais” e sugere que “precisamos nos sentir inexoravelmente determinados, mas por uma força com a qual nos identificamos, uma força que nós mesmos nos tornamos.” (Astor, 21)

3. ALÉM DA CRENÇA E SEUS DOGMAS, A MATURAÇÃO DE UMA VIDA DEVOTADA AO CONHECIMENTO

Outro elo que une Lou e Nietzsche está na devoção com que ambos dedicaram-se ao conhecimento após terem rompido vínculos com a fé. Ambos são apóstatas que se desviaram dos caminhos prescritos pela família: se Nietzsche, filho de pastor protestante que torna-se um luminar do ateísmo e que nunca se reconcilia com a beatice de sua mãe e sua irmã, por seu lado Lou Salomé desde a adolescência manifesta também ímpetos rebeldes e contestadores em relação à religião:

“A morte de Deus marca para Lou o acesso a um rigor intelectual que logo se manifestará em seu caráter estudioso. Inúmeros textos comprovam, em Lou, o laço de causalidade entre a perda de Deus e a sede de conhecimento. O artigo Criação de Deus analisará o desenvolvimento intelectual não apenas como compensação do lugar vazio deixado por Deus, mas como a conquista de um autonomia e recentramento de si. Aos 17 anos, Lou assiste às aulas de catecismo preparatório para a confirmação, etapa essencial da vida protestante russa… As aulas são ministradas pelo pastor Hermann Dalton (1833-1913), que manifesta um conservadorismo agressivo, que lhe valerá muitos inimigos, entre os quais David Strauss e Ernest Renan. Lou não gosta do pastor, que corresponde o sentimento; Dalton se informa junto aos Salomé sobre o espírito rebelde da jovem, desde o dia em que, ao ensinar que não existe lugar onde não se possa imaginar a presença de Deus, Liola lhe responde em tom de provocação: ‘Existe sim, o Inferno!”

A ‘liberdade interior’ conquistada com a morte de Deus, o fortalecimento das forças intelectuais percebidas como vitais, de repente se viram confrontados com uma ortodoxia rígida e desprovida de vida, um saber que se esgotava numa prescrição sem alternativas. Se a religião da infância havia sido uma experiência do maravilhoso, sua justificação friamente teológica varria para longe os últimos resquícios de nostalgia, e permitia aderir alegremente ao espírito novo: ‘deixei em definitivo o mundo dos crentes e me separei abertamente da igreja.'” (ASTOR , pg. 25)

Lou Salomé, abandonando a crença de sua infância, embarca na aventura do conhecimento: troca São Petersburgo por Zurique e, na mesma Suíça onde Nietzsche desenvolveu por 10 anos (1869-1879) seus trabalhos como professor na Universidade de Bâle (Basiléia), ela irá prosseguir seus estudos incansáveis, que farão dela uma das intelectuais mais completas de seu tempo, com expressão na filosofia, na psicologia, na literatura. Quando Lou e Nietzsche se conhecerem em 1882, por intermédio de Paul Rée e Malwida Meysenbug, encontrarão muitos temas de conversa, mas um em especial terá destaque: a morte de Deus e suas consequências para a vida do sujeito.

Lou Salomé enquanto jovem estudante em Zurique, Suíça, após emigrar de sua Rússia natal em aventura de busca de conhecimento

O espírito livre, como Nietzsche explora em Humano Demasiado Humano, é alguém que precisou emancipar-se da servil obediência a dogmas inculcados e preconceitos recebidos, inclusive e sobretudo as noções religiosas com que somos inundados desde a primeira infância. Em seu livro sobre Nietzsche, dividido em três grandes partes, Lou dedica a segunda parte às metamorfoses de Nietzsche, utilizando como epígrafe o aforismo #573 de Aurora: “a serpente que não pode mudar de pele perece. O mesmo se dá com os espíritos que são impedidos de mudar de opinião; eles cessam de ser espíritos.” As muitas metamorfoses de Nietzsche, segundo Lou, são inauguradas por sua “ruptura com a fé cristã, ponto de partida para todas as suas transformações ulteriores”; ela destaca que, ainda que “os motivos que incitam a maior parte dos indivíduos a se afastar da religião sejam frequentemente de ordem intelectual, esta emancipação não se efetua sem lutas dolorosas” (p. 77).

Um dos maiores méritos da obra de Lou consiste em pintar um retrato complexo e nuançado da personalidade de Nietzsche, que ela considera um sujeito definitivamente marcado por suas difíceis relações com o abandono da fé. Um dos grandes temas que atravessaria toda a obra Nietzschiana é o modo de realizar a emancipação interior que conduz o apóstata a metamorfosear-se: de servil e obediente beato, temente aos deuses, apegado às sacras ilusões, ele cresce e matura-se rumo a um grau sempre expandido de ceticismo, de desconfiança, de suspeita, de capacidade de enxergar o mundo por múltiplas perspectivas.

O pensamento de Nietzsche é anti-dogmático por excelência. Estabelecer-se na crença de que a verdade já está descoberta e é possuída, cessando assim de questionar as respostas dadas, desistindo de inquirir se as perguntas não estavam mal colocadas ou eram absurdas, procurar o descanso do pensamento na cômoda cama das convicções imutáveis: eis o que assassina o livre-pensamento e faz do filósofo um dogmático papagaio de certezas imutáveis. Segundo o retrato que Lou-Andreas Salomé pinta de seu metamórfico e desassossegado amigo, o filósofo tinha uma personalidade radicalmente anti-dogmática:

“A mudança de opinião, a obrigação de se transformar, encontram-se tão profundamente ancorados no coração da filosofia nietzschiana e são eminentemente característicos de seus métodos de investigação. (…) Sua estranha necessidade de metamorfose, no domínio do conhecimento filosófico, provinha do desejo insaciável de renovar sem cessar suas emoções intelectuais. É por isso que a clareza perfeita não era, a seus olhos, senão um sintoma de saciedade e extenuação. (…) Para Nietzsche, uma solução encontrada não era jamais um fim, mas ao contrário o sinal de uma mudança de perspectiva que o obrigava a contemplar o problema sob um ângulo novo, a fim de lhe encontrar uma nova solução. (…) Nietzsche não admitia que um problema, qualquer que ele fosse, comportasse uma solução definitiva.” (ANDREAS-SALOMÉ, L. Nietzsche À Travers Ses Ouvres. Pgs. 49 e 84.)

Tradução nossa para o trecho: “Le changement d’opinion, l’obligation de se transformer se trouvent ainsi profondément ancrés au coeur de la philosophie nietzschéenne, et sont éminemment caractéristiques de ses méthodes d’investigation. (…) Son étrange besoin de métamorphose, dans le domaine de la connaissance philosophique, provenait du désir insatiable de renouveler sans cesse ses émotions intellectuelles. C’est pourquoi la clarté parfaite n’était, à ses yeux, qu’un symptôme de satiété et d’exténuation. (…) Pour Nietzsche, une solution trouvée n’était jamais une fin, mais au contraire le signal d’un changement de point de vue qui l’obligeait à envisager le problème sous un angle nouveau, afin de lui apporter une solution nouvelle. (…) Nietzsche n’admettait pas qu’un problème quel qu’il fût comportât une solution définitive.”

4. NIETZSCHE & LOU: ENCANTAMENTO, ESPERANÇA E DESILUSÃO

Tentar explorar o vínculo entre Nietzsche e Lou leva-nos a um labirinto de representações, de perspectivas, de boatos e fofocas, em que por vezes é difícil separar o que é fato do que é ficção. No cinema, por exemplo, o filme de Liliana Cavani, lançado em 1977, propiciou uma narrativa da relação em que Nietzsche é descrito como um sujeito lascivo, impetuoso, mostrado em arroubos passionais por Lou que chegam, em certas cenas, a beirar a agressão sexual (lembrem, por exemplo, da cena em que Fritz, de maneira forçada e sem consentimento, tenta tocar as partes íntimas de Lou). O filme também retrata Nietzsche contando a Lou, em um daqueles passeios idílicos que faziam pela Natureza, sobre seu passado erótico: relembra o dia em que visitou um bordel, conta os detalhes picantes de sua transa, e depois revela ainda que foi nesta ocasião que contraiu a sífilis. Fact or fiction?

Impossível bater o martelo e julgar em definitivo se o filósofo de fato vivenciou o episódio do puteiro e ali pegou uma DST, ou se isso não passa de intriga da oposição. Tendo mais a esta última opção, pois vários estudos biográficos revelam que a doença de Nietzsche tinha raízes hereditárias e genéticas, já que o seu pai também havia sofrido com sintomas semelhantes e havia tido uma morte precoce. Muitos biógrafos vinculam as enxaquecas e problemas de visão de Nietzsche com uma condição derivada “do sangue”, relatam que o pequeno Fritz, além de perder o pai na primeira infância, sempre temeu que morreria mais cedo do que o comum dos mortais, como ocorrera com seu pai. Além disso, biógrafos relatam que Nietzsche, enfermeiro voluntário durante a Guerra Franco-Prussiana de 1870, teria sido ferido em campo de batalha e que seu estado de saúde lastimável, daí em então, decorre das sequelas deste episódio bélico.

O filme da Liliana, ao apostar no retrato de um Nietzsche tarado e ao dar expressão audiovisual à suposta escapada de Nietzsche no bordel, parece referendar boatos e fofocas que muito provavelmente foram espalhados pelos detratores do filósofo, interessados em queimar seu filme e fazer a posteridade acreditar que aquele que matou Deus acabou chafurdando na lama dos prazeres carnais perversos e pagando o preço por isso. Na história da filosofia, temos muitos casos de campanhas de calúnia e difamação semelhantes, como aquela movida primeiro pelos platônicos e depois pelos primeiros cristãos contra a memória de Epicuro: de sábio frugal em convivência bem-aventurada com os amigos no Jardim da Sabedoria, Epicuro foi caluniado como um beberrão, um lascivo, entregue a orgias e banquetes nababescos, a ponto de vomitar os excessos de comida e bebida, só para continuar a orgia depois do gorfo. Nietzsche no puteiro, Epicuro na orgia: duas imagens que, suspeito, são intrigas falaciosas dos adversários destes filósofos.

Vejamos, por exemplo, o que diz uma das biografias escritas sobre o filósofo, a de Rüdiger Safranski, sobre as relações entre Nietzsche e Lou que o filme de Liliana descreve com ênfase excessiva no aspecto erótico. Dificilmente existiu entre Nietzsche e Lou uma relação amorosa propriamente carnal, sensorial, com beijos, lambidas, penetrações – o contato físico entre os dois, ao que tudo indica, foi mínimo; o intercâmbio intelectual, os papos-cabeça, é que foram, por um breve período, bastante intenso. Nem mesmo podemos ter certeza se rolou um beijinho na boca ou não – em Minha Vida, Lou diz que não se lembra… Nada nos relatos biográficos sobre Nietzsche nos permite pensar no filósofo como alguém que tivesse uma vida sexual ativa; muito pelo contrário, ele foi um grande solitário e celibatário, morreu sem filhos e não se conhecem affairs românticos para além do caso com Lou.

É seguro dizer que Nietzsche era um sujeito que não tinha muito traquejo no xaveco, que não tinha grande experiência na arte de cortejar uma mulher, alguém nas antípodas do Don Juan; seus pedidos de casamento dirigidos a Lou são estranhíssimos e hoje nos parecem claramente fadados ao fracasso, primeiro pois ele é muito afobado e propõe casório poucos dias depois do primeiro encontro, sem propiciar um tempo maior de convívio e conhecimento mútuo, mas além disso, ao invés de fazer a proposta pessoalmente, pede a Paul Rée que faça por ele, o que é bastante absurdo, considerando que Rée, também encantando por Lou, era parte interessada e rival direto no posto de possível marido da fascinante russa.



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Além disso, Nietzsche tinha visões bastante estranhas sobre o casamento, talvez tingidas de uma certa misoginia, de uma certa visão patriarcal sobre a posição da mulher na sociedade: “quer uma companheira que cuide de sua vida doméstica, como a irmã fez por muito tempo, seja sua secretária e talvez até, diferentemente da irmã, seja uma parceira intelectual de conversa”, escreve o biógrafo Safranski. Além disso, revela que sua vontade de casar-se não é lá tão intensa e que ele só concordaria com isso caso pudesse, desde o início, colocar um prazo de validade no casamento: só poderia aguentar um matrimônio de, no máximo, 2 anos. Para minorar ainda mais as chances do casório dar certo, há a diferença de idade: quando se conhecem, Lou é uma jovem mulher de 20 e poucos anos, Nietzsche já passou dos 35 e encontra-se aposentado por invalidez de seu posto como professor na Basiléia.

Não havia modo de Lou Salomé, mulher de espírito independente, defensora convicta de sua autonomia, em ruptura com todos os dogmas a respeito da posição da mulher na sociedade, que por muito tempo rejeitou o matrimônio tradicional, pudesse sentir-se atraída pelo modelo de esposa doméstica-secretária que Nietzsche trazia em si. Não ia dar liga. Em Biografia de uma Tragédia, Safranski pesquisou a fundo o vínculo Nietzsche e Lou e descobriu fortes indícios de que aquilo que o filósofo procurava de fato em Lou era uma discípula e herdeira. Em uma carta a Malwida, em 13 de Julho de 1882, manifesta o desejo de ter nela uma discípula dizendo: ‘se minha vida não for muita longa, minha herdeira e continuadora do meu pensamento’. Em uma carta endereçada a Lou, em 27 de junho de 1882, Nietzsche diz explicitamente: “Desejei muito poder ser seu mestre. Em última instância, para dizer a verdade toda: agora procuro pessoas que possam ser meus herdeiros; trago comigo algumas coisas que não se podem ler em meus livros – e para isso procuro a terra mais bela e fecunda.” (Safranski, p. 231)

A imagem de Lou como “terra bela e fecunda” onde Nietzsche pudesse depositar suas sementes talvez possa ser lida por um psicanalista como símbolo de uma libido arrebatada que faz referências cifradas à uma fecundação mais carnal do que intelectual. Mas nada na relação dos dois sugere de modo explícito que Nietzsche desejasse uma mulher com quem ter filhos: para o filósofo, os únicos filhos eram seus pensamentos e livros, e em sua solidão extremada ele buscava alguém que pudesse dar sequência às suas doutrinas, ser depositária e continuadora de seu legado, tendo encontrado em Lou e todo seu precoce brilhantismo intelectual a candidata ideal. A esperança que Nietzsche nutre não parece ser propriamente erótica, mas envolve a necessidade Nietzsche de, como fará seu herói Zaratustra em um livro que está prestes a começar a ser escrito, compartilhar o mel que a abelha laboriosa acumulou e que agora está transbordando de seus limites.

Ora, Lou Salomé, mesmo em tão tenra idade, não é uma moça de se contentar em orbitar ao redor dos homens, ela é muito mais um sol que brilha com luz própria. Prestamos um desserviço à vida e à obra de Lou Salomé quando a descrevemos como uma mulher que se encantou com grandes homens – Nietzsche, Rilke, Freud – e os orbitou, quando na verdade o processo de orbitação, ao menos no caso de Nietzsche e Rilke, é muito mais intenso no pólo dos homens, que chegam a evocar a imagem das mariposas da canção de Adoniran Barbosa, Lou Salomé servindo como a “lâmpida” que os põe fascinados e girando ao seu redor. Hoje é fácil perceber que Lou, com toda a sua independência de espírito, com todo o ímpeto de livre-pensadora que a animava, jamais seria apenas uma secretária e uma obediente discípula do professor Nietzsche. O que não significa que ela não tenha sim aprendido um bocado com o filósofo, o que ela revela em minúcias nas quase 300 páginas que lhe dedica na obra de 1984.

Lou Salomé e Nietzsche nunca foram propriamente um casal. O retrato minucioso do caráter psicológico de Nietzsche que Lou nos forneceu, e que constitui um dos méritos imorredouros de seu livro, fornece-nos as chaves para compreender o porquê deste fracasso. Havia em Nietzsche, diz Lou, muita solidão e muito sofrimento, uma personalidade arredia ao contato humano, um jeito-de-ser recluso e anti-social. Lou descreve suas primeiras impressões de Nietzsche destacando a estranheza de seu olhar, que parecia voltado para dentro e não para fora, como se observasse seu labirinto interior muito mais do que os fenômenos sensíveis. “Em alguma profundeza oculta de nossa natureza, escreve Lou, estamos inteiramente distanciados um do outro. Na sua natureza, como numa velha fortaleza, Nietzsche tem muitos calabouços escuros e porões escondidos que não são percebidos num encontro superficial, mas que podem conter o mais pessoal dele.” (Safranski, 233)

 

Certamente não são apenas alguns traços de personalidade de Nietzsche que geram repulsa em Lou e fazem-na se afastar do filósofo – após as duas recusas do pedido de casamento, Lou se mudará para Berlim, onde dividirá o lar com Paul Rée, enquanto Fritz, re-entregue à solidão, talvez mais cruel do que nunca pelo sopro cálido de amor possível que vivenciou, embarca na embriaguez lírica que dará à luz a primeira parte de Assim Falou Zaratustra. Para compreender a ruptura entre Lou e Nietzsche, uma peça-chave é a irmã do filósofo, Elizabeth Forster Nietzsche, uma notória antisemita, casada com um sujeito que fundou uma colônia de arianos no Paraguai. Elizabeth sempre esteve em pé de guerra contra Lou Salomé e por décadas moveu uma campanha de difamação contra ela. Considerava Lou como uma espécie de femme fatale que punha em risco seu pobre irmãozinho Nietzsche.

Hoje sabemos que Elizabeth é a responsável principal pela perversão deliberada da obra não publicada do filósofo: tendo seus próprios interesses e filiações ideológicas em vista, ela editou os escritos nietzschianos que este não deu aval para publicação e lançou postumamente o problemático livro Vontade de Potência, tentando vender a ideia de que Nietzsche era um precursor da ideologia nazista. Em 1933, no lançamento dos Arquivos Nietzsche, Elizabeth fez uma premiére que contou com ninguém menos do que o chanceler Adolf Hitler.

Tudo indica que Elizabeth, apegada à sua beatice e à doutrinas pangermânicas racistas, perverteu a obra do irmão e prestou assim um desserviço à sua memória, tornando-o na avaliação apressada de alguns uma espécie de precursor do pangermanismo antisemita, racista e genocida, uma visão que foi adotada inclusive por intelectuais de importância na esquerda marxista (penso no Lukács de O Assalto à Razão). Elizabeth, que por muito tempo propagou a noção de que Lou Salomé era uma serpente venenosa e fez todos os esforços para convencer o irmão disso, é uma espécie de sabotadora da relação. Tempos depois, rompendo relações com a irmã e com a mãe, Nietzsche dirá: “Confesso que minha objeção mais profunda ao Eterno Retorno, meu pensamento propriamente abismal, é sempre minha mãe e minha irmã.” (Astor, p. 88) Ele não suportaria viver infinitas vezes o suplício das relações familiares tal qual conheceu.

O melhor antídoto contra esta visão deturpada do filósofo é o estudo de suas posturas e convicções: Nietzsche estava muito longe de ser um patriota, um nacionalista, não tem nenhum apego sentimental pela Alemanha, jamais subscreveria a qualquer Deustchland Uber Allez, aliás viveu uma existência nômade, peregrina, vivendo na Suíça, na França, na Itália, em um espírito de cosmopolitismo que evoca o exemplo de Diógenes de Sínope, o inventor do conceito e do modo-de-vida cosmopolita. Além disso, Nietzsche abominava o antisemitismo, como atestado por inúmeros escritos e cartas, e talvez esteja aí uma das razões para sua ruptura com Wagner. Em seu magistral estudo O Bufão dos Deuses, a professora Maria Cristina Franco Ferraz produziu uma obra perfeita para esclarecer a situação de Nietzsche em sua época e desfazer todos os maus-entendidos, iluminando também a relação do filósofo com Lou e Rée.

A ruptura de Lou com Nietzsche, causada também pela impossibilidade de uma convivência civilizada entre Lou e Elizabeth, será uma profunda ferida para o filósofo. Ele havia alimentado sublimes esperanças de que tinha encontrado enfim a discípula perfeita. Sua amarga decepção e seu sentimento de abandono, quando Lou seguir seu caminho sem ele, lançarão o filósofo em um estado de espírito lastimável, doloroso, atormentado. Diz Safranski:

Safranski

“Ele lhe revelou sua existência espiritual como a ninguém antes disso. Sentia que havia entre eles um entendimento profundo e único. Ela tocara o centro de seus talentos e intenções. Ele se sentia quase inteiramente compreendido por ela: ‘Algumas grandes perspectivas do horizonte espiritual e ético são minha mais poderosa fonte de vida, e sinto-me tão contente porque exatamente nesse chão nossa amizade tem suas raízes e esperanças’ (18 de Junho de 1882).

(…) Que ela o tenha compreendido tão bem e depois prosseguisse seu caminho com sua incontrolável curiosidade pelas pessoas, em vez de permanecer sob o fascínio dele, que o tivesse largado de novo, como a um mero estágio de sua formação, deixando-o para trás – isso é uma ideia insuportável para Nietzsche. Ele não mostrou a soberana serenidade de um Zaratustra, que estimulava seus discípulos que o deixassem depois de o terem encontrado. Exatamente isso, que Lou se libertasse dele seguindo seus caminhos, foi o que o feriu profundamente. Sentiu-se usado, desperdiçado. Uma discípula lhe dá a entender que o compreende, e depois vai procurar outros mestres. Nietzsche sofreu isso como uma ofensa inaudita. Agora, no inverno de 82/83, ele se sente lançado de volta a si mesmo como nunca antes. Em dezembro de 82, escreve a Overbeck: Agora estou inteiramente só diante da minha tarefa. Preciso de um baluarte contra o mais insuportável de tudo.” (SAFRANSKI, p. 235)

Neste contexto emocional, Nietzsche inicia a escritura de Assim Falou Zaratustra, uma das obras-primas da filosofia e da literatura nos últimos séculos, um livro que nasce sob o impacto do contato e da ruptura com Lou Salomé. Em Zaratustra, Nietzsche projeta muitas de suas próprias lutas e angústias, sua busca por ser compreendido, sua peregrinação em busca de espíritos livres que possam compreendê-lo. As noções de “fidelidade à terra”, de “sagrado sim” à vida, eram temas constantes de conversa com Lou Salomé e não é absurdo supor que ela seja uma das musas inspiradoras da noção de Übermensch. Em uma de suas cartas ao pastor Gillot, Lou diz:

“Não posso viver obedecendo a modelos, nem jamais poderia representar, para quem quer que seja, um modelo. Mas é inteiramente certo que construirei minha vida segundo aquilo que sou, aconteça o que acontecer. Fazendo isso, não defendo nenhum princípio, mas sim alguma coisa bem mais maravilhosa, alguma coisa que está em nós, que arde no fogo da vida, que exulta e quer brotar… Quero permanecer sempre em estado de transição.” (Astor, p. 63)

Lou Salomé permanece uma peça-chave para a compreensão do quebra-cabeça nietzschiano. É a responsável por um dos livros mais brilhantes sobre o filósofo, Nietzsche Através De Suas Obras, publicado ao fim do século 19, em 1894, quando Nietzsche ainda vivia, embora em estado de semi-paralisia cerebral e já tendo encerrado sua vida criativa. Muitos dos trechos da obra foram lidos por Lou para Nietzsche e aprovados pelo próprio. Trata-se de uma obra tremendamente reveladora, que honra toda a complexidade do pensamento do filósofo, além de oferecer uma pintura psicológica complexa e nuançada de sua personalidade, de seu caráter, de seu jeito-de-ser. Lou lança uma luz sobre

“o sentido profundo de sua obra, de seus sofrimentos e de sua autobeatificação. Toda sua evolução resulta, em certa medida, do fato de muito cedo ele ter perdido a fé; ela tem sua origem na emoção causada pela morte de Deus, emoção inaudita cujos últimos rugidos repercutem pela última obra, a que Nietzsche redigiu no limiar da loucura, a 4a parte do Zaratustra. A possibilidade de encontrar um sucedâneo para o deus morto através das formas mais diversas da divinização de si: esta é a história de seu espírito, de sua obra, de sua doença. É a história da sequela do instinto religioso no pensador, instinto que continua muito poderoso, mesmo depois da queda do deus ao qual ele se dirigia.” (LOU SALOMÉ, apud Astor, p. 93)

O problema crucial da vida e da obra de Nietzsche, sustenta Salomé, é a superação da crença em Deus e do universo de valores conectado à fé. A morte de Deus, vivida como aventura existencial demandando muito heroísmo da parte do espírito livre transvalorador, envolve épicas batalhas contra o niilismo, o desânimo, a apatia, mas envolve também o perigo no qual Nietzsche soçobrou: o da auto-beatificação. Após o colapso da instância de valor transcendente, aquele que não quer soçobrar no niilismo precisa encontrar novos valores. Nietzsche mostra o quanto a maturação intelectual e a aventura da filosofia dependem da emancipação humana em relação às quimeras religiosas, mas seu destino também nos alerta sobre os perigos do individualismo excessivo, da postura aristocrática, do pathos da distância que pode atingir extremos deveras patológicos.

Para Lou Salomé, Nietzsche – e posteriormente Rilke – permanecerão como existências humanas singulares, irrepetíveis, que mostram a capacidade rara de utilizar todo o sofrimento da vida como combustível para o ímpeto criador. Em outro poema de Lou que Nietzsche adorava, “À Dor”, ela faz um hino ao espírito capaz de não naufragar com suas dores: “o combate engrandece os maiores” e o “sofrimento é o alicerce para a grandeza de espírito” (Astor, p. 95). Aí está a raiz da profunda empatia e amor que Nietzsche pôde sentir por Lou Salomé: ela expressava algo que sua obra também visa expressar, ou seja, que o sofrimento não é um argumento contra a vida, que deve ser acolhido também através daquele sagrado sim, fundamento da visão trágico-dionisíaca de mundo. Trata-se de um esforço heróico para amar a vida com tudo o que ela inclui de doloroso, de problemático, de insolúvel, de contraditório. Após a morte de Deus, sabedoria é aprender a amar a vida como ela é, sem exclusão de seus aspectos aflitivos e intragáveis.

“Esta paixão pelo sim é sem dúvida o ponto comum mais marcante entre Lou e Nietzsche, que será fundamental o suficiente para perdurar para além da incompreensão e da decepção. É a constância dessa afinidade que permite a Nietzsche, em Ecce Homo, celebrar a grandeza de sua antiga amiga; é ela também que permite a Lou, 10 anos após a ruptura entre eles, escrever o primeiro estudo sistemático sobre a filosofia nietzschiana… Esses dois indivíduos sempre atribuíram mais importância à vida em sua totalidade do que às pessoas em particular… cada indivíduo nunca passa de uma ‘parcela de destino’, e é por isso que os fracassos pessoais sempre são considerados, no fim das contas, num gesto mais amplo de gratidão para com a vida como um todo.” (Astor, p. 97)

A gratidão pela vida necessariamente inclui não só a aceitação resignada do sofrimento, mas uma espécie de acolhimento entusiástico, que não se confunde com o masoquismo, mas é sabedoria trágica que reconhece que a dor não é um argumento contra a existência, muito pelo contrário: na dor podemos amadurecer e nos fortalecer, na dor podemos criar e transvalorar. Em suma: a dor vale a pena ser vivida pois “engrandece os maiores” e é “o alicerce da grandeza de espírito”, como Lou Salomé expressa muito bem em seu poema:

À Dor

Quem pode fugir-te, quando o agarraste,
Se pousas sobre ele teu sombrio olhar?
Não fugirei se me pegares,
– Nunca acreditarei que apenas destruas.

Eu sei, deves atravessar cada vida
E nada permanece intocado por ti sobre a terra,
A vida sem ti – seria bela!
E no entanto – vales ser vivido.

Certo, não és um fantasma da noite,
Vens lembrar ao espírito a sua força,
É o combate que engrandece os maiores.
– O combate pelo objetivo, por impraticáveis caminhos.

E se só podes me dar em troca da felicidade e do prazer
Uma única coisa, ó Dor: a verdadeira grandeza,
Então vem, e lutemos, peito contra peito,
Então vem, haja morte ou vida.
Então mergulha no fundo do coração,
E vasculha no mais íntimo da vida,
Leva o sonho da ilusão e da liberdade,
Leva o que não vale um esforço infinito.

Não continuas a última vitória do homem,
Mesmo que ele ofereça seu peito desnudo a teus golpes,
Mesmo que ele se desfaça na morte
– És o alicerce para a grandeza de espírito.

Lou Salomé
“Combate por Deus” (1885)
Via Claudio Ulpiano

Em carta a seu amigo Peter Gast, Nietzsche dirá: “O poema ‘À Dor’ não é meu. Ele faz parte das coisas que têm um poder absoluto sobre mim; nunca consegui lê-lo sem derramar algumas lágrimas: ele ecoa como uma voz que nunca deixei de aguardar desde minha infância.” Os ecos deste poema aparecem em frases célebres de Nietzsche e de seu Zaratustra, como “o que não me mata me fortalece” e nas celebrações que faz do artista que sofre em suas dores de parto e que, de seu caos interior, dá à luz uma estrela bailarina.

Em Lou Salomé expressa-se uma sabedoria que comoveu profundamente a Nietzsche, que pôde encontrar inúmeras afinidades entre sua própria visão de mundo, sua afirmação da existência através do amor fati dionisíaco do espírito libertado, como fica claro no seguinte trecho que Lou escreve em Nietzsche Através de Suas Obras (1894):

“Apanhados de maneira inextricável na rede da vida, acorrentados sem esperança a seu círculo fatal, precisamos aprender a dizer ‘sim’ a todas as formas que assume, para podermos suportá-la: somente a alegria e o vigor com os quais proclamamos esse sim nos reconciliam com a vida, porque nos identificam com ela. Sentimo-nos, então, um elemento criador de seu ser; melhor: tornamo-nos seu próprio ser, com toda sua superabundância de plenitude e forças. O amor sem restrições pela vida, essa é a lei moral única e sagrada do novo legislador.” (LOU SALOMÉ, apud Astor, p. 183)



SOBRE O AUTOREduardo Carli de Moraes atua como professor de filosofia do Instituto Federal de Goiás (IFG); tem mestrado em Ética e Filosofia Política pela UFG – Universidade Federal de Goiás, além graduações em filosofia pela USP – Universidade de São Paulo e comunicação social pela UNESP – Universidade Estadual Paulista. Este texto serviu de base para comunicação que apresentada no II Colóquio Internacional Nietzsche no Cerrado, ocorrido na UFG , entre 04 e 06 de Setembro de 2017 (programação abaixo).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Nietzsche À Travers Ses Ouevres. Paris: Grasset, 1992.
———————————-. Minha Vida. São Paulo: Brasiliense, 1985.

ASTOR, Dorian. Lou Andreas-Salomé. Porto Alegre: L&PM, 2015.

FERRAZ, Maria Cristina Franco. O Bufão dos Deuses. Relume Dumará.

FEUERBACH, Ludwig.  Preleções sobre a essência da religião. Campinas, SP: Papirus, 1989.

MINOIS, George. A História do Ateísmo. São Paulo, Unesp, 2014.

NIETZSCHE. Humano Demasiado Humano. Companhia das Letras de Bolso, 2005.
————————. Aurora.
————————. Assim Falava Zaratustra.
————————. O Nascimento da Tragédia.
————————. Ecce Homo.
———————–. A Gaia Ciência.
———————–. O Viajante e sua Sombra.

OLIVEIRA, Marcos Silva. Autópsia do Sagrado. Salto, SP: Schoba, 2012.

PETERS, H. F.Lou – Minha Irmã, Minha Esposa. RJ: Zahar, 1974.

SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche – Biografia de uma Tragédia. Trad. Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial, 2011.

REFERÊNCIAS FÍLMICAS

Além do Bem e do Mal, de Liliana Cavani (1977)
Quando Nietzsche Chorou, da obra de Yalom
Human, All Too Human: Nietzsche, Sartre, Heidegger, uma minisérie da BBC

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Minha culpa, meu pecado
Meu sonho desesperado
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Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu degredo
Pão seco de cada dia
Tropical melancolia
Negra solidão

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo

Aqui, o Terceiro Mundo
Pede a bênção e vai dormir
Entre cascatas, palmeiras
Araçás e bananeiras
Ao canto da juriti

Aqui, meu pânico e glória
Aqui, meu laço e cadeia
Conheço bem minha história
Começa na lua cheia
E termina antes do fim

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo

Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Da fome, do medo e muito
Principalmente da morte
Olelê, lalá

A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Oh, yes, nós temos banana
Até pra dar e vender
Olelê, lalá

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo…”

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Teatro de Rua: Brasil e Argentina nos Anos 80 – uma Paixão no Asfalto 
André Carreira



Na Estrada – o Cinema de Walter Salles 
Marcos Strecker



Novos Contos da Montanha 
Miguel Torga (1907 – 1995)



Nascer e Outras Dificuldades 
F. González-crussi


Oswald de Andrade – Biografia 

Maria Augusta Fonseca



Lula do Brasil – a História Real, do Nordeste ao Planalto 
Richard Bourne



O Núcleo e a Periferia de Machado de Assis 
Fábio Lucas



A Barreira e o Nível – Retrato da Burguesia Francesa
Edmond Goblot (1858 – 1935)