“Lula, amigo tão querido, você é nossa rocha contra a tirania. E nós, seus amigos, não vamos esmorecer.” – Marilena Chauí

Querido amigo Lula,

Eu gostaria de lhe enviar palavras de conforto, esperança e luta. Por isso, vou contar a você sobre um jovem de 17 anos, chamado La Boétie, que se ergueu contra a tirania existente na França, governada por um rei despótico.

Esse jovem perguntava: como explicar que milhares de pessoas possam aceitar que um só mande em todos? E respondia: porque cada um serve ao tirano esperando ser servido pelos demais, cada um é um pequeno tirano que serve os de cima para ser servido pelos de baixo. Por isso, dizia esse jovem, o tirano tem mil olhos e mil ouvidos para nos espionar, mil mãos para nos esganar, mil pés para nos esmagar porque somos nós, tiranetes, que lhe damos nossas vidas para que ele tenha poder para nos oprimir. Como derrubar um tirano? Respondeu La Boétie: não lhe dando o que quer de nós, não lhe dando nossos olhos e ouvidos, nossas mãos e nossos pés, nossos filhos, nossa honra, nosso corpo e nossa alma, nossa vida. Somente o desejo de liberdade, igualdade e justiça pode derrubar a tirania. Recusar servir é recusar oprimir.

Quem está nos palácios ao lado do tirano e o rodeia com servilismo? Os bandidos. Quando bandidos se juntam, há conspiração e não companhia, e, temendo uns aos outros, não são amigos e sim comparsas e cúmplices. O que se opõe à bandidagem? Dizia o jovem La Boétie: a amizade. A amizade é coisa santa porque nasce do que há de melhor em nós, pois nela nos reconhecemos livres e iguais no bem querer e no bem fazer, partilhando e compartilhando nossas vidas, desejando aos outros o que desejamos para nós mesmos na ajuda mútua e desinteressada.

Lula, amigo tão querido, você é nossa rocha contra a tirania. E nós, seus amigos, não vamos esmorecer. Estamos na luta por você e pela felicidade do Brasil.

Abraço carinhoso da

Marilena Chaui

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Espinosa: Uma Subversão Filosófica – Por Marilena Chauí

I. Maledictus

A 27 de julho de 1656, a assembleia dos anciãos que dirige a comunidade judaica de Amsterdã promulga um herem (excomunhão, em hebraico), excluindo e banindo Espinosa (1632 – 1677), que, nessa época, tem 24 anos.

Em 1670, aos 37 anos, Espinosa publica o Tratado Teológico-Político, impresso sem o nome do autor. A obra se destina à defesa da liberdade de pensamento e de expressão. A 19 de julho de 1674, trazendo o brasão e as armas de Guilherme de Orange III, os Estados Gerais da Holanda, sob orientação e exigência do Sínodo calvinista, promulgam um édito em que declaram o livro pernicioso, venenoso e abominável para a verdadeira religião e para a paz da república, proibindo sua impressão e divulgação.

Em 1678, um ano após a morte de Espinosa, um novo édito do governo da Holanda proíbe a divulgação do conjunto de sua obra, publicada postumamente por seus amigos.

Afinal, o que dissera o jovem Espinosa – em 1656 –, o que escrevera o filósofo – em 1670 – e o que deixara escrito – em 1678 –, para que fosse expulso da comunidade judaica e condenado pelas autoridades cristãs? Por que alguns leitores, seus contemporâneos, afirmam estar diante de “nova encarnação de Satã” e que seu nome, Benedictus em latim, deveria ser mudado para Maledictus?

A filosofia espinosana é a demolição do edifício filosófico-político erguido sobre o fundamento da transcendência de Deus, da Natureza e da Razão, voltando-se também contra o voluntarismo finalista que sustenta o imaginário da contingência nas ações divinas, naturais e humanas.

A filosofia de Espinosa demonstra que a imagem de Deus, como intelecto e vontade livre, e a do homem, como animal racional e dotado de livre-arbítrio, agindo segundo fins, são imagens nascidas do desconhecimento das verdadeiras causas e ações de todas as coisas. Essas noções formam um sistema de crenças e de preconceitos gerado pelo medo e pela esperança, sentimentos que dão origem à superstição, alimentando-a com a religião e conservando-a com a teologia, de um lado, e o moralismo normativo dos filósofos, de outro.

II. Deus, ou seja, a Natureza: a filosofia da imanência

A tradição teológica e metafísica ergueu-se sobre uma imagem de Deus, forjando a divindade como pessoa transcendente (isso é, separada do mundo), dotada de vontade onipotente e entendimento onisciente. Criadora de todas as coisas a partir do nada (confundindo Deus e a ação dos artífices e artesãos), legisladora e monarca do universo, que pode – à maneira de um príncipe que governa segundo seu arbítrio e capricho – suspender as leis naturais por atos extraordinários de sua vontade (os milagres).

Essa imagem faz de Deus um super-homem, que cria e governa todos os seres de acordo com os desígnios ocultos de Sua vontade, a qual opera segundo fins inalcançáveis por nosso entendimento. Incompreensível, Deus se apresenta com qualidades humanas: bom, justo, misericordioso, colérico, amoroso, vingador, que pune ou recompensa o homem, conforme este transgrida ou obedeça aos decretos divinos, pois é dotado de livre-arbítrio ou de livre vontade para escolher entre o bem e o mal.

Identificando liberdade e escolha voluntária e imaginando os objetos da escolha como contingentes (isto é, como podendo ser ou não ser, serem estes ou outros, serem como são ou serem de outra maneira), a tradição teológico-metafísica afirma que o mundo existe simplesmente porque Deus assim o quis ou porque Sua vontade assim decidiu e escolheu, e poderia não existir ou ser diferente do que é, se Deus assim houvesse escolhido.

Se o mundo é contingente, porque fruto de uma escolha contingente de Deus, então as leis da Natureza e as verdades (como as da matemática) são, em si mesmas, contingentes, só se tornando necessárias por um decreto de Deus que as conserva imutáveis. Assim, a necessidade (isso é, o que só pode ser exatamente tal como é, sendo impossível que seja diferente do que é) identifica-se com o ato divino de decretar leis, ou seja, a necessidade nada mais é senão a autoridade de Deus.

Compreende-se, então, porque tradicionalmente liberdade e necessidade foram consideradas opostas e contrárias, pois a primeira é imaginada como escolha contingente de alternativas também contingentes e a segunda, como decreto de uma autoridade absoluta.

William Blake, Ilustrações para “Paraíso Perdido” de Milton

Donde o mito do pecado original, quando o primeiro homem teria usado a liberdade (entendida como o poder de escolha) para desobedecer aos mandamentos ou leis de Deus. Com esse mito, ergue-se a imagem da liberdade humana como um poder para escolher o mal, porta aberta para nossa perdição. A um Deus autoritário corresponde um homem decaído e desobediente, por culpa da liberdade. Como, indaga Espinosa, foi possível tanta ignorância e superstição para transformar o que temos de mais precioso – a liberdade – em culpa, perversidade e perigo?

Essa imagem de Deus, demonstra Espinosa em sua obra magna, a Ética, não é senão a projeção antropomórfica de uma imagem do homem, confundindo propriedades humanas imaginárias com a essência divina. Porque os homens se imaginam dotados de vontade livre ou livre-arbítrio (imaginando que ser livre é poder escolher entre coisas ou situações opostas e agir segundo fins escolhidos pela vontade). Porque imaginam que o verdadeiro poder é aquele que se separa dos que a ele estão submetidos, dominando-os do alto e de fora. Porque imaginam a Natureza agindo segundo fins e para servi-los, os homens imaginam Deus como arquiteto que constrói o mundo e como príncipe que o governa. Se, portanto, quisermos alcançar o conhecimento verdadeiro da essência e da potência divinas, precisamos ultrapassar esse imaginário e, ultrapassando a imagem, chegar à idéia de Deus.

Espinosa parte de um conceito muito preciso, o de substância, isso é, de um ser que existe em si e por si mesmo, que pode ser concebido em si e por si mesmo e sem o qual nada existe nem pode ser concebido. Toda substância é substância por ser causa de si mesma (causa de sua essência, de sua existência e da inteligibilidade de ambas) e, ao causar-se a si mesma, causa a existência e a essência de todos os seres do universo. A substância é, pois, o absoluto ou uma realidade absolutamente complexa, constituída de infinitas qualidades infinitas, cada uma das quais é uma potência produtora ou agente que engendra por si mesma e de si mesma as múltiplas ordens de realidade que formam o universo. A substância é a potência causal ou produtiva absolutamente infinita de auto-produção e de produção de todas as coisas. É o que chamamos de Deus.

Ao causar-se a si mesmo, fazendo existir sua própria essência, Deus faz existir todas coisas singulares que O exprimem, porque são efeitos de Sua potência infinita. Em outras palavras, a potência produtora infinita é imanente aos seres produzidos, a causa é imanente ao efeito, porque se exprime nele e ele a exprime. Deus não é uma causa transcendente, separada dos seres singulares, mas é imanente a eles, pois eles são modos ou expressões do ser absoluto. À substância e suas infinitas qualidades infinitas, enquanto atividade infinita que produz a totalidade do real, Espinosa dá o nome de Natureza Naturante. O conjunto de todos os modos produzidos pela substância Espinosa designa com o nome de Natureza Naturada. A totalidade constituída pela Natureza Naturante e pela Natureza Naturada é Deus. Donde a célebre expressão espinosana: Deus sive Natura. Deus, ou seja, a Natureza.

Das infinitas qualidades ou potências produtivas da substância, conhecemos duas: o Pensamento e a Extensão. A atividade da potência do Pensamento produz idéias; a da Extensão, corpos. Idéias e corpos são modos finitos imanentes à substância infinitamente infinita, exprimindo-a de maneira determinada, segundo a ordem necessária que rege as relações entre todos os seres do universo. Os seres humanos, constituídos pela união de um corpo e uma mente (ou uma idéia), são modos finitos de Deus ou partes da natureza infinita de Deus.

III – Desejo e liberdade

O corpo humano é uma unidade estruturada: não é um agregado de partes nem uma máquina de movimentos, mas um organismo, ou unidade de conjunto, e equilíbrio de ações internas interligadas de órgãos. É um indivíduo dinâmico, pois o equilíbrio interno é obtido por mudanças internas contínuas e por relações externas contínuas, formando um sistema de ações e reações centrípeto e centrífugo, de sorte que, por essência, o corpo é relacional: é constituído de relações internas entre seus órgãos, de relações externas com outros corpos e de afecções, isto é, da capacidade de afetar outros corpos e ser por eles afetado sem se destruir, regenerando-se com eles e os regenerando.

O corpo, estrutura complexa de ações e reações, pressupõe a intercorporeidade como originária. De fato, não só o corpo está exposto à ação de todos os outros corpos exteriores que o rodeiam e dos quais precisa para conservar-se, regenerar-se e transformar-se, como ele próprio é necessário à conservação, regeneração e transformação de outros corpos. Um corpo humano é tanto mais forte, mais potente e mais apto à conservação, à regeneração e à transformação, quanto mais ricas e complexas forem suas relações com outros corpos, isso é, quanto mais amplo e complexo for o sistema das afecções corporais.

A mente humana é uma força pensante ou um ato de pensar, isso é, uma ideia. Pensar é perceber ou imaginar, raciocinar, desejar e refletir. A mente humana é uma atividade pensante que se realiza como percepção ou imaginação, razão, desejo e reflexão. O que é pensar, nessas várias formas? É afirmar ou negar alguma coisa, tendo dela consciência (na percepção ou imaginação e na razão) e tendo consciência dessa consciência (na reflexão). Isto significa que a mente, como ideia ou potência pensante, é uma ideia que tem idéias (as idéias que a mente tem são os ideados, isto é, os conteúdos pensados por ela).

Em outras palavras, porque é um ser pensante, a mente está natural e essencialmente voltada para os objetos que constituem os conteúdos ou as significações de suas idéias. É de sua natureza estar internamente ligada a seu objeto (ou o ideado), porque ela não é senão atividade de pensá-lo. Ora, demonstra Espinosa, o primeiro objeto que constitui a atividade pensante da mente humana é o seu corpo e, por isso, a mente não é senão ideia do corpo. E porque ela é o poder para a reflexão, a mente, consciente de ser consciente de seu corpo, é também idéia da ideia do corpo, ou seja, é ideia de si mesma, ou ideia da ideia.

A mente humana não é uma substância anímica independente, uma alma meramente alojada no corpo para guiá-lo, dirigi-lo e dominá-lo. Modo finito do pensamento, atividade pensante definida como conhecimento de seu corpo e dos corpos exteriores por intermédio de seu corpo próprio (pois ela os conhece pela maneira como afetam seu corpo e pela maneira como este os afeta) e como conhecimento de si mesma, a mente humana não está alojada numa porção bruta de matéria, mas está unida ao seu objeto, ao seu corpo vivente.

Isso significa que quanto mais rica e complexa for a experiência corporal (ou o sistema das afecções corporais), tanto mais rica e complexa será a experiência mental, ou seja, tanto mais a mente será capaz de perceber e compreender uma pluralidade de coisas, pois, demonstra Espinosa, nada acontece no corpo de que a mente não forme uma imagem ou uma ideia (mesmo que estas sejam confusas, parciais e mutiladas). E quanto mais rica a experiência mental, mais rica e complexa a reflexão, isto é, o conhecimento que a mente terá de si mesma.

O corpo não causa pensamentos na mente, nem a mente causa as ações corporais: ela percebe e interpreta o que se passa em seu corpo e em si mesma. Assim, as afecções corporais são os afetos da mente, seus sentimentos e suas idéias. Em outras palavras, a relação originária entre o corpo é a mente é afetiva e as idéias da mente são afetos.

Unidos, corpo e mente constituem um ser humano como singularidade afetiva e individualidade complexa em relação contínua com todos os outros. A intersubjetividade é, portanto, originária.

Porque são expressões da potência da substância, os indivíduos singulares são potências de existir – aquilo que Espinosa, usando a terminologia da época, designa com a palavra conatus. São uma força interna que unifica todas as suas operações e ações para permanecer na existência, permanência que não significa apenas permanecer em seu próprio estado (como a pedra, por exemplo), mas regenerar-se continuamente, transformar-se e realizar-se (como os vegetais e os animais). O conatus, ou a potência de autoperseverança na existência, é a essência do corpo e da mente e essa essência, diz Espinosa, é o desejo. Somos desejo.

A potência interna (o conatus) que define a singularidade individual é uma força que pode aumentar ou diminuir, dependendo da maneira como cada singularidade se relaciona com outras ao efetuar seu trabalho de autoconservação. A intensidade da força da potência de existir e agir diminui se a singularidade for afetada pelas outras de tal maneira que se torna inteiramente dependente delas; e aumenta se a singularidade não perder independência e autonomia ao ser afetada por outras e ao afetá-las.

A diminuição e o aumento da força da potência existencial indicam que o desejo pode realizar-se inadequadamente ou adequadamente. A realização é inadequada quando a potência individual é apenas uma causa parcial das operações do corpo e da mente, que ficam determinadas pela potência de causas externas que impelem o indivíduo nessa ou naquela direção, dominando-o e diminuindo sua força. A realização é adequada quando a potência existencial aumenta sua força por ser a causa total e completa das ações que realiza, relacionando-se com as forças exteriores sem ser impelida, dirigida ou dominada por elas.

Espinosa pode, então, distinguir os afetos em passivos e ativos. Um afeto é passivo ou uma paixão quando o que se passa no corpo e na mente decorre do poderio das forças externas; um afeto é ativo ou uma ação quando decorre exclusivamente de nossa potência interna de existir e agir.

Espinosa é um racionalista – a realidade é inteiramente inteligível e pode ser plena e totalmente conhecida pela razão humana –, mas não é um intelectualista, pois não admite que basta ter uma ideia verdadeira de alguma coisa para que isso nos leve da paixão à ação, ou seja, para que se transforme a qualidade de nosso desejo.

Além disso, também não admite que passemos da paixão à ação por um domínio da mente sobre o corpo – somos passivos de corpo e mente ou somos ativos de corpo e mente. A um corpo passivo corresponde uma mente passiva e a um corpo ativo, uma mente ativa. Nem passamos da paixão à ação por um domínio que a razão possa ter sobre o desejo, pois, como demonstra na Ética, uma paixão só é vencida por outra paixão mais forte e contrária e não por uma ideia verdadeira.

A passagem da paixão à ação depende do jogo afetivo e da força do desejo. Imagens e idéias são interpretações de nossa vida corporal e mental e do mundo que nos rodeia. Ora, o que se passa em nosso corpo – as afecções – é experimentado por nós sob a forma de afetos (alegria, tristeza, amor, ódio, medo, esperança, cólera, indignação, ciúme, glória) e, por isso, não há imagem alguma nem ideia alguma que não possua conteúdo afetivo e não seja uma forma de desejo.

São esses afetos, ou a dimensão afetivo-desejante das imagens e das idéias, que aumentam ou diminuem a intensidade do conatus. Isso significa que somente a mudança na qualidade do afeto pode nos levar ao conhecimento verdadeiro, e não o contrário, e é por isso que um afeto só é vencido por outro mais forte e contrário, e não por uma ideia verdadeira.

Uma imagem-afeto ou uma ideia-afeto são paixão quando sua causa é uma força externa, e são ação quando sua causa somos nós mesmos, ou melhor, quando somos capazes de reconhecer que não há causa externa para o desejo, mas apenas interna. Os afetos ou desejos não possuem todos a mesma força ou intensidade: alguns são fracos ou enfraquecedores do conatus, enquanto outros são fortes e fortalecedores do conatus. São fracos todos os afetos nascidos da tristeza, pois esta é definida por Espinosa como o sentimento de que nossa potência de existir e agir diminui em decorrência de uma causa externa; são fortes os afetos nascidos da alegria, isso é, do sentimento de que nossa potência de existir e agir aumenta em decorrência de uma causa externa.

Assim, o primeiro movimento de fortalecimento do conatus ocorre quando passa de paixões tristes a paixões alegres e é no interior das paixões alegres que, fortalecido, ele pode passar à ação, isto é, ao sentimento de que o aumento da potência de existir e agir depende apenas de si mesmo como causa interna. Quando o conhecimento racional e reflexivo é experimentado como uma alegria maior do que qualquer outra, essa alegria é o primeiro instante da passagem ao verdadeiro e à ação.

Como a mente é ideia do corpo, será ativa ou passiva juntamente com ele. Isto significa que a liberdade, entendida como atividade cuja causa é a força autônoma do conatus, se refere não só à mente, mas também ao corpo, e é definida como a capacidade do corpo e da mente para a pluralidade simultânea. Isso é, a liberdade é a complexidade e a riqueza de afecções, afetos e idéias simultâneos, que têm no próprio corpo e na própria mente sua causa eficiente necessária.

Podemos, agora, avaliar a subversão ética realizada por Espinosa.

Para a tradição, paixão e ação eram termos reversíveis: a paixão era o lugar de recepção de uma ação, seu terminus ad quem; a ação, o lugar de onde partia uma operação, seu terminus a quo, posições que podem inverter-se, de sorte que, por exemplo, uma paixão da alma será uma ação do corpo e uma ação da alma, paixão do corpo. Com Espinosa, paixão e ação deixam de ser termos reversíveis para se tornar intrinsecamente distintas, de tal maneira que a uma mente passiva não corresponde um corpo ativo, nem a um corpo passivo corresponde uma mente ativa, pois corpo e mente são passivos ou ativos juntos e simultaneamente.

Essa subversão conceitual é o que permite a Espinosa identificar dois conceitos que a tradição sempre distinguira e opusera: necessidade e liberdade. Sendo a mente ideia do corpo, aquele que tem um corpo apto à pluralidade de afecções simultâneas tem uma mente apta à pluralidade de idéias simultâneas, de maneira que a liberdade humana, deixando de identificar-se com o exercício do livre arbítrio como escolha voluntária entre possíveis, é potência para o múltiplo simultâneo, quando este se explica apenas pelas leis necessárias de nossa natureza.

A liberdade não se encontra, portanto, na distância entre mim e mim mesma – distância que, usando a razão e a vontade, eu procuraria preencher com algo que não sou eu mesma, isso é, com o objeto de uma escolha ou com um fim. Ao contrário, é a proximidade máxima de mim comigo mesma, a identidade do que sou e do que posso. Porque a liberdade é a identidade de si consigo, Espinosa pode demonstrar que o conatus (ou o esforço de autoperseverança no ser) é o único fundamento da virtude, uma vez que esta não é senão a força do corpo e da mente para afirmar-se como causa eficiente interna total de suas ações, isso é, para ser plenamente uma potência de agir que encontra em si mesma a causa total de suas ações. A liberdade é a proximidade plena de si consigo mesmo e poder do corpo e da mente para o múltiplo simultâneo.

IV. Contra o fundamentalismo religioso: crítica da teologia política

Se os homens pudessem ter o domínio de todas as circunstâncias de suas vidas, diz Espinosa, não se sentiriam à mercê dos caprichos da sorte, isto é, a ordem imaginária do mundo como encontros fortuitos entre as coisas, os homens e os acontecimentos. Sentindo-se à mercê da sorte, porque não possuem o domínio das circunstâncias de suas vidas e são movidos pelo desejo de bens que não parecem depender deles próprios, os humanos são habitados naturalmente por duas paixões, o medo e a esperança. Têm medo que males lhes aconteçam e bens não lhes aconteçam, assim como têm esperança de que bens lhes advenham e males não lhes caiam sobre as cabeças. Visto que esses bens e males, não parecendo depender deles próprios, lhes parecem depender inteiramente da sorte ou do acaso – e como reconhecem que as coisas que assim lhes acontecem são efêmeras –, seu medo e sua esperança jamais cessam. Da mesma maneira que coisas boas ou más lhes vieram sem que soubessem como nem por que, também podem desaparecer sem que saibam as razões desse desaparecimento.

A gênese da superstição encontra-se, portanto, na experiência da contingência. A relação imponderável com um tempo cujo curso é ignorado – no qual o presente não parece vir em continuidade com o passado e nada, nele, parece anunciar o futuro – gera simultaneamente a percepção do efêmero e do tempo descontínuo, o sentimento da incerteza e da imprevisibilidade de todas as coisas. Incerteza e  insegurança suscitam o desejo de superá-las, encontrando signos de previsibilidade para as coisas e os acontecimentos e levando à busca de sinais que permitam prever a chegada de bens e males. Essa busca, por seu turno, gera a credulidade em presságios e, por fim, a busca de presságios conduz à crença em poderes sobrenaturais, que, inexplicavelmente, enviam bens e males aos homens. Dessa crença em poderes transcendentes misteriosos nascerá a religião.

Mas Espinosa prossegue: se o medo é a causa da superstição, três conclusões se impõem. A primeira é que todos os homens estão naturalmente sujeitos a ela, não porque teriam uma ideia confusa da divindade. Ao contrário, eles a têm exatamente porque são supersticiosos – a superstição não é efeito e sim causa da ignorância a respeito da divindade.

A segunda é que ela deve ser extremamente variável e inconstante, uma vez que variam as circunstâncias em que se tem medo e esperança, variam as reações de cada indivíduo às mesmas circunstâncias e variam os conteúdos do que é temido e esperado.

A terceira conclusão é que a superstição só pode ser mantida ou permanecer mais longamente se uma paixão mais forte a fizer subsistir, como o ódio, a cólera e a fraude. Facilmente os homens caem em todo tipo de superstição. Dificilmente persistem durante muito tempo numa só e na mesma.

Ora, diz Espinosa, não há meio mais eficaz para dominar os homens do que mantê-los no medo e na esperança, mas também não há meio mais eficaz para que sejam sediciosos e inconstantes do que a mudança das causas de medo e esperança. Por conseguinte, os que ambicionam dominar os homens precisam estabilizar as causas, as formas e os conteúdos do medo e da esperança. Essa estabilização é feita por meio da religião.

A fixação de formas e conteúdos será tanto mais eficaz quanto mais os crentes acreditarem que sua fonte é a vontade do próprio Deus revelada a alguns homens sob a forma de decretos, mandamentos e leis. O poderio religioso torna-se ainda mais forte se os diferentes poderes que governam o mundo forem unificados num único poder onipotente – o monoteísmo é uma religião mais potente do que o politeísmo.

A força da religião aumenta se os crentes estiverem convencidos de que o único deus verdadeiro é o seu e que ele os escolheu para enviar suas vontades. Em outras palavras, uma religião monoteísta é mais potente quando seus fiéis se consideram eleitos pelo deus verdadeiro, que lhes promete bens terrestres, vingança contra seus inimigos e salvação numa outra vida, que será eterna. E, por fim, a força dessa religião é ainda maior se seus crentes acreditarem que o deus se revela, isto é, fala aos fiéis, dizendo-lhes qual é sua vontade – a religião monoteísta da eleição de um povo e do deus revelado é a mais potente de todas.

Ora, a vontade divina revelada terá um poder muito mais forte se a revelação não for algo corriqueiro e ao alcance de todos, mas algo misterioso dirigido a alguns escolhidos – os profetas. Assim, o núcleo da religião monoteísta revelada é a profecia, pois dela provêm a unidade e a estabilidade, que fixam de uma vez por todas os conteúdos do medo e da esperança.

Essa fixação assume a forma de mandamentos ou leis divinas, que determinam tanto a liturgia, isto é, as cerimônias e os cultos, como os costumes, os hábitos, as formas de vida e de conduta dos fiéis. Numa palavra, a revelação determina as formas das relações dos homens com a divindade e entre si. Por outro lado, a profecia é também a revelação da vontade divina quanto ao governo dos homens: a divindade decreta as leis da vida social e política e determina quem deve ser o governante, escolhido pela própria divindade. Em suma, as religiões monoteístas reveladas ou proféticas fundam regimes teocráticos, nos quais o governante governa por vontade do deus.

Todavia, ainda que as profecias estejam consignadas em escritos sagrados invioláveis – as religiões monoteístas reveladas de que falamos aqui são as três “religiões do Livro”: judaísmo, cristianismo e islamismo –, o fato de que esses escritos sejam a fonte do poder teocrático os transforma em objeto permanente de disputa e guerra. Essa disputa e essa guerra se realizam em torno da interpretação do texto sagrado, seja em torno de quem tem o direito de interpretá-lo, seja em torno do próprio conteúdo interpretado. É na disputa e guerra das interpretações que surge a figura do teólogo. Isso significa que a teologia não é um saber teórico ou especulativo sobre a essência de Deus, do mundo e do homem, e sim um poder para interpretar o poder do deus, consignado em textos.

A teologia é definida pela tradição judaica e cristã como ciência supranatural ou sobrenatural, pois sua fonte é a revelação divina consignada nas Sagradas Escrituras. Ora, Espinosa considera que a filosofia é o conhecimento da essência e da potência de Deus, isso é, o conhecimento racional da ideia do ser absolutamente infinito e de sua ação necessária.

Em contrapartida, considera que o Livro Sagrado não oferece (nem é sua finalidade fazê-lo) um conhecimento racional especulativo da essência e potência do absoluto, e sim um conjunto muito simples de preceitos para a vida religiosa e moral, que podem ser reduzidos a dois: amar a Deus e ao próximo (os preceitos da justiça e da caridade).

Não há nos textos sagrados mistérios especulativos nem conhecimentos filosóficos sobre a essência e a potência de Deus, da natureza e do homem, porque, afirma Espinosa, uma revelação é um conhecimento por meio de imagens e signos com que nossa imaginação cria uma figura da divindade com a qual possa relacionar-se pela fé. No caso da Bíblia judaico-cristã, o Antigo Testamento é o documento histórico de um povo determinado e de seu Estado, hoje desaparecido, a teocracia hebraica; o Novo Testamento é o relato histórico da vinda de um salvador, de sua vida, seus feitos, sua morte e suas promessas para quem o seguir.

A teologia, portanto, é um sistema de imagens com pretensão ao conceito, com o escopo de obter, por um lado, o reconhecimento da autoridade do teólogo (e não da verdade intrínseca de sua interpretação) e, por outro, a submissão dos que o escutam, tanto maior se for conseguida por consentimento interior. O teólogo visa à obtenção do desejo de obedecer e de servir. Eis porque toda teologia é política. Inútil para a fé – pois esta se reduz a conteúdos muito simples e a poucos preceitos de justiça e caridade – e perigosa para a razão livre – que opera segundo uma necessidade interna autônoma –, a teologia é danosa para a política, porque impossibilita o trabalho dos conflitos sociais em vista da paz, da segurança e da liberdade dos cidadãos.

Dessa maneira, escreve Espinosa, sacerdotes e teólogos “cercam a religião de cultos e aparatos próprios a lhe dar maior peso junto à opinião e maior respeito aos espíritos”, não hesitando em censurar, prender, interrogar, torturar e matar todo aquele que ouse refutá-la pelo livre pensamento e pela ação.

Aqueles que sabem que “não há meio mais eficaz para dominar a multidão do que a superstição” buscam divinizar a política e induzem, “sob a capa da piedade, a adorar os reis como se fossem deuses ou a odiá-los como flagelo do gênero humano”. A sacralização do poder político é obra da teologia, que passa a deter os segredos da política. Captados pela sedução teológica, os governantes aderem à sacralização da autoridade política, graças ao cerimonial, ao segredo, às leis da censura, à posse de exércitos e fortalezas, ao uso da prisão, tortura e morte dos opositores.

Filha do medo, por ele e nele parida, a superstição delega à religião – e esta à teologia – a tarefa delirante de encontrar uma unidade imaginária, capaz de recobrir e reconciliar uma realidade apreendida como fragmentada no espaço e no tempo, feita de forças múltiplas e contrárias. Uma unidade que pareça assegurar a continuidade dos acontecimentos e o controle sobre a Natureza irada, que pacifique governantes coléricos, garanta esperanças e conjure terrores.

Essa unidade procurada não pode, evidentemente, pertencer à mesma dimensão que a do mundo fragmentado e dilacerado, mas precisa transcendê-lo, a fim de manter coesas as partes isoladas e contrárias. Essa coesão só pode ser obtida pela potência extraordinária de um querer e de um olhar capazes de varrer num só lance a totalidade do tempo, do espaço, do visível e do invisível. Assim, a fragmentação experimentada com angústia pela imaginação desemboca numa unificação também imaginária, cuja morada é a vontade providencial de um soberano divino.

Graças a esse poder, que é uno porque transcendente à fragmentação da natureza e às divisões da sociedade, o curso das coisas parece assegurado e o destino de cada um, salvaguardado. No entanto, a salvaguarda é precária. Porque esse poder é imaginário, permanece desconhecido e rodeado de mistérios e é desprovido de necessidade inteligível, a imagem de Deus torna-se um amálgama incompreensível, pois a onipotência de sua vontade – lugar onde se alojaria a necessidade de seu agir – significa que faz tudo o que lhe aprouver e é também contingente e arbitrária. Secretas são suas razões. Misteriosa sua onisciência.

Assim, para ser tido como onipotente, o poder divino deve ser tido como insondável e ilocalizável, duplicando, então, o mistério do mundo que o exigira. A partir do momento em que a arbitrariedade do poder divino é tomada como prova de sua onipotência, os homens são obrigados a conjurar a ameaça que criaram para si próprios, justamente quando tentavam proteger-se. Torna-se-lhes indispensável encontrar mecanismos que possam garantir a constância do favor divino (o que explica a proliferação dos rituais e da arte divinatória), ou então, parece-lhes inevitável terem de se abandonar cegamente aos desígnios inescrutáveis da providência, sem ousar interferir em seu curso, confiando em uma vontade soberana que tudo prevê.

Essa representação dos altos poderes ou do poder do Alto parece baixar do céu à terra. O mesmo desejo de submissão a um poder uno e soberano, porque transcendente à fragmentação dos conflitos que dilaceram a sociedade e a política, produz entre os homens uma relação que os conduzirá, ao fim e ao cabo, a submeterem-se ao poder misterioso dos governantes. Com o advento dos arcana imperii – os segredos do poder ou a “razão de Estado“ – os homens, escreve Espinosa, “combatem para a servidão como se esta fora sua salvação“.

Na realidade, porém, e Espinosa não se cansa de repeti-lo, essa representação subiu da terra ao céu – a política não é religião ou teologia secularizada; ao contrário, a religião e a teologia são a política sacralizada. Os conflitos entre os homens, deixando-os imersos no medo de serem vencidos pelo jogo incontrolável de forças exteriores, sejam estas figuradas pela natureza ou pelas relações sociais, pelo curso dos acontecimentos ou pela presença da alteridade, os leva a tecer uma teia imaginária de relações, cuja origem e sentido dependem de uma autoridade suprema, governante da natureza e da sociedade.

Espinosa realiza a crítica da teologia política sob três aspectos principais: a) mostrando que é inútil para a fé, pois os Livros Sagrados não contêm verdades teóricas ou especulativas sobre Deus, o homem e o mundo, mas preceitos práticos muito simples – adorar a Deus e amar o próximo –, que podem ser compreendidos por todos. O Antigo Testamento é o documento histórico e político de um Estado particular determinado, o Estado hebraico fundado por Moisés, não podendo servir de modelo e regra para Estados não hebraicos.

Por sua vez, o Novo Testamento é uma mensagem de salvação individual, cujo conteúdo também é bastante simples, qual seja, a) Jesus é o Messias que redimiu os homens do pecado original e os conduzirá à glória da vida eterna, se se amarem uns aos outros como Jesus os amou;  b) criticando a suposição de que há um saber especulativo e técnico possuído por especialistas em interpretação dos textos religiosos. Ele mostra que conhecer a Sagrada Escritura é conhecer a língua e a história dos hebreus e, portanto, que a interpretação dos livros sagrados é uma questão de filologia e história e não de teologia; c) mostrando que a particularidade histórico-política narrada pelo documento sagrado não permite que a política teocrática, que o anima, seja tomada como paradigma universal da política, pois é apenas a maneira como um povo determinado, em condições históricas determinadas, fundou ao mesmo tempo seu Estado e sua religião, sem que sua experiência possa ou deva ser generalizada para todos os homens em todos os tempos e lugares. Por conseguinte, toda tentativa teológica de manter a teocracia como forma política ordenada por Deus é fraude e engodo;

A crítica espinosana do poder teológico-político tem como alvo desatar o laço que prende num tecido único a experiência da contingência, o sentimento do medo e o imaginário do poder transcendente. A política é atividade humana imanente ao social e este é instituído pela lógica das ações humanas em condições determinadas.

Uma vez que a origem do poder político é imanente às ações dos homens e que o sujeito político soberano é a potência da massa e que esta decide agir em comum, mas não pensar em comum, o poder teológico-político é duplamente violento. Em primeiro lugar, porque pretende roubar dos homens a origem de suas ações sociais e políticas, colocando-as como cumprimento a mandamentos transcendentes de uma vontade divina incompreensível ou secreta, fundamento da “razão de Estado”. Em segundo, porque as leis divina reveladas, postas como leis políticas ou civis, impedem o exercício da liberdade, pois não regulam apenas usos e costumes, mas também a linguagem e o pensamento, procurando dominar não só os corpos, mas também os espíritos.

O imaginário da transcendência afirma que a teocracia é o regime de poder ordenado pela vontade divina. O pensamento da imanência afirma que a democracia é a forma superior da política.


Marilena Chauí é filósofa e professora livre-docente da Universidade de São Paulo (USP). Originalmente publicado em Revista Cult. Para aprofundar-se nos estudos, leia as obras da autora:

 

ALGUNS VÍDEOS:

O ANTIPETISMO LUNÁTICO E O ANALFABETISMO POLÍTICO: Mobilizado pela extrema-direita, a ideologia da demonização do lulopetismo é uma falsificação histórica e uma abominação ética

Querem nos convencer que o PT é um câncer a ser extirpado, uma “organização criminosa” a ser banida do país, um antro de “vermelhos” que querem legalizar a pedofilia e o incesto, um bando de “abortistas” e maconheiros destinados a transformar o Brasil numa “ditadura bolivariana” como a Venezuela – em suma, a própria existência do Partido dos Trabalhadores é descrita como algo equivalente à peste bubônica.

Diante da disseminação tresloucada de um antipetismo fanático e feroz, mobilizado incessantemente pelo populismo odiento da candidatura da extrema-direita (chapa Bolsonaro / Mourão), é preciso ter o mínimo de sensatez e atentar, com respeito à verdade, aos ensinamentos dos fatos históricos e dos legados atuais do ciclo de governos petistas (2002 a 2016). Vamos a eles.

Os dados oficiais referentes aos principais indicadores sócio-econômicos do Brasil, antes e depois dos 13 anos de PT à frente do poder executivo federal, indicam claramente a qualquer cidadão lúcido e bem-informado: a tese de que “o PT quebrou o Brasil” é uma lorota monumental.

Afirmar que o PT “destruiu nossa nação” é uma das maiores fake news de um processo político repleto de enganação e falsidade – em que, como no 1984 de George Orwell, busca-se reescrever a História para que dela sejam apagados os méritos e avanços inegáveis que ocorreram durante as gestões de Lula e Dilma. Uma pesquisa realizada pelo professor Pablo Vieira Florentino aponta os seguintes índices:

SALÁRIO MÍNIMO:

Em 2003: R$240,00
Em 2016: R$880,00

Um aumento de 266% no período enquanto a inflação acumulada foi de 123%. Fazendo a correção, o salário de 2003 equivale a R$535,39 em 2016. Ou seja, um aumento real de 2003 pra 2016 de incríveis 64%.

Fontes: Min. Fazenda, IBGE e FGV.

IDH – ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO

Em 2003: 0,695
Em 2016: 0,755

Fonte: PNUD – ONU

DISTRIBUIÇÃO DE RENDA (GINI)

Em 2003: 0,586
Em 2016: 0,491

O índice GINI mede o grau de desigualdade de um país. Quanto mais próximo de 1, mais desigual é.

Fonte: IBGE

EXTREMA POBREZA

Em 2003: 10,5% (Banco Mundial) 17,5% (IBGE)
Em 2016: 4,2% (Banco Mundial) 9,2% (IBGE)

O Banco Mundial e o IBGE usam rendas diferentes para critério de extrema pobreza. Em ambos percebemos uma queda acentuada (60% e 47,4% respectivamente) no percentual da população que vive em extrema pobreza.

Fontes: Banco Mundial e IBGE

TAXA DE MORTALIDADE INFANTIL (a cada mil nascidos)

Em 2003: 21,5
Em 2016: 14

Uma queda de 34,8% no período. Vale ressaltar que em 2016 tivemos uma epidemia de Zika no país q elevou a taxa de mortalidade infantil, o que torna essa queda mais expressiva.

Fonte: IBGE

TAXA DE ANALFABETISMO

Em 2001: 12,4%
Em 2016: 7,2%

Uma queda de 42% no período.

Fonte: INEP – MEC

ENSINO FUNDAMENTAL
(jovens de 16 anos com ensino fundamental concluído)

Em 2003: 57%
Em 2014*: 74%

Um crescimento de 29,8%.

*O estudo do PNE com base no PNAD que serviu de fonte para estes dados era de 2014, portanto não trazia dados de 2016.

Fonte: Observatório do PNE

PIB

Em 2002: 1,48 trilhões
Em 2016: 6,26 trilhões

Corrigido pelo IGP-M, o PIB de 2002 equivale a 3,53 trilhões em 2016. Ou seja, tivemos um aumento de 323% que, considerando as correções, representa um aumento real de quase 80% no nosso produto interno bruto.

Fonte: IBGE e FGV

RESERVAS INTERNACIONAIS

Em 2003: U$ 37,6 bilhões
Em 2016: U$ 370 bilhões

Um aumento de 884%. Quase 10 vezes maior de quando pegou pra quando entregou o governo.

Fonte: Banco Central

ENSINO SUPERIOR

Em 2002: 466,2 mil alunos concluiram
Em 2014: 837,3 mil alunos concluíram

De 1995 a 2002: 2,4 milhões concluíram
De 2003 a 2014: 9,2 milhões concluíram

O aumento de pessoas com nível superior reflete o sucesso de políticas públicas como o ProUni e também é consequência da melhora da renda da população em geral que passou a ter condição de pagar pelos estudos.

Fonte: MEC

DESEMPREGO

Em 2003: 13%
Em 2014: 4,3% (Fim do 1o mandato da Dilma)
Em 2016: 11,3%
Hoje: 12,3%

A redução da taxa de desemprego do início do governo PT até o início da crise, quando a Dilma ganhou a reeleição, havia sido de 67%. Com a crise que vivemos até hoje este indice subiu bastante, mas mesmo assim se encontra abaixo de 2003 quando o PT entrou. Ou seja, apesar da nossa percepção de que nunca esteve tão ruim, de desesperança e de caos, de fundo do poço, ainda assim está melhor que antes do PT entrar.

Fonte: IBGE – PNAD

Mortalidade infantil para crianças até 1 ano

2003: 27,48% 
2015: 13,08% 
a menor em 11 anos. IBGE.
(contribuição de Jonice Oliveira / Suzanne Xavier)

A isso soma-se os inegáveis avanços em matéria de empoderamento feminino e políticas públicas em prol da igualdade de gênero. Nesta publicação, compartilhada por Meu Voto Será Feminista, são destacadas 6 políticas públicas praticadas pelo PT no período em que esteve no poder executivo federal (2002 a 2016) e que incidiram positivamente sobre a vida das mulheres: 

* * * * *

O ex-presidente Lula encerrou seu mandato (2002 a 2010) batendo recorde de aprovação e popularidade: atingiu um índice de 87% de avaliações “bom/ótimo” por parte da população (fonte: G1/Ibope). Em Outubro de 2018, na condição de preso político, impedido de disputar as eleições que tinha alta probabilidade de vencer, Lula publicou uma carta ao povo brasileiro onde reflete sobre seu legado e sobre o ódio antipetista hoje mobilizado pelas forças reacionárias, saudosas da Ditadura Militar:

De onde me encontro, preso injustamente há mais de seis meses, aguardando que os tribunais façam enfim a verdadeira justiça, minha maior preocupação é com o sofrimento do povo, que só vai aumentar se o candidato dos poderosos e dos endinheirados for eleito. Mas fico pensando, todos os dias: por que tanto ódio contra o PT?

Será que nos odeiam porque tiramos 36 milhões de pessoas da miséria e levamos mais de 40 milhões à classe média? Porque tiramos o Brasil do Mapa da Fome? Porque criamos 20 milhões de empregos com carteira assinada, em 12 anos, e elevamos o valor do salário mínimo em 74%? Será que nos odeiam porque fortalecemos o SUS, criamos as UPAS e o SAMU que salvam milhares de vidas todos os dias?

Ou será que nos odeiam porque abrimos as portas da Universidade para quase 4 milhões de alunos de escolas públicas, de negros e indígenas? Porque levamos a universidade para 126 cidades do interior e criamos mais de 400 escolas técnicas para dar oportunidade aos jovens nas cidades onde vivem com suas famílias?

Talvez nos odeiem porque promovemos o maior ciclo de desenvolvimento econômico com inclusão social, porque multiplicamos o PIB por 5, porque multiplicamos o comércio exterior por 4. Talvez nos odeiem porque investimos na exploração do pré-sal e transformamos a Petrobrás numa das maiores petrolíferas do mundo, impulsionando nossa indústria naval e a cadeia produtiva do óleo e gás.

Talvez odeiem o PT porque fizemos uma revolução silenciosa no Nordeste, levando água para quem sofria com a seca, levando luz para quem vivia nas trevas, levando oportunidades, estaleiros, refinarias e indústrias para a região. Ou talvez porque realizamos o sonho da casa própria para 3 milhões de famílias em todo o país, cumprindo uma obrigação que os governos anteriores nunca assumiram.

Será que odeiam o PT porque abrimos as portas do Palácio do Planalto aos pobres, aos negros, às mulheres, ao povo LGBTI, aos sem-teto, aos sem-terra, aos hansenianos, aos quilombolas, a todos e todas que foram discriminados e esquecidos ao longo de séculos? Será que nos odeiam porque promovemos o diálogo e a participação social na definição e implantação de políticas públicas pela primeira vez neste país? Será que odeiam o PT porque jamais interferimos na liberdade de imprensa e de expressão?

Talvez odeiem o PT porque nunca antes o Brasil foi tão respeitado no mundo, com uma política externa que não falava grosso com a Bolívia nem falava fino com os Estados Unidos. Um país que foi reconhecido internacionalmente por ter promovido uma vida melhor para seu povo em absoluta democracia.

Será que odeiam o PT porque criamos os mais fortes instrumentos de combate à corrupção e, dessa forma, deixamos expostos todos que compactuaram com desvios de dinheiro público?

Tenho muito orgulho do legado que deixamos para o país, especialmente do compromisso com a democracia. Nosso partido nasceu na resistência à ditadura e na luta pela redemocratização do país, que tanto sacrifício, tanto sangue e tantas vidas nos custou.

Neste momento em que uma ameaça fascista paira sobre o Brasil, quero chamar todos e todas que defendem a democracia a se juntar ao nosso povo mais sofrido, aos trabalhadores da cidade e do campo, à sociedade civil organizada, para defender o estado democrático de direito.

Se há divergências entre nós, vamos enfrentá-las por meio do debate, do argumento, do voto. Não temos o direito de abandonar o pacto social da Constituição de 1988. Não podemos deixar que o desespero leve o Brasil na direção de uma aventura fascista, como já vimos acontecer em outros países ao longo da história.

Neste momento, acima de tudo está o futuro do país, da democracia e do nosso povo. É hora de votar em Fernando Haddad, que representa a sobrevivência do pacto democrático, sem medo e sem vacilações”.

Luiz Inácio Lula da Silva

Curitiba, 24 de outubro de 2018

* * * * * 

Acredito que a ideologia do antipetismo foi disseminada em nossa sociedade nestes últimos anos pelas elites econômicas, ressentidas com a ascensão social das classes mais vulneráveis. Foi uma estratégia recorrente de perseguição política-partidária por parte de vários órgãos da mídia burguesa (como a Rede Globo, Record, Revista Veja, dentre outros órgãos conhecidos como P.I.G. – Partido da Imprensa Golpista). Somou-se a isto parte do Judiciário partidarizado (como naqueles, como Moro e Dallagnol, que praticaram uma suja lawfare na Lava Jato).

Além disso, o antipetismo tornou-se o talismã de muitos cidadãos da classe média, capturados pelo discurso meritocrático e neoliberal que visa nos convencer que cota é esmola, políticas de combate à desigualdade “sustentam vagabundos”, dentre outros argumentos já demolidos pela belíssima canção de Bia Ferreira:

O antipetismo, nos últimos tempos, vem sendo fortemente mobilizado pela extrema-direita: o petismo é utilizado como uma grande “bode expiatório”. Atribuindo ao PT todas as mais absurdas culpas, como a de ter “quebrado o Brasil”, de ser uma “organização criminosa”, de querer instaurar no país uma “ditadura comunista bolivariana”, dentre outros delírios, esta ideologia tornou-se essencial para a decifração do que o psicólogo social Wilhelm Reich chamava de Psicologia de Massas do Fascismo. Um dos mais perspicazes intérpretes desse fenômeno, o Breno Altman (de Opera Mundi) aponta:

Não se trata, para combater a demonização do petismo, de desenhar um halo de santidade sobre o partido. No Brasil, não faltam excelentes análises sobre a experiência do lulopetismo do poder, em que são feitas as devidas críticas e contestações em relação às falhas e insuficiências das políticas petistas. Faz parte da essência da democracia que um partido político esteja aberto a ouvir a voz da discórdia, realizando a auto-crítica e transformando suas práticas para melhor (o que Fernando Haddad sempre fez de modo magistral e exemplar).

Sobre o PT, há um mergulho aprofundado e uma reflexão digna deste nome nas obras de figuras respeitáveis das ciências sociais e humanas: André Singer (autor de Os Sentidos do Lulismo O Lulismo em Crise), Francisco de Oliveira, Rudá Ricci, Ruy Braga, Marilena Chauí, Vladimir Safatle, Edson Teles, dentre muitos outros. Além de coletâneas como esta da Editora Boitempo:

O problema é que o antipetismo, como fenômeno de massas no Brasil Bolsonarizado de 2018, nada possui de sensato, racional, estudado ou bem-informado. O antipetismo vem transformando um número altíssimo de cidadãos brasileiros em cães raivosos, quase um exército de Zumbis, que só sabem vomitar ofensas e xingamentos contra os “petralhas”, o “luladrão”, os “marginais vermelhos” que vão ser “exterminados como ratos” (sim, recebi material desse teor em meu zap…).

Similarmente ao anti-semitismo na Alemanha do III Reich, o antipetismo (e também algo mais amplo que ele, o “antiesquerdismo”) vem sendo mobilizado de modo a construir unidade entre as massas de manobra do campo fascista brasileiro, hoje liderado pelo pretende a führer Bolsonaro, que usa e abusa do discurso de demonização do outro para depois prometer extermínio, perseguição e repressão aos adversários, em uma horrenda linguagem higienista.

O resultado é esta pavorosa onda de violência, intolerância e psicose instigada pelas lideranças Bolsonaristas. Ao incitar a violência contra os “marginais vermelhos”, Bolsonaro funde o autoritarismo fascista com o antipetismo fanático, o que se manifesta na insanidade coletiva que acomete o eleitorado do péssimo e fraudulento candidato do PSL.

Em muitos casos, longe de ser resultado de uma crítica realizada de modo sensato, longe de ser fruto de uma avaliação ponderada sobre a experiência do lulopetismo no poder, o antipetismo raivoso, cheio de uma ira irracional, mais parece um sintoma de psicopatologia, de colapso do senso ético do sujeito. Por ódio contra um partido, defende-se o indefensável: a tortura, o racismo, a violência contra as mulheres, o massacre de lgbts, a discriminação contra indígenas, a aniquilação de direitos trabalhistas, o elogio do terrorismo de Estado sob a Ditadura militar etc.

O seguinte cartaz diz tudo isto de modo sintético e pedagógico:

O antipetismo fanático hoje tornou-se sinal de analfabetismo político. As massas de manobra, bestificadas pelo populismo de extrema-direita, aderem a uma ideologia simplista, maniqueísta, alterofóbica, que criminaliza em massa a esquerda, seus partidos e seus movimentos sociais. Segundo o antropólogo e cientista social Luiz Eduardo Soares, as atuais manifestações de neofascismo no Brasil tem íntima vinculação com uma “atmosfera envenenada por um antipetismo patológico”:

“O impeachment, na atmosfera envenenada por um antipetismo patológico, abriu caminho para que saíssem do armário todos os espectros do fascismo. O anti-petismo é o ingrediente que faz as vezes do anti-semitismo na Alemanha nazista. O anti-petismo identifica O CULPADO de todas as perversões, o monstro a abater, o bode expiatório, a fonte do mal. O anti-petismo gerou o inimigo e gestou a guerra político-midiática para liquidá-lo, guerra que se estende, sob outras formas (mas até quando?), às favelas e periferias, promovendo o genocídio de jovens negros e pobres, e aniquilando a vida de tantos policiais, trabalhadores explorados e tratados com desprezo pelas instituições.

(…) Ser contrário ao anti-petismo, mesmo não sendo petista, é necessário para resistir ao avanço do fascismo. Os que votaram pelo impeachment e, na mídia, incendiaram os corações contra Lula e o PT – Partido dos Trabalhadores, sem qualquer pudor, não tendo mais como recuar, avançam ao encontro da ascensão fascista, que ajudam a alimentar, voluntária e involuntariamente. Não podemos retardar a formação de ampla aliança progressista pela democracia, uma frente única anti-fascista.” – Luiz Eduardo Soares no texto “O tweet do General”

Em 2018, o antipetismo abandonou todos os escrúpulos democráticos e fez uso de uma massiva campanha de assassinato de reputações, fazendo uso das mídias sociais e de uma memética mentirosa e agressiva, tudo com o intuito de moer impiedosamente a honra de Fernando Haddad, Manuela D’Ávila, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Gleisi Hoffmann, dentre outras lideranças da esquerda.

A candidatura da extrema-direita militarista  atacou a candidatura Haddad e Manu com uma enxurrada grotesca de fake news. E só o também grotesco analfabetismo político, desconhecimento histórico e alienação ético-cognitiva explica a credulidade odienta de tantos eleitores que não só acreditaram nas mentiras, mas as disseminaram, fazendo com que se propagassem absurdos inacreditáveis. Na imaginação paranóide e psicótica destes cidadãos imbecilizados por Bolsonaro, o Haddad legalizaria o incesto e a pedofilia, distribuiria kit gay nas escolas, enquanto Manu andaria por aí, cheia de tatoos celebrando Stálin, ensinando com camisetas que “Jesus é travesti”.

As crenças do eleitorado Bolsonarista são uma espécie de pesadelo coletivo e delírio de massa bizarro, onde estão reunidas as noções mais disparatadas e as credulidades mais absurdas. Além de atiçar a violência contra as minorias, o candidato a tirano, o pseudo-Messias quer que o povo brasileiro aperte o botão DELETE em relação ao passado recente do país: seu plano é retornar o Brasil ao estado que tinha há 50 anos atrás, ou seja, quando a Ditadura Militar entrou em seus anos-de-chumbo e promulgou o AI-5 (1968 a 1978).

Recuperar a verdadeira história do que foi o Brasil na era lulista tornou-se, hoje, um ato de cidadania, de justiça, de solidariedade com os oprimidos. Diante da grotesca campanha Bolsonarista, que segue à risca o conselho nazistóide do chefe de propaganda do III Reich, Goebbels – “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade” -, é preciso que todos levantemos nossas vozes em prol da verdade hoje amordaçada. Pois, como ensina George Orwell, em tempos onde a mentira tenta se tornar universal, dizer a verdade é um ato revolucionário.

por Eduardo Carli de Moraes
para A Casa de Vidro
27/10/2018

Filósofa Marilena Chauí explica como o ódio político decorre do neoliberalismo e do conceito de meritocracia

Acima: Palestra na Fundação Perseu Abramo (28 min)

 

“Fernando Haddad​ é marcado pela excelência, foi um dos alunos mais brilhantes que eu já tive”, afirmou a filósofa Marilena Chauí​. Em palestra recente na Fundação Perseu Abramo​, a professora da USP – Universidade de São Paulo​ explicou que, em sua avaliação, vivemos um momento trágico da história do Brasil e que o ódio político decorre do neoliberalismo e do conceito de meritocracia. O capitalismo teria entrado, em sua fase neoliberal, em uma fase totalitária, protofascista, com a imposição da forma “empresa” a todas as instituições sociais. Assista (28 min).

Sobre o candidato do PT – Partido dos Trabalhadores à Presidência da República (com Manuela D’Ávila vice), Chauí lembra-nos que Haddad inventou os CEUs (Centros de Artes e Esportes Unificados): “A ideia foi dele: visitou as periferias de São Paulo e depois propôs os CEUs. Depois, foi Ministro da Educação, e com Haddad nunca houve uma coisa igual: não só pelos programas de inclusão, da alfabetização de adultos e jovens, da imensa expansão da rede de educação pública federal, mas também através do ENEM, que confrontou a Indústria do Vestibular.”

A filósofa também revelou os laços de amizade entre ela e o candidato do PT à Presidência da República: “Também conheço Haddad como meu amigo. Leal, sincero, de coração puro e uma cabeça nova. Haddad tem uma proposta civilizatória, inclusiva, solidária e justa. Isto é o novo; o novo não é o rosto, o novo é a idéia, a proposta.”

Chauí também elogia a capacidade de Haddad em manter-se fiel ao princípio político essencial da modernidade iluminista, a laicidade do Estado. Ele é o oposto da demagogia teocrática de Malafaias, Felicianos e Bolsonaros. Segundo a filósofa, é alguém que respeita a separação entre Estado e Igrejas, um inovador secular sem medo de ousar na construção de uma sociedade mais inclusiva, justa e solidária.

Assistas aos vídeos:

#LulaLivre#HaddadPresidente#ManuNoJaburu

E O SEXO SE FEZ VERBO… Aforismos sobre “A História da Sexualidade” de Michel Foucault (Parte 1)

AFORISMOS SOBRE “A HISTÓRIA DA SEXUALIDADE”
DE MICHEL FOUCAULT

#1) O MITO DO SANGUE AZUL

Há uma curiosa expressão: “ter sangue azul”. Normalmente aplicamos o termo a uma figura prepotente, aristocrática, suntuosa, cheia de pompa, uma dessas autoridades que tem a pretensão de escapar ao destino comum dos mortais. “Ter sangue vermelho é coisa de plebeu, de ralé, de proleta… já eu tenho sangue superior!”, assim arrazoa a zuada racionalidade autoritária.

Foucault diz que o mito do “eu tenho sangue azul!”, tão papagueado pelas classes sociais economicamente privilegiadas, foi “um dos procedimentos utilizados pela nobreza para marcar e manter sua distinção de casta; pois a aristocracia nobiliárquica afirmara a especificidade do seu próprio corpo na forma do sangue, isto é, da antiguidade das ascendências e do valor das alianças” (FOUCAULT, Livro I – A Vontade de Saber, pg. 117).

O nobre, em seu narcisismo irrefreável, quer acreditar na superioridade de seu próprio corpo, no maior valor de seu próprio sangue, na sua maior proximidade ao trono de Deus, aquele mesmo que supostamente elegeu sua raça como a eleita.

O direito divino dos reis, artigo teocrático que foi aniquilado pela secularização, na esteira das Revoluções moderna, estava conectado com a tácita suposição narcísica, por parte das classes dirigentes, de que Deus havia elegido a eles, esta elite “santa”, como dominadores legítimos. Não só apontados do céu, os poderosos diziam que pertenciam a uma super-raça, de uma sanguinidade pia, viril, sem máculas genéticas, arianamente magnífica… Sim, este tipo de pensamento é um perigo! E iria desaguar no nazismo.

A leitura de A História da Sexualidade, de Foucault, convida a pensar que o III Reich alemão (1933-1945) também merece ser lido a partir de uma perspectiva sexual, pois ali manifestou-se um bio-poder altamente controlador, disciplinador, autoritário, todo calcado e fundamentado em uma metafísica do sangue superior. E a transmissão entre as gerações dos entes de sangue superior se daria pelo controle estatal totalitário dos processos reprodutivos – com a proibição, por exemplo, dos casamentos entre judeus e arianos. Uma antessala da Solução Final.

O mito do ariano, o contraste da pureza ariana com a sujidade de raças supostamente inferiores, tudo isto acaba constituindo uma forma de racismo institucionalizado que, com a cortesia dos avanços tecno-científicos, pôde transformar-se na fábrica de cadáveres, produzidos em massa nos campos de extermínio, que marcou o século XX, A Era dos Extremos (Hobsbawn).

O racismo em sua forma moderna, estatal, biologizante […], recebeu cor e justificação em função da preocupação mítica de proteger a pureza do sangue e fazer triunfar a raça. Sem dúvida, o nazismo foi a combinação mais ingênua e mais ardilosa dos fantasmas do sangue com os paroxismos de um poder disciplinar. Uma ordenação eugênica da sociedade, uma estatização ilimitada, acompanhada pela exaltação onírica de um sangue superior; esta implicava, ao mesmo tempo, o genocídio sistemático dos outros e o risco de expor a si mesmo a um sacrifício total. E a história quis que a política hitlerista do sexo tenha se tornado irrisória, enquanto o mito do sangue se transformava no maior massacre de que os homens, por enquanto, tenham lembrança.” (FOUCAULT, Livro I – A Vontade de Saber, pg. 140).

#2) A HONRA HISTÓRICA DA PSICANÁLISE.

Foucault tem certos elogios a dirigir à Psicanálise freudiana, a começar por uma “honra política”, isto é, o fato de ter estado, “no essencial”, “em oposição teórica e prática ao fascismo.” (pg. 141)

Sigmund Freud, na sua condição de judeu em meio a uma Europa endoidecida por delírios anti-semitas que estavam então em plena em ascensão, nunca compactuou com doutrinas ou práticas dos nazis. Freud inclusive inaugurou, através de suas incursões na psicologia de massas, as vertentes mais sociológicas do movimento psicanalítico representados pelas obras, perturbadoras e valiosas, de Wilhelm Reich, Herbert Marcuse, Ernest Becker, Stanley Milgram, Otto Rank, Erich Fromm, dentre outros.

Freud foi contemporâneo de uma época na história européia de grande crescimento do racismo institucionalizado e genocida, mas segundo Foucault o Pai da Psicanálise rompeu com a “neuropsiquiatria da degenerescência”:

“A posição singular da psicanálise no fim do século XIX não seria bem compreendida se desconhecêssemos a ruptura que operou relativamente ao grande sistema da degenerescência: ela remontou ao projeto de uma tecnologia médica própria do instinto sexual, mas procurou liberá-la de suas correlações com a hereditariedade e, portanto, com todos os racismos e os eugenismos. (…) Na grande família das tecnologias do sexo, que recua tanto na história do Ocidente Cristão, (…) ela foi até os anos 1940 a única que se opôs, rigorosamente, aos efeitos políticos e institucionais do sistema perversão-hereditariedade-degenerescência.”(O Dispositivo de Sexualidade, pg. 112-113)

A filósofa e militante feminista Marcia Tiburi concorda com Foucault e reconhece certos méritos em Freud e em seus feitos históricos: para começo de conversa, Freud dispôs-se a escutar aquelas pessoas que, por tradição, estavam reduzidas ao silêncio. Prestou atenção àquelas que outros talvez desprezassem e depreciassem como se não passassem de “doidas varridas de Viena”, histéricas só dignas de um bom hospício.

Não se deve subestimar a importância de mulheres como Anna O, dentre outras que eram tratadas sob o diagnóstico de histeria, para a elaboração das teorias do grande clínico vienense: Freud percebeu, após escuta atenta e reflexão ponderada, que muitos dos conflitos psíquicos vivenciados por aquelas mulheres diziam respeito à gestão da sexualidade e que o próprio fato de pesar um tabu sobre a expressão feminina a respeito de questões sexuais acabava por produzir como efeito colateral uma série de conflitos psíquicos e sintomas psicosomáticos.

Em palavras mais simples: com aquelas mulheres, Freud aprendeu que não poder falar de sexo, ou estar proibido de praticá-lo fora dos estreitos limites do casamento burguês monogâmico, é muitas vezes um fator forte para o adoecimento psíquico. A repressão sexual imposta pela sociedade tinha que ser discutida seriamente, Freud bem o sabia, sendo que os velhos e tradicionais esquemas autoritários, como a imposição de regras ascéticas e um estilo-de-vida de “beatice” assexuada, tinham que ser postos em questão, submetendo-se ao escalpelo clínico-crítico do cientista.

Para Foucault, a Psicanálise freudiana revoluciona o estatuto da confissão, esta instituição antes tão ligada ao ambiente religioso, às práticas eclesiásticas, à exortação que as autoridades em matéria de fé faziam aos devotos para que contassem seus pecados e se colocassem à disposição das penitências.

Com Freud, a confissão vê-se radicalmente secularizada, laicizada, extraída à fórceps de seu tradicional envoltório religioso. “Em torno da Psicanálise, a grande exigência da confissão, que se formara há tanto tempo, assume novo sentido, o de uma injunção para eliminar o recalque. A tarefa da verdade vincula-se, agora, ao questionamento da interdição.” (p. 123)

#3) E O SEXO FEZ-SE VERBO

Como competente historiador que foi, Foucault sabe muito bem como contrastar diferentes períodos históricos: claramente não estamos mais “em um tempo de longa e dura repressão – o tempo de um ascetismo cristão prolongado, desviado, avaramente, impertinentemente, utilizado pelos imperativos da economia burguesa.” (pg. 148)

Foucault, diante do mundo de que foi contemporâneo, percebe uma certa queda na repressividade, uma liberação dos costumes, que manifesta-se, por exemplo, nos brados libertários de Reich e Marcuse, que tanto encontraram eco nas rebeliões políticas anti-establishment de 1968, por exemplo.

O que Foucault questiona é o aparelho social que tomou a hegemonia, vencendo a velha repressividade ascética, e que agora converte-nos em obcecados por transformar o sexo em verbo, em imagem, em signo. Imaginem um humano do futuro, que olhe para trás e observe as práticas e discursos de nós aqui-e-agora; ele talvez caia na risada e…

“…sorria lembrando que esses homens, que teremos sido, acreditavam que houvesse desse lado uma verdade pelo menos tão preciosa quanto a que tinham procurado na terra, nas estrelas e nas formas puras do pensamento; talvez cause suprema surpresa a obstinação que tivemos em fingir arrancar de sua obscuridade uma sexualidade que tudo – nossos discursos, nossos hábitos, nossas instituições, nossos regulamentos, nossos saberes – trazia à plena luz e refletia com estrépito. E se perguntará por que quisemos tanto suspender a lei do silêncio sobre o que era a mais ruidosa de nossas preocupações.” (pg. 148)

O que nos caracteriza, em contraste com a austeridade de épocas históricas anteriores, é o imperativo de falar do sexo, dedicar a ele atenção e preocupação, reconhecer nele algo de essencial na definição de nossas identidades, conceder a ele o direito de escolher os horizontes intersubjetivos em que vamos nos aventurar. A importância de Freud neste processo de lançar luz sobre o sexo não pode ser subestimada, e Foucault foi um dos que melhor reconheceu isto, apontando que

“Freud relançou com admirável eficácia, digna dos maiores líderes espirituais e diretores da época clássica, a injunção secular de conhecer o sexo e colocá-lo em discurso. Evoca-se com frequência os inúmeros procedimentos pelos quais o cristianismo antigo nos teria feito detestar o corpo; mas, pensemos um pouco em todos esses ardis pelos quais, há vários séculos, fizeram-nos amar o sexo, tornaram desejável para nós conhecê-lo e precioso tudo o que se diz a seu respeito… Incitaram-nos a desenvolver todas as nossas habilidades para surpreendê-lo e nos vincularam ao dever de extrair dele a verdade… E nos culpabilizaram por tê-lo desconhecido por tanto tempo… Os ardis da sexualidade, e do poder que sustêm seu dispositivo, conseguiram submeter-nos a essa austera monarquia do sexo, a ponto de votar-nos à tarefa infinita de forçar seu segredo e de extorquir a essa sombra as confissões mais verdadeiras.” (pg. 149)

Somos os contemporâneos, nisto, de grandes espíritos liberadores que ousaram falar abertamente sobre a sexualidade, como Stendhal, D. H. Lawrence, Anais Nin, Henry Miller, Simone de Beauvoir, Nathaniel Hawthorne, Emma Goldman, Marquês de Sade, George Bataille, Robert Crumb, dentre outros luminares do sexo que se fez verbo nas letras e nas artes em geral.

Pregações de São Paulo em Atenas, em pintura de Rafael

#4) A INVENÇÃO DA AUSTERIDADE SEXUAL

Não é simples nem fácil descobrir o culpado original pela invenção daquilo que Nietzsche chamou de ideal ascético. Certas obras valiosas já procuraram desvendar tais mistérios, dentre elas Repressão Sexual – Esta Nossa (Des) Conhecida, de Marilena Chauí. Em Michel Foucault podemos encontrar também uma genealogia detalhada sobre os processos históricos em que foi sendo gerada a austeridade sexual e os dispositivos para sua implantação e propagação.

No início do segundo livro d’A História da Sexualidade, Foucault problematiza um certo clichê dos historiadores, aquele que consiste em contrastar a moral sexual do cristianismo com a do paganismo, como se não houvesse entra uma e outra nenhuma continuidade, mas só uma série de rupturas.

Ora, parece-me que há claramente um fio condutor que une os órficos, os pitagóricos, os socráticos, os platônicos, à história do advento dum cristianismo puritano, repressor dos prazeres sexuais, que pretende gerir as condutas e impor a necessidade de obediência aos valores da austeridade, supostamente purificadora e meritória.

Foucault pretende ir além das 4 oposições costumeiras estabelecidas entre a ética cristã e aquela que a precedeu, hoje conhecida sob o rótulo depreciativo de paganismo. Trata-se, para Foucault, de problematizar o contraste entre Antiguidade e Cristandade, apontar que os contrastes e as similaridades são bem mais complexos do que o tradicional esquema, abaixo relembrado, procura nos pintar:

      1. Quanto ao valor do ato sexual, “o cristianismo o teria associado ao mal, ao pecado, à queda, à morte, ao passo que a Antiguidade o teria dotado de significações positivas”;

      2. Quanto à delimitação dos parceiros legítimos, “o cristianismo só teria aceito o sexo no casamento monogâmico e, no interior dessa conjugalidade, lhe teria imposto o princípio de uma finalidade exclusivamente procriadora”;

      3. Quanto à homossexualidade, “o cristianismo teria excluído rigorosamente as relações entre indivíduos do mesmo sexo, ao passo que a Grécia as teria exaltado – e Roma, aceito – pelo menos entre homens”;

      4. Quanto ao mérito que há na recusa às práticas sexuais, “o cristianismo teria atribuído alto valor moral e espiritual, diferentemente da moral pagã, à abstinência rigorosa, à castidade permanente e à virgindade.”

(FOUCAULT. O Uso dos Prazeres. Pg. 20)

Ora, Foucault percebe “continuidades muito estreitas que se pode constatar entre as primeiras doutrinas cristãs e a filosofia moral da Antiguidade” (Pg. 22), o que talvez dê razão à Nietzsche que, em uma sentença lapidar, afirmou ser o cristianismo equivalente a “platonismo para o povo”. Na chamada “filosofia pagã”, ou seja, no pensamento greco-romano da Antiguidade,

“já encontramos ali uma certa associação entre a atividade sexual e o mal, a regra de uma monogamia procriadora, a condenação das relações de mesmo sexo, a exaltação da continência. Não é só: em uma escala histórica bem mais longa, poder-se-ia acompanhar a permanência de temas, inquietações e exigências, que sem dúvida marcaram a ética cristã e a moral das sociedades europeias modernas, mas que já estavam claramente presentes no cerne do pensamento grego-romano.” (pg. 22)

Veja-se o caso de um sermão célebre na história da Cristandade, a extravagante pregação de São Francisco de Sales, exortando os fiéis a imitarem os elefantes, já que estes grandes animais, cheios de dignidade e bom senso, nunca trocam de fêmea e só acasalam a cada três anos, sempre realizando o ato sexual de modo reservado e secreto, para na sequência irem banhar-se em um rio, purificando-se antes de retornar ao bando (p. 24).

Ora, Foucault mostra que esta prédica, que pede aos devotos que tomem os elefantes por modelo, não é criação cristã, mas sua formulação já se encontrava em Plínio em sua Introdução à Vida Devota. O elogio aos elefantes, que não conhecem o adultério e são assim modelos para os humanos, que deveriam imitar a constância conjugal dos trombudos, não é mera extravagância de dois sujeitos isolados, um literato romano e um santo cristão, mas sim um sintoma de um certo zeitgeist, de um certo espírito-de-época que teimou em sobreviver, século após século, como Foucault bem enxerga:

“Plínio não pretendia, certamente, propor um esquema tão explicitamente didático como o de São Francisco de Sales; entretanto, referia-se a um modelo de conduta visivelmente valorizado. Isso não significa que a fidelidade recíproca dos cônjuges tenha sido um imperativo geralmente recebido e aceito pelos gregos e romanos. Mas ela constituía também um ensinamento dado com insistência em certas correntes filosóficas, como o estoicismo tardio; constituía também um comportamento apreciado como manifestação de virtude, de firmeza da alma e de domínio de si. (…) A fidelidade sexual do marido com relação à sua esposa legítima não era exigida pelas leis nem pelos costumes; não deixava de ser, contudo, uma questão que se colocava e uma forma de austeridade a que certos moralistas conferiam grande valor.” (p. 25)

Este louvor à fidelidade ainda não se tornou completamente ultrapassado e demodée no século 21 d.C. O ideal ascético ainda prossegue firme e forte entre nós, defendido a unhas e dentes pelo conservadorismo tradicionalista que ainda possui tanto poder político entre nós. É mais uma razão para nos interessarmos pelo processo de constituição destes dispositivos de transformação da sexualidade em algo ao qual deveria ser aplicada a severa terapia da austeridade e das repressões. Estamos soterrados debaixo de relatos onde os heróis são aqueles que sabem dizer não ao sexo, e somos assim solicitados a identificar a virtude, digna de nos heroicizar, como inseparável do ideal ascético:

“O herói virtuoso que é capaz de se desviar do prazer, como uma tentação na qual ele sabe não cair, é uma figura familiar ao cristianismo, como foi corrente a ideia de que essa renúncia é capaz de dar acesso a uma experiência espiritual da verdade e do amor, a qual seria excluída pela atividade sexual. Mas é igualmente conhecida pela Antiguidade pagã a figura desses atletas da temperança que são suficientemente senhores de si e de suas concupiscências para renunciar ao prazer sexual…

Para alguns essa abstenção estava ligada diretamente a uma forma de sabedoria que os colocava imediatamente em contato com algum elemento superior à natureza humana, e que lhes dava acesso ao próprio ser da verdade: tal era o caso do Sócrates do Banquete do qual todos queriam se aproximar, do qual todos se enamoravam, de cuja sabedoria todos buscavam se apropriar – sabedoria essa que se manifestava e se experimentava, justamente, pelo fato de que ele próprio era capaz de não tocar na beleza provocadora de Alcebíades. A temática de uma relação entre a abstinência sexual e o acesso à verdade já estava fortemente marcada.” (pg. 28)

Diógenes e Alexandre – Pintura de Edwin Henry

IV) SER REI DE SI PARA REINAR SOBRE OS OUTROS

As éticas da Antiguidade clássica, que pretendiam ensinar as artes da existência, prescreviam uma série de virtudes que deveriam ser praticadas em nossa conduta sexual: a sabedoria é inseparável de um sábio uso dos prazeres.

“Um princípio geralmente admitido é o de que quanto mais se for visado, mais se tiver ou se quiser ter autoridade sobre os outros, mais se buscar fazer de sua vida uma obra resplandecente, cuja reputação se estenderá longe e por muito tempo, mais será preciso se impor, por escolha e vontade, princípios rigorosos de conduta sexual.” (H.S., II, pg. 75)

Para ser digno de estima social, tornando-se um cidadão respeitável e decente, o sujeito não deve nunca ser escravo de seus desejos e prazeres, mas deve mantê-los sob domínio. A virtude da temperança (sophrosyne) adquire então vasta importância e “é representada com grande regularidade entre as qualidades que pertencem – ou que pelo menos deveriam pertencer – não a todos e a qualquer um, mas, de forma privilegiada, àqueles que têm posição, status e responsabilidade na cidade.” (op cit, pg. 76)

Platão recomenda à elite que seja temperante, o que torna legítima sua autoridade sobre a República, constituída infelizmente por uma multidão viciosa, incapaz de auto-controle, dominada pelas paixões e pelos sentidos. A utopia de cidade concebida por Platão é explicitamente elitista, aristocrática, onde uma minoria que exercitou-se na ascese é considerada digna de reinar sobre a multitude. O filósofo-rei tem como base de sua autoridade a afirmação de sua maior aptidão para o auto-controle, o que lhe daria a prerrogativa de controlar os outros. Os que dominam a si mesmos devem ter o direito de dominar os outros.

Foucault aponta que há toda uma “relação agonística”, de combate, de disputa, que estabele-se entre o sujeito e seus próprios desejos, o que é particularmente explícito em toda a tradição ascética, na qual estão incluídos como dois dos mais ilustres representantes Sócrates e Platão.

Neste contexto dos filósofos ascetas gregos, os aphrodisia são um perigo a ser combatido, a ser resistido, a ser dominado. E isso porque, de acordo com a bipartição hierárquica entre alma (boa) e corpo (ruim), é necessário fazer a guerra contra os desejos e prazeres carnais “porque se trata de apetites inferiores que nós compartilhamos – como a fome e a sede – com os animais; mas essa inferioridade natural não seria em si mesma uma razão para combatê-la se não fosse o perigo de que, predominando sobre todo o resto, elas estendessem sua dominação sobre todo o indivíduo, reduzindo-o, finalmente, à escravidão.” (pg. 83)

Será que aqui encontramos nossa velha conhecida, a repressão sexual, travestida com as vestes suntuosas de uma suposta sabedoria? O temor em relação ao corpo e suas energias, os arroubos puritanos contra os prazeres da carne, tudo isso manifesta-se nesta atitude, que muitos filósofos recomendam, de uma ascese que entra em guerra contra tudo aquilo que é tido como manifestação de animalidade. Dizer sim, sem freios, aos ímpetos sexuais, será insistentemente descrito, através da história da ética ascética, como conduta indigna do ser humano. Os hedonai, os aphrodisia, tornam-se então os inimigos, os adversários:

“Isso traduz-se em uma série de expressões empregadas tradicionalmente para caracterizar a temperança e a intemperança: opor-se aos prazeres e aos desejos, não ceder a eles, resistir às suas investidas ou, ao contrário, deixar-se levar por eles, vencê-los ou ser vencido por eles, estar armado ou equipado contra eles. Ela também se traduz por metáforas como a da batalha a ser travada contra adversários armados, ou como a da alma-acrópole, atacada por uma tropa hostil, e que deveria se defender graças a um sólido destacamento… Também se exprime através de temas como o das forças selvagens do desejo que invadem a alma durante o sono.” (pg. 83)

A cisão dualista entre corpo e alma, e além disso sua hierarquização, conduz à noção fundamental para a ética socrática-platônica de que o melhor deve dominar o pior, o superior deve reinar sobre o inferior, a alma deve ter supremacia sobre o corpo – como faz um cocheiro que traz seus cavalos sob rédeas e nunca permite as rebeldias eqüinas. Foucault pondera:

“A assimilação dos desejos a um povo inferior que se agita e que sempre está procurando se revoltar se não se lhes mantém a rédea, é um tema conhecido em Platão. (…) No final do penúltimo livro da República, após construir o modelo da cidade, Platão reconhece que o filósofo terá muito pouca oportunidade de encontrar nesse mundo Estados tão perfeitos e de neles exercer a sua atividade; entretanto, o ‘paradigma’ da cidade se encontra no céu para quem quiser contemplá-lo; e o filósofo, olhando-o, poderá ‘dirigir seu governo particular’: ‘Pouco importa que esse Estado esteja realizado em alguma parte ou que esteja ainda por se realizar: é desse Estado e de nenhum outro que ele seguirá as leis.’” (Pg. 89)

Como profundo conhecedor do pensamento grego clássico, Foucault sabe reconhecer, em especial na tradição proveniente de Sócrates, “o tema insistente e importante da askesis, como preparação prática indispensável para que o indivíduo se constitua como sujeito moral” (pg. 95). Nas Memoráveis de Xenofonte, por exemplo, encontramos ditos de Sócrates como: “em que o homem intemperante supera o mais estúpido dos animais?” (pg. 99) Em Platão, de modo similar, critica-se os “fracos” que “não podem comandar as suas feras interiores”:

“Ora, o que fazer se quisermos que esse homem seja regido por um princípio racional como aquele que ‘governa o homem superior’? O único meio é colocá-lo sob a autoridade e o poder desse homem superior: ‘Que ele se faça escravo daquele em quem o elemento divino comanda’. Quem deve comandar os outros é aquele que deve ser capaz de exercer uma autoridade perfeita sobre si mesmo. (…) A temperança entendida como um dos aspectos de soberania sobre si é, não menos do que a justiça, a coragem ou a prudência, uma virtude qualificadora daquele que tem a exercer domínio sobre os outros.” (p. 100)

O platonismo tem algo de teocracia e totalitarismo: só os homens “superiores”, ou seja, aqueles capazes de exercer a ascética da auto-dominação, devotando-se ao conhecimento puro e reprimindo os desejos carnais, têm o direito legítimo de dominar a gestão da cidade. Quem reina sobre si deve reinar sobre os outros. O mau tirano é aquele que não domina as próprias paixões, abusando do próprio poder e causando violências a seus súditos. O bom tirano é aquele que, dominando seus próprios tesões, mantendo sob rígidas rédeas as suas luxúrias e ganâncias, ganharia sim o direito de mandar na multitude.

Porém, a tirania platônica do filósofo-rei é intragável para qualquer um que ame a liberdade, a autonomia, a participação coletiva na determinação dos destinos coletivos, a democracia. Pois do proto-totalitarismo de A República (Politeia) até o imperialismo alexandrino (típico de quem mamou nas tetas de Aristóteles, o célebre discípulo de Platão) há um fio conector. E nós, como Foucault em seu Coragem da Verdade, desejamos estar não entre aqueles que caem de joelhos e fazem apologias tolas ao poderio de Alexandre, mas entre aqueles que, como Diógenes, ousaram viver diferente – e disseram verdades ao poder (to speak truth to power é a nova encarnação da parrusía grega).

Trata-se, para nós, como Foucault nos ensina, de destronar este “bom tirano” platônico-aristotélico, esta velha justificação da tirania e do imperialismo, e ir em direção a uma outra sociedade possível, pós-ascética e pós-autoritária, cultivadora de um sábio cultivo dos prazeres relacionais que tem no Jardim de Epicuro uma de suas mais significativas prefigurações utópicas. Tenho a convicção de que não a construiremos juntos sem a sabedoria que pode nos propiciar o aprendizado na companhia da obra e vida de Michel Foucault, este grande iluminador da sexualidade e suas adjacências.

Por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro

PARA ALÉM DO MEDO COMO AFETO SOCIAL DOMINANTE: Crítica do filme “A Vila” (2004) de Shyamalan, com Bauman, Safatle e Spinoza


Sobre o medo, pode-se sempre questionar: ele é justo e legítimo, ou seja, corresponde a um perigo real? Ou é inculcado de fora por aqueles que tem interesse em ver-nos trêmulos e acovardados?

O medo pode ser aquele afeto visceral que nos toma diante de um encontro inesperado com um tigre na selva, e que nos dá o ímpeto imprescindível da fuga que pode salvar nossa vida. Mas o medo também pode ser um afeto socialmente implantado, algo a que somos condicionados pelas ideologias de nosso entorno, em especial por aqueles que querem nos vender imóveis em condomínios fechados, seguros de vida ou revólveres para defesa pessoal.

Grandes pensadores e críticos de nosso contexto contemporâneo, como Zygmunt Bauman e Vladimir Safatle, tem destacado o quanto vivemos sob regimes sócio-políticos de cassino-capitalismo em que os mercados e Estados apostam as suas fichas no medo como afeto dominante. A insegurança pública ligada à violência urbana pode servir para um boom da indústria de segurança privada: altos lucros para empresas que vendem câmeras de segurança, carros blindados, apartamentos que são como fortalezas militares inexpugnáveis.

Paralelamente, governos podem justificar medidas autoritárias – da xenofobia islamofóbica de Trump à intervenção militar de Temer no Rio de Janeiro – com a noção de que é tudo feito para aumentar a segurança do cidadão-de-bem contra as forças do mal, hoje cada vez mais encarnadas pelos gestores do capitalismo nas figuras demonizadas de narcotraficantes, migrantes e refugiados – Os Estranhos À Nossa Porta, para lembrar de um livro atualíssimo de Bauman.

O filme de M. Night Shyamalan, A Vila (The Village, 2004), propõe uma trama que serve de emblema para uma sociedade que retira sua coesão do medo: isolados do mundo, sem contato com outras cidades, os cidadãos são desde o berço ensinados a temer Aqueles De Quem Não Falamos, criaturas temíveis que habitam na floresta ao redor.

Espalhando a farsa, os anciãos que governam a Vila pretendem permanecer isolados do mundo, sem contatos com uma alteridade considerada perigosa. O filme nos conta que os fundadores desta comuna isolacionista foram todos marcados por traumas vinculados à violência nas grandes cidades, perderam entes queridos em latrocínios ou sequestros. A solução que encontraram foi uma espécie de fuga para o meio do mato, onde pudessem viver sossegados.

Mas as aparências enganam: o que parecia ser um pacífico vilarejo vai se mostrando como uma sociedade do apartheid racial, onde vivem somente brancos (notem: não há nenhum ator negro no filme!), onde ninguém que se pareça minimamente com um estrangeiro – árabe, latino ou oriental – tem direito de cidadania. Também descobrimos, conforme a trama progride, que eles não estão exatamente em um local rodeado por natureza selvagem, mas sim entre os muros de uma mega-reserva ambiental chamada Walker, cujas fronteiras são defendidas por guardas armados.

Desde que assisti ao filme de Shyamalan pela primeira vez, fiquei pensando que ele instiga reflexões importantes sobre o tema da ideologia, em especial das ideologias que disseminam o terror como instrumento de controle social. Tanto é assim que A Vila poderia ter entrado na galeria de filmes comentados de modo tão penetrante, provocativo e cheio de bufonaria por Slavoj Zizek nos filmes O Guia Pervertido do CinemaO Guia Pervertido da Ideologia, dirigidos por Sophie Fiennes.

Os fundadores da vila isolacionista usam os monstros como espantalhos: querem povoar o entorno com terrores para que ninguém se arrisca a fugir da comunidade. Pensam que assim vão deixar bem longe os horrores do mundo e habitar numa pequeno enclave utópico de paz perpétua. Estão redondamente enganados.

Aquilo que Platão recomendava aos gestores da República, o uso de uma “fraude pia” (pia fraus), é também mobilizada pelos governantes da Vila inventada por Shyamalan. Porém a violência traumatizante irrompe na cena – e não vem de fora da comunidade, mas de dentro. As facadas infligidas pelo idiota-da-aldeia (interpretado por Adrien Brody) contra Lucius (Joaquin Phoenix) irão acarretar um terremoto nas regras e costumes locais.

O crime vai lançar a heroína Ivy Walker (interpretada por Bryce Dallas Howard, a mesma atriz que fez Grace em Manderlay) em uma jornada arquetípica: apesar de sua cegueira, ela irá enfrentar o seu medo dos monstros da floresta na busca desesperada pelos medicamentos de que precisa seu amado Lucius, agonizante numa cama.

Ela será, antes da aventura, informada por seu pai e mentor (William Hurt) de toda a farsa ideológica que envolve Aqueles De Quem Não Falamos, que de fato não passam de scarecrows utilizados pela casta dominante. É como se o pai-mentor iniciasse a filha nos mistérios da política, ou mesmo da teocracia, revelando: não há razão para medo legítimo pois o perigo é imaginário.

A heroína, encarando às cegas o território tão temido por todos aqueles que são crédulos cúmplices da ideologia dominante, irá rumo às cidades, atravessando os woods que sempre foram território proibido. É brilhante a cena em que o idiota-da-aldeia, esfaqueador de Lucius, depois de ter escapado de seu cárcere, ataca Ivy na mata. Ela dribla o monstro com malandragem de Garrincha. E o filme aproveita para sugerir que não existem monstros a não ser os seres humanos nas monstruosidades que fazem uns com os outros.

Por isso eu até ousaria dizer que esta obra de Shyamalan tem efeito desmistificador. Não há monstros sobrenaturais ou fantasmas incorpóreos, há só manipulação ideológica de espantalhos e os velhos afetos humanos que nos lançam às discórdias sangrentos. Nós somos os monstros de nós mesmos, o que parece reativar o velho mote, tão mobilizado na argumentação Hobbesiana do Leviatã: o homem é o lobo do homem. Aliviando esta estirpe de pessimismo misantrópico, o filme sugere também o inverso: que é a força do amor, corajoso e perseverante, tateando nas trevas que nos rodeiam, que faz do humano o bálsamo do humano.

A sociedade que se queria isolada, segregada, branquíssima, xenófoba, confinada em seu bunker, vivendo sempre os muros deste condomínio de alta segurança, enfim parece acordar para a verdade: a violência, nas relações humanas, não é integralmente extirpável. Um dos anciãos irá concluir: “Heartache is a part of life.” A jornada heróica de Ivy furou a tela protetora da ideologia do medo e lançou os raios de luz de uma utopia inversa: a do amor que ousa confrontar os interditos dos velhos gestores do terror.

A cega é aquela que vê melhor: sabe que os monstros foram inventados para que os cidadãos ficassem paralisados em suas covardias, isolados em seus pequenos bunkers, na idiotia hoje epidêmica dos que se encerram no âmbito do privado e recusam a esfera pública (a própria origem da palavra idiota, que vem do grego idiotes, está diretamente conectada à noção de indivíduo que recusa participação em uma sociedade mais ampla, encerrando-se na idiotia de seu círculo estreito de relações domésticas, como bem explorado pela Maria Cristina Franco Ferraz em Homo Deletabilis).

O filme A Vila, de Shyamalan, pode ser debatido em parceria com Bauman, Safatle, Zizek: é uma obra cinematográfica que fala sobre violência, traumas e utopias baseadas na lógica do condomínio (não muito diferente de um bunker para privilegiados) e na mixofobia (o horror à mistura e à miscigenação que Bauman teorizou tão bem). Mas também pode nos lembrar da filosofia política de Spinoza, que sempre recomendou a superação dos afetos tristes – entre eles o medo e a esperança – por afetos mais potentes: a amizade e a segurança.

O fim último do Estado, diz Spinoza, deve ser “libertar o indivíduo do medo a fim de que ele viva, tanto quanto possível, em segurança, isto é, a fim de que mantenha da melhor maneira, sem prejuízo para si ou pra outros, o seu direito natural a existir e a agir.” (Tratado Teológico-Político). Como explica Safatle, esta visão spinozista contrasta com aquela de Hobbes:

“Em Hobbes, o Estado se coloca como gestor da insegurança social, seu poder será sempre dependente da capacidade de fazer circular o medo como afeto social imanente às relações entre indivíduos. Já na obra de Spinoza, a segurança é o resultado de duas operações centrais: a moderação das paixões em relação aos bens incertos da fortuna, ou seja, o controle dos que ‘desejam sem medida’, e a conservação e ampliação das circunstâncias que estão sob nosso poder, o que fornece ‘os instrumentos de estabilização da temporalidade, ou seja, instituições políticas que estão e permanecem em poder dos cidadãos e da coletividade.'” (Safatle, O Circuito dos Afetos, p. 101)

Para além do Leviatã que nos aterroriza, não muito distante do Estado platônico e sua pia fraus, Spinoza nos convida a pensar numa comuna livre do medo, baseada na confiança, na amizade, no auxílio mútuo, cujo protótipo, na história da filosofia, foi oferecido pelo Jardim de Epicuro e cuja utopia foi avançada nos últimos séculos por pensadores anarquistas como Elisée Réclus e Piotr Kropotkin.

“Quanto mais nos esforçamos por viver sob a condução da razão, tanto mais nos esforçamos por depender menos da esperança e por nos livrar do medo, por dominar, o quanto pudermos, o acaso, e por dirigir nossas ações de acordo com o conselho seguro da razão”, explica Marilena Chauí (Desejo, ação e paixão em Spinoza, Cia das Letras, p. 321).

Viver sob a condução da razão implica uma política onde lutemos contra o reinado da superstição e seu cortejo de horrores. Ou seja, é preciso derrubar do governo o Medo e da Esperança, trazer abaixo as ideologias teocráticas que nos inculcam noções de Céu e Inferno post mortem, cessar de fazer do temor e da insegurança os afetos sociais dominantes, na construção difícil mas possível de uma comuna da philia, como queriam os epicuristas, ou do auxílio mútuo, como querem os anarquistas.

Prossegue a sempre atual oposição entre a biophilia e a tanatopolítica de que falam, cada um a seu modo, Paulo Freire, Erich Fromm e Björk. O medo nos segrega, o amor nos une; a injustiça social nos conduz aos bunkeres do segregacionismo, e só a justiça social tornaria plausível a comuna biophílica onde poderíamos largar lanças e escudos em prol dos abraços desarmados entre amigos.

Por Eduardo Carli de Moraes
Para A Casa de Vidro
11 de Março de 2018
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VÍDEOS SUGERIDOS:

Desafios, dilemas e descaminhos da democracia representativa na obra de Luis Felipe Miguel (Ed. Unesp, 2013) – Por Eduardo Carli de Moraes @ A Casa de Vidro

por Eduardo Carli de Moraes / A Casa de Vidro / Novembro de 2016

Para refletir profundamente sobre a democracia, seus descaminhos e dilemas, suas aspirações e esperanças, conheço poucas companhias melhores do que a do excelente pensador político brasileiro Luis Felipe Miguel. Neste livraço que é Democracia e Representação – Territórios em Disputa (Editora Unesp, 2013) ele revela o quanto a democracia é desafiadora, problemática:

“São ao menos quatro problemas fundamentais, estreitamente ligados entre si”, afirma Luis Felipe Miguel: “(1) a separação entre governantes e governados, (2) a formação de uma elite política distanciada da massa, (3) a ruptura do vínculo entre a vontade dos representados e a vontade dos representantes e, por fim, (4) no caso da representação de tipo eleitoral, a distância entre o momento em que se firmam os compromissos com os constituintes (a campanha eleitoral) e o momento do exercício do poder (o exercício do mandato).”  (MIGUEL, p. 15-17)

terra-em-transeUm exemplo da problematicidade do poder político e do difícil desafio de instaurar um regime autenticamente democrático está em Terra em Transe, o filme de Glauber Rocha, lançado em 1967, em que populismo e a demagogia do tirano elitista dá o que pensar sobre o problema (4) mencionado acima: “Como responderia o governador eleito às promessas do candidato?”, pergunta o personagem do poeta Paulo Martins.

Excelentemente destrinchado na obra do crítico de arte Ismail Xavier, Terra em Transe põe o espectador diante de um xadrez-do-poder que nos permite refletir sobre o quadrilátero problemático evocado por Miguel. Sabe-se que Glauber inspirou-se na figura de José Sarney, documentado pelo cineasta em Maranhão 66 ainda como jovem líder populista em ascensão, tomando posse como governador de seu Estado, para evocar em Terra em Transe um cenário de golpe de Estado, em que um líder elitista, Diaz, planeja governar apartado do povo, sem vínculo com a vontade dos representados.

A hierarquia política de Eldorado nada tem de democrática. O filme de Glauber é irremediavelmente um fruto da ditadura militar brasileira e busca criticá-la de modo mordaz. Emblemática é a cerimônia de coroação em que “os súditos do reino levantam suas espadas para saudar o novo monarca, todos vestidos como serviçais do Antigo Regime”, “condensando numa cena a estratégia alegórica de Glauber. Representa o chefe de Estado como um rei portador dos emblemas do poder absoluto (a coroa, o cetro, o manto).” (XAVIER, p. 68 de Alegorias do Subdesenvolvimento) 

Diaz, triunfante, em uma cena altamente alegórica e intensamente memorável, é descrito junto com os sustentáculos de seu poder: “o líder do golpe de estado desfila triunfante, em carro aberto, pela capital de Eldorado. Diaz (o branco europeu) chega às praias de Eldorado, acompanhado do conquistador ibérico e do padre, observado pelo índio, e junto a uma enorme cruz na praia celebra a primeira missa.” (op cit, p. 87)

Ou, trocando em miúdos, digamos que, diante de quaisquer de nossos representantes políticos podemos perguntar: qual o tamanho do abismo entre o que ele prometeu e o que ele irá entregar? Como evitar que a democracia degringole num circo das promessas ilusórias tão criticado sob o nome de demagogia?

No Brasil, atravessamos neste turbulento ano de 2016 mais uma fase crítica de exacerbação da crise de representação política. A noção de que o establishment político é corrupto até o osso, viciado até o tutano, que quase ninguém no Congresso Nacional nos representa, atingiu novos cumes com a recente onda de vômito cívico gorfado sobre Michel Temer e Eduardo Cunha, por exemplo. Mas manifesta-se explicitamente também nas urnas, no altíssimo índice de votos brancos e nulos nas eleições, no horror que tantos de nós sentimos diante da hegemonia parlamentar das Bancadas “BBBB” (Boi, Bala, Bíblia e Banco), a corja golpista e plutocrática que acaba de lançar a Democracia, estuprada, para escanteio. Não é piada, é verdade: no Brasil, tem muito candidato eleito que perdeu as eleições para um cabra chamado Ninguém… “Ninguém” é um dos políticos mais populares da pátria.

A catástrofe do sistema de representação política hoje vigente, a contestação deste status quo por parte da militância social (reformista ou revolucionária), está no zeitgeist brasileiro em doses talvez muito mais intensas do que as manifestações de descontentamento que por vezes afloram no Norte da América com algo como o Occupy Wall Street (2011) ou nos riots à la Ferguson que, para além da indignação justa contra a brutalidade policial e o racismo institucionalizado, também são revoltas contra o sistema político estabelecido (stablishment).

“No segundo turno das eleições presidenciais de 2010, no Brasil, 21,5% dos eleitores registrados se abstiveram, o maior índice desde a redemocratização do país. Dos votos contados, 6,7% foram em branco ou nulos. Somem-se a isso os mais de 2 milhões de pessoas em idade de votar que não se alistam (o registro é opcional para analfabetos e jovens entre 16 e 18 anos). No final das contas, quase 30% dos brasileiros em idade de votar desprezaram o direito de escolher a nova presidente da República.” (p. 99)

A crítica deste “sistema que não nos representa” é algo que não nasceu nas Jornadas de Junho de 2013 nem vai morrer com a Primavera Secundarista de 2016. É toda a problemática da “representação”, nas democracias, aquilo que Miguel permite-nos sondar, em profundidade, em sua obra. Debatendo com a obra de Hanna Pitkin (1967), ele mostra que a polissemia, a pluralidade de sentidos, do termo representar merece uma reflexão mais demorada:

“Fazer passar-se por outra pessoa é representar (a atriz representa sua personagem); defender os interesses de outra pessoa é representar. Um quadro de Van Gogh representa um vaso de girassóis, indicando-se aí uma relação de mímese com o objeto representado. Mas uma bandeira representa o país sem que se estabeleça qualquer continuidade desse tipo, por mera convenção. Acrescente-se uma última distinção com inegável repercussão nos debates políticos sobre a representação política: uma amostra aleatória de uma população é representativa, no sentido estatístico.” (p. 18)

POLISSEMIA DAS REPRESENTAÇÕES

Elizabeth Taylor representando Cleópatra

Elizabeth Taylor representando Cleópatra

Van Gogh

Van Gogh “representa” um vaso de girassóis

“Lula, representante do povo brasileiro”

René Magritte, em um quadro irônico que foi recentemente reformulado em homenagem-escracho a Michel Temer, expõe numa imagem pedagógica um pouco da complexidade envolvida no conceito de representação. “Isto não é um cachimbo” (“Ceci n’est pas un pipe”), frase que ele escreve logo abaixo do desenho (da representação) de um cachimbo, revela o abismo entre a linguagem e a coisa.Quando paramos para refletir sobre os problemas da representação política, ou seja, uma manifestação específica da representação, não é possível separar a reflexão linguística da reflexão política, não há segregação possível entre mídia e poder.

Sobram ocasiões em que o representante político pode muitas vezes estar representando em vários diferentes sentidos: no sentido de Elizabeth Taylor quando encarna Cleópatra (Eduardo Cunha estava representando Scarface ou Don Corleone?); similarmente, a palavra representação pode evocar a prática de uma encenação, de um fingimento, de um jogo-de-cena, de um interesseiro e manipulatório mise en scène midiático, como quando dizemos que figuras com Berlusconi, Trump ou Temer “representam” diante das câmeras uma persona que é forjada para o programa eleitoral.

No debate político, outro sentido de representação também aparece frequentemente, em que “estar representando um grupo social” é usado no sentido de “falar em nome de outros”, de ser a expressão singular de um grupo coletivo, como nas frases “Lula, um ex-operário, representa o operariado que chegou à Presidência da República” ou “Jean Wyllys representa a população LGBT na Câmara dos Deputados”. “A polissemia da palavra [representação] faz com que a ideia de representação política seja contaminada pelos diferentes usos nas artes visuais, nas artes cênicas, na literatura e no campo jurídico, entre outros.” (MIGUEL. p. 117)

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Ren? Magritte, The Treachery of Images, 1928–29, Restored by Shimon D. Yanowitz, 2009

Magritte.

Em seu capítulo “A Democracia Elitista”, paradoxal desde seu título, Luis Felipe Miguel explicita as vísceras contraditórias de um sistema político que se pretende, a um só tempo, democrático e gerido por uma elite. Lê-lo faz lembrar, com saudosismo, do falecido Eduardo Galeano, conhecedor profundo das Veias Abertas da América Latina, que ensinava que as eleições atuais, ditas democráticas, muitas vezes só nos permitem escolher com que molho seremos cozinhados.

vomitoMuitas vezes, no “cardápio eleitoral”, só encontramos pratos que nos enchem de repugnância, que de modo algum nos abrem o apetite. Pelo contrário: assistir na TV o horário eleitoral não é muito recomendável para quem acabou de comer pois dá engulhos e pode acabar em vômito. Só nos permitem escolher entre diferentes membros da elite – a um só tempo econômica e política, dotada da conjunção de capital financeiro e cultural, simultaneamente ricos e cheios de prestígio – e quando alguém de classes subalternas começa a atingir, pelo voto, degraus mais altos da pirâmide, ou mesmo alça-se a alturas palacianas, não tardam para que forças se congreguem para, com ou sem tanques e tiros, golpeá-lo e derrubá-lo.

“O pensamento elitista, na sua feição contemporânea, nasce em oposição às correntes igualitárias da modernidade. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, ergueu-se um importante corpo de reflexões políticas que afirmavam a possibilidade e necessidade de maior igualdade nas sociedades, expresso em pensadores como Rousseau, Fourier, Proudhon ou Marx, que, de diferentes maneiras, propugnavam uma sociedade equitativa.

Mas o fantasma da igualdade não estava encarnado apenas em teorias. Na Europa começava a haver, de fato, uma democratização da vida social, sobretudo desde que a classe operária irrompeu com face própria na cena política, com a Revolução de Fevereiro de 1948, na França. Antigos privilégios foram questionados e perderam sustentação legal. O direito ao voto foi paulatinamente estendido até se alcançar o sufrágio universal masculino… Em suma, as estruturas aristocráticas foram sendo corroídas. Uma das análises mais perspicazes do processo foi feita por Alexis de Tocqueville, no clássico A democracia na América (1835-1840).” (MIGUEL, p. 31-32)

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Na contra-mão destas correntes políticas que defendem o igualitarismo, a justiça social, o equilíbrio, a equanimidade, o direito de participação na decisão dos rumos coletivos, o pensamento elitista argumenta pela impossibilidade ou pela indesejabilidade da democracia, o “governo do povo”. Obviamente, o elitismo não é fruto da história recente – é coisa velha, velhíssima, e que infelizmente ainda parece conservar o frescor da juventude ao invés de declinar rumo à morte como é destino da velhice. A definição mais simples de “elitismo”, diz Miguel, é a ideia de que a desigualdade é “natural” e “eterna”:

“No seu sentido corrente, o elitismo pode ser descrito como a crença de que a igualdade social é impossível, de que sempre haverá um grupo naturalmente mais capacitado detentor dos cargos de poder. Não se trata de ideia nova: o sonho de Platão na República, com a divisão de castas (de acordo com a capacidade de cada uma), reflete essa visão, bem como a crença de Aristóteles na existência de ‘escravos por natureza’. A palavra ‘natureza’ é crucial: para o elitismo, a desigualdade é um fato natural. Isto está na raiz da atração que esse pensamento tem sobre aqueles que ocupam posições de elite. Em vez de estarem nestas posições como fruto do acaso, de contingências ligadas à estrutura da sociedade e aos padrões de dominação nela vigentes, seriam recompensados por seus méritos intrínsecos.” (MIGUEL, p. 33)

Já se destacou algumas vezes que Platão, apesar de ter chamado sua sociedade ideal de República, fantasia sobre uma aristocracia monárquica, onde o Filósofo Rei – aquele que tem o mérito superior de sua Razão límpida, ascética, descolada das paixões e seus delírios – há de reinar sobre a multidão ignara, presa dentro da caverna das atrações sensíveis e dos prazeres carnais. O platonismo não tem nada de democrático: instaura a tirania dos que pensam que sabem, bota no poder os que se consideram donos da verdade, e nada tem a conceder, em termos de participação igualitária na definição dos destinos da pólis, às mulheres, aos estrangeiros e aos escravizados (numericamente, a maioria da população de uma cidade dita “democrática” como a Atenas de que Sócrates e Platão foram contemporâneos). O elitismo platônico incide sobre o elitismo aristotélico, que marcará o elitismo escolástico e todas as teocracias monárquicas baseadas no princípio de que devemos ser governados pela casta dos melhores, dos mais sábios, dos que conseguem chegar mais perto de Deus ou da Verdade…

Miguel reconhece e analisa novas modalidades do pensamento elitista no pensamento mais recente – em Ortega Gasset (autor de A Rebelião das Massas) e em Friedrich Nietzsche (que foi de fato um crítico feroz daquelas correntes democratizantes e socialistas que pôde conhecer em sua época e em seu espaço social – porém, demonstra desconhecimento total do marxismo e suas críticas não parecem incidir sobre a teoria e práxis formuladas por Marx e Engels…).

Miguel sonda as raízes daquilo que hoje se conhece pelo nome de meritocracia, ou o governo do mérito, mais recente embrulho para um velho conteúdo: elitismo, elitismo, elitismo…

“Se uma pessoa pensa que tem acesso a determinados bens materiais ou culturais, inatingíveis para boa parte da população, como uma recompensa por suas qualidades inerentes, isto lhe dá um reconfortante sentimento de superioridade, acompanhado do desprezo pelas que não são tão boas. Ela poderia pensar diferente; que estar na universidade, por exemplo, num país de analfabetos, significa que foi privilegiada por uma série de circunstâncias – e então, ao invés da sensação de superioridade, poderia vir um sentimento de responsabilidade social. Mas é muito mais gratificante, para o indivíduo que pertence à elite, olhar para a balconista da loja, para a operária, para a engraxate e pensar ‘puxa, como sou superior’ do que refletir que um pequeno acidente de percurso poderia inverter as posições.

A fruição estética é extremamente importante para gerar esse sentimento de superioridade: o intelectual que lê Proust e ouve Bach menospreza a massa que consome programas de auditório e livros de autoajuda. Isto seria fruto de uma sensibilidade mais apurada, inata. Daí provém o fascínio que muitos artistas e escritores sentiram pelo elitismo, inclusive em sua versão mais extrema, fascista. Ezra Pound, T.S. Eliot, W. B. Yeats, Salvador Dalí, Louis Ferdinand Céline, Knut Hamsun são apenas alguns nomes de uma longa lista. Há um poema de D. H. Lawrence que reflete bem a postura; um dos versos afirma: ‘a vida é mais vívida em mim do que no mexicano que conduz minha carroça’…” (p. 33)

Esta oposição entre democracia e elitismo parece-me interessante para pensar muitos dos problemas políticos contemporâneos e L. F. Miguel mostra em sua obra o quanto esta tensão já existia nas origens gregas da democracia, do kratos (poder) do demos (povo). O que é curioso, no caso da Atenas onde afirma-se comumente que a democracia calhou por nascer, é que por lá o sistema democrático tinha necessariamente uma dimensão de sorteio:

 “a própria instituição da eleição era vista, da Antiguidade ao século XVIII como oposta ao ordenamento democrático, que pressupunha a igualdade entre os cidadãos e, portanto, devia utilizar o sorteio como forma de escolha dos governantes. Mais importante, porém, é o fato de que, em nenhum dos regimes hoje aceitos como democráticos, o povo realmente governa. As decisões políticas são tomadas por uma minoria fechada, via de regra mais rica e mais instruída do que as cidadãs e cidadãos comuns, e com forte tendência à hereditariedade. Tudo isso está longe da concepção normativa que a palavra ‘democracia’ continua a carregar: uma forma de organização política na igualdade potencial de influência de todos os cidadãos, que concede Às pessoas comuns a capacidade de decidirem coletivamente seu destino. Está longe, também, da experiência clássica. Sobre a Atenas dos séculos V e VI a.C., é possível dizer que, em alguma medida, o povo governava – se entendemos por “povo” o conjunto dos cidadãos, que não incluía a maior parte da população (mulheres, escravos e metecos).” (p. 29)

Obviamente, não existe igualdade entre cidadãos para influenciar os destinos públicos quando vivemos em uma sociedade onde os acessos diferenciais aos meios de produção, ao capital cultural e às tecnologias massmidiáticas geram as fraturas sociais que tão bem conhecemos e que, de modo bem didático, o movimento Occupy Wall Street resumiu assim: a batalha entre o 1% e os 99%. A extrema concentração de capital em poucas mãos, conectada à miséria a que são condenados centenas de milhões de espoliados, faz da grande maioria dos países neste mundo que auto-intitulam-se “democráticos” uma fraude hipócrita, onde a igualdade existe como forma vazia, mas não como conteúdo real do espaço social.

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A crise de representação política é a constatação dos limites, muito estreitos e insatisfatórios, da democracia representativa quando enquadrada detrás das grades do liberalismo burguês. “O descontentamento com o desempenho das instituições democráticas se alia a uma firme adesão aos princípios da democracia, que se funda na constatação sensata de que as instituições atualmente existentes privilegiam interesses especiais e concedem pouco espaço para a participação do cidadão comum, cuja influência na condução dos negócios públicos é quase nula. Em suma, de que as promessas da democracia representativa não são realizadas.” (p. 103)

Luis Felipe Miguel lembra das teorizações do sociólogo C. Wright Mills, em especial seu livro A Elite do Poder, em que o autor tornava explícito que, “por trás da fachada democrática e dos reclamos rituais de obediência à vontade popular, cristaliza-se o domínio de uma minoria que monopolizava todas as decisões-chave. Os 3 pilares da elite do poder eram os grandes capitalistas, os principais líderes políticos e os chefes militares. Graças a mecanismos de integração, que geravam uma visão de mundo unificada e interesses compartilhados, formavam uma única elite, dividida em três setores, e não três grupos concorrentes… A perspectiva de Wright Mills coincidia com a denúncia marxista quanto ao caráter meramente ‘formal’ da democracia burguesa.” (p. 109)

A democracia representativa burguesa pode até fornecer a ilusão de que é igualitária, pois o voto do pobretão analfabeto vale, em tese, o mesmo que o voto do empresário CEO de multinacional. Porém, o pobretão analfabeto não só não tem como candidatar-se a cargo público, como tampouco tem a mínima chance de vencer o pleito. Ademais, suas preferências políticas, longe de serem uma decisão independente e autônoma do sujeito que delibera racionalmente, são moldadas e manipuladas por um aparato midiático que, como sabemos muito bem, tem dono e é gerido pela grana. Os donos da mídia: eis figuras que não podemos ignorar se quisermos compreender a crise da representação política, o colapso de nossas democracias de baixa intensidade e a ascensão de um novo tipo de fascismo “teleguiado”, midiaticamente induzido.

“A mídia é, de longe, o principal mecanismo de difusão de conteúdos simbólicos nas sociedades contemporâneas e, uma vez que inclui o jornalismo, cumpre o papel de reunir e difundir as informações consideradas socialmente relevantes. Todos os outros ficam reduzidos à condição de consumidores de informação. Não é difícil perceber que a pauta de questões relevantes, postas para a deliberação pública, deve ser em grande parte condicionada pela visibilidade de cada questão nos meios de comunicação. A mídia possui a capacidade de formular as preocupações públicas. Os grupos de interesses e mesmo os representantes eleitos, na medida em que desejam introduzir determinadas questões na agenda pública, têm que sensibilizar os meios de comunicação.” (p. 120-121)

Resta a questão, crucial, de saber se os meios de comunicação de massa representam uma força social que auxilia o ideal democrático a consolidar-se, ou se, pelo contrário, solapa a democracia ao fornecer-nos dela apenas um simulacro. O poderio midiático, concentrado em poucas corporações capitalistas, que formam verdadeiros oligopólios e perseguem interesses privatistas de lucro empresarial, está bem longe de servir à participação social igualitária, à construção de uma sociedade onde todos tenham voz e vez.

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O filme mexicano A Ditadura Perfeita, de Luis Estrada, é uma brilhante e mordaz sátira do poderio dos donos das mídias-de-massa em manipular a opinião pública e, se quiserem, elegerem governadores e presidentes, transformados em grandes heróis da nação apesar de serem crápulas plutocratas e desumanos genocidas. Também a série britânica Black Mirror tematiza este mega-poderio da mídia em influenciar o processo político quando, no terceiro episódio da segunda temporada, faz do personagem de cartoon Waldo – um urso azul, comandado por um comediante, que fala muitas obscenidades e começa a atacar sem dó os figurões do establishment político – o maior hit eleitoral (saiba mais no excelente artigo de Moysés Pinto Neto).

A bandeira da democratização da comunicação, como explica Luis Felipe Miguel, tem a ver com “a necessidade de que os meios de comunicação representem de maneira adequada as diferentes posições presentes na sociedade, incorporando tanto o pluralismo político quanto o social. Hoje, via de regra, a mídia desempenha mal esta tarefa, por diversas razões, que incluem os interesses dos proprietários das empresas de comunicação, a influência dos grandes anunciantes, a posição social comum dos profissionais do setor e a pressão uniformizadora da disputa pelo público” (p. 124).

A democratização da comunicação “não possui solução mágica”:

“engloba um conjunto de medidas que começa na desconcentração da propriedade de empresas de comunicação. (…) O ponto mais importante é dissociar capacidade de prover informações  – isto é, do usufruto da liberdade de expressão como liberdade positiva – da posse do poder econômico por meio de instrumentos como o direito de antena (que reserva tempo na mídia comercial para movimentos sociais e organizações da sociedade civil veicularem suas posições), o incentivo ao jornalismo, rádio e televisão comunitários e o financiamento público para estimular a expressão de grupos desprivilegiados. São medidas voltadas à equalização do acesso às formas de expressão pública entre os diversos grupos sociais, que devem ter condições de participar do debate com sua própria voz.” (p. 124)

0745621090whichequalmat.inddInspirando-se na obra de Anne Philips, Luis Felipe Miguel dirá também que há “uma precondição do funcionamento de um regime democrático: a difusão das condições materiais mínimas que propiciem, àqueles que o desejem, a possibilidade de participação na política. (…) O ‘empoderamento’ dos grupos sociais marginalizados – ou seja, seu acesso às esferas de poder, com a capacidade de pressão daí derivada – é, por vezes, um prerrequisito para a transformação estrutural, como argumenta Phillips em Which Equalities Matter? (London: Polity, 1999).” (p. 135)

Que o empoderamento dos marginalizados passa também por um empoderamento midiático, em que tornem-se capazes de disseminar suas próprias mensagens e criações através do espaço social, impactando na formação da opinião pública e nos espaços decisórios, não nos deve levar a uma idolatria ingênua da disseminação das novas tecnologias digitais de informação. Uma série televisiva como Black Mirror esforça-se por mostrar, em suas três primeiras temporadas, através de roteiros muito bem bolados e repletos de criticidade à civilização contemporânea, que os avanços tecnológicos estão longe de produzir automaticamente avanços nas nossas capacidades cognitivas, morais e políticas, produzindo avanços nas nossas aptidões para os diálogos mutuamente proveitosos e os  relacionamentos sábios uns com os outros.

Muito pelo contrário, Black Mirror – que recebeu uma pertinente análise de Ivana Bentes em uma Cult recente – oferece uma série de sombrios espelhos onde vemos refletidas as novas barbáries que se manifestam através de celulares, notebooks e PCs conectados à Internet, numa verdadeira procissão de distopias hi-tech que soam bastante plausíveis e lançam duchas de água gelada sobre os otimistas de plantão.

Sobre o tema, Luis Felipe Miguel também tem pertinentes ponderações:

“Não é possível ignorar o impacto crescente das novas tecnologias – embora ainda muito diferenciado de acordo com clivagens de geração e de classe – nos padrões de sociabilidade e na produção das identidades, algo que possui evidente peso político. A internet tem fomentado novas formas de ativismo, muitas vezes marcadas por seu caráter individualista com foco na autoexpressão, mas que representam um fenômeno importante a ser estudado. É uma ferramenta de comunicação primordial para novos e velhos movimentos sociais, grupos minoritários e organizações contra-hegemônicas, proporcionando compartilhamento de informação de forma quase instantânea e a baixo custo. Mas o jornalismo, em particular, e os conteúdos simbólicos da grande mídia empresarial, em geral, continuam ocupando uma posição central.

O jornalismo permanece sendo o grande alimentador da informação, graças à sua condição de ‘sistema perito’. Redes de ativistas podem cumprir um papel importante na disseminação de visões de mundo alternativas, mas é o jornalismo profissional que está equipado para distribuir informação abrangente, geral, de forma permanente. Os grandes conglomerados de mídia ocupam a posição de principais provedores de informação no próprio espaço da internet, por meio de portais que aproveitam a sinergia oferecida pelas estruturas de produção de notícias para os meios convencionais; seus conteúdos são, com enorme frequência, a principal ou mesmo única fonte de outros emissores dentro da rede.

Assim, esses conglomerados seguem sendo capazes de gerar o ambiente social de informação compartilhada, isto é, a agenda comum do público; e os grupos alternativos permanecem nas posições (importantes, mas secundárias) de comentaristas que reagem a essa agenda, de ativistas que tentam influenciá-la a partir das margens ou de comunidades de gueto que mantêm uma faixa própria, paralela, com pouco ou nenhum diálogo com o público mais amplo. É a diferença entre uma página qualquer da internet – potencialmente acessível a todos, mas de fato procurada apenas por umas poucas pessoas – e um grande portal que concentra fluxo de visitantes e cujo conteúdo é acessado, comentado e reproduzido inúmeras vezes.

cibercultua(…) As utopias iniciais de uma nova era em que os meios de comunicação estariam pulverizados eram também utopias de um salto numa política pós-representativa, em que todos poderiam se fazer ouvir e sentir de forma direta, plástica e ‘molecular’, como dizia, nos anos 1990, seu principal arauto, o francês Pierre Lévy em obras como Cibercultura A Inteligência Coletiva. Hoje, aparece muito mais a ideia de uma representação autoinstituída, em que cada um se coloca como porta-voz nas redes sociais, e que se une à ideia de uma pluralização selvagem das fontes de informação. Mas, sem negar relevâncias às múltiplas apropriações alternativas dos novos meios, a importância crescente da internet continua ocorrendo dentro do modelo da comunicação de massa, em que uns poucos centros emissores são capazes de distribuir conteúdos simbólicos a uma multiplicidade de receptores cuja capacidade de resposta é limitada.” (MIGUEL, p. 145)

A determinação dos resultados eleitorais está umbilicalmente vinculada à capacidade dos candidatos de utilizarem os aparatos da comunicação em massa, o que torna a democracia refém dos grandes oligopólios empresariais de mídia e suas predileções políticas. Que Donald Trump tenha sido eleito o presidente dos EUA em 2016, e não Bernie Sanders (que perdeu as primárias dos Democratas para Hillary Clinton), também envolve o grau de exposição midiática muito superior do primeiro, como bem analisado pela excelente jornalista norte-americana Amy Goodman, âncora do Democracy Now!, um dos mais interessantes exemplos de um bem-sucedido empreendimento de jornalismo alternativo e contra-hegemônico que põe as novas tecnologias a serviço da verdadeira democracia – que é pra já e não pode esperar.

Em sua lúcida explanação, Amy Goodman faz menção ao pensamento de Noam Chomsky e sua noção de que a mídia “manufatura consenso” (manufactures consent), ou seja, é um instrumento ideológico de alta penetração nas consciências dos eleitores e com alta capacidade de moldar condicionar as decisões do eleitorado. Amy cita como exemplo a rede de TV ABC, que chegou a dedicar 81 minutos de sua cobertura ao candidato Donald Trump, tendo relegado Bernie Sanders à quase-invisibilidade de meros 20 segundos on air! A pergunta que não quer calar: o que teria acontecido caso Bernie Sanders tivesse tido, por parte da mídia corporativa Yankee, um tratamento mais igualitário e equânime em relação a Trump? Em uma constelação midiática que fosse de fato democrática, e não altamente oligopolizada como é nos EUA, não seria concebível que Sanders, o único candidato autenticamente democrático e de ideais renovadores e inclusivos, vencesse o pleito?

Sobre o tema, Luis Felipe Miguel também é um comentador perspicaz: “o que os elitistas apontam como natural – a desigualdade política, a profunda divisão entre governantes e governados – é fruto de uma organização social que concentra em poucas mãos o capital político. Alguns poucos monopolizam a capacidade de intervir no campo político, exatamente porque os outros internalizam a própria impotência e oferecem o reconhecimento de que aqueles poucos são os ‘líderes’. Se o reconhecimento social é a chave da conquista do capital político, avulta a importância da mídia, principal difusora do prestígio e do reconhecimento social nas sociedades contemporâneas.” (p. 153)

A mídia corporativa, oligopolizada, é uma força anti-democrática e proto-fascista quando só dá voz e vez àqueles que são dotados de capital, lançando ao silêncio e à invisibilidade toda a pluralidade de perspectivas e interesses que constitui uma sociedade. Ao trancar para fora imensos contingentes populacionais que não ganham nunca o direito de terem voz e vez na mídia de massas, esta mídia trabalha em prol da elite do poder e acaba contribuindo sobremaneira para a consolidação do poderio de tiranos bons de Ibope como Silvio Berlusconi, na Itália, ou Donald Trump, nos EUA.

“A democratização da esfera política implica, portanto, tornar mais equânime o acesso aos meios de difusão das representações do mundo social. Isto significa, principalmente, dar espaço na mídia às diferentes vozes presentes na sociedade, para que participem do debate político. Mas significa também, e crucialmente, gerar espaços que permitam aos grupos sociais, em especial os dominados, formular suas próprias interpretações sobre suas necessidades e seus interesses – os contrapúblicos subalternos tematizados por Nancy Fraser. O caminho, portanto, não passa pela ‘neutralidade’ dos meios de comunicação, como se depreende do modelo Habermasiano da esfera pública, mas por um verdadeiro pluralismo, que os mecanismos de mercado, como visto, não proveem.” (MIGUEL, p. 154)

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Reagan e Schwarzenegger em 1984

Reagan e Schwarzenegger em 1984

O problema central do livro de Miguel – democracia e representação – acaba necessariamente levando o autor a adentrar o labirinto das representações midiáticas, dado o fato de que as eleições ditas democráticas, na atualidade, estão totalmente imbricadas com a capacidades do candidato de tornar-se uma espécie de celebridade. Foi o que ocorreu, nos EUA, com Ronald Reagan, medíocre ator de Hollywood e garoto-propaganda de um sem-número de anúncios televisivos, que depois se elegeria governador da Califórnia e presidente da república. Reagan está longe de ser exceção ou caso isolado: o bombadão dos blockbusters da truculência pipocável, Arnold Schwarzenegger, trilhou caminhos semelhantes e serviu dois mandatos como governador da Califórnia. No Brasil, é impensável o sucesso eleitoral de figuras como o palhaço Tiririca se não fosse o efeito sobre as urnas causado pela celebridade midiática.

“O que se observa é que a visibilidade na mídia é, cada vez mais, componente essencial da produção do capital político. A presença em noticiários e talk-shows parece determinante do sucesso ou fracasso de um mandato parlamentar ou do exercício de um cargo executivo… a celebridade midiática tornou-se o ponto de partida mais seguro para quem deseja se lançar na vida política. (…) Isto fica especialmente claro na grande quantidade de profissionais de mídia que ingressam na vida política, sobretudo ocupando cargos parlamentares. São radialistas, repórteres de televisão, apresentadores de programas de variedades… Os exemplos, só na política brasileira, são incontáveis: Antônio Britto, Celso Russomanno, Cidinha Campos, Ratinho, João Paulo Bisol, Marta Suplicy, Hélio Costa.” (p. 158)

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Co-autor, em parceria com Flávia Biroli, do livro Feminismo e Política (Boitempo Editorial), Luis Felipe Miguel também é um autor muito atento ao problema da representação feminina nos cargos públicos. Mundo afora, o voto feminino é uma conquista muito recente, que só começa a ser consolidada a partir do século XX (vejam, sobre o tema, a excelente crônica cinematográfica sobre o movimento britânico das Sufragistas, um filme de Sarah Gavron). É verdade que hoje não nos parece mais tão anormal que uma mulher seja chefe-de-Estado em um país importante: Dilma Rousseff no Brasil, Michelle Bachelet no Chile e Angela Merkel na Alemanha são exemplos de presidentas da república que assumiram cargos outrora reservados aos machos (nos EUA, por exemplo, jamais aconteceu de uma mulher ser eleita para a Casa Branca…). Porém, estas conquistas ainda estão longe de ter aniquilado as assimetrias entre homens e mulheres nos cargos públicos. Sobre o tema, Miguel comenta:

9789896413484“É possível, ainda hoje, encontrar quem leia tal situação como demonstração de um desinteresse ‘natural’ nas mulheres pela política. Uma percepção minimamente sofisticada, porém, entende que o acesso à franquia eleitoral é uma condição necessária, mas nem de longe suficiente, para se chegar às esferas  de exercício do poder político. A participação política das mulheres é limitada por fatores materiais e simbólicos que prejudicam sua capacidade de postular candidaturas, reduzem a competitividade daquelas que se candidatam e atrapalham o avanço na carreira política daquelas que se elegem. Principais responsáveis pela gestão das unidades domésticas e pelos cuidados com as crianças, as mulheres dispõem de menos tempo livre, recurso crucial para a ação política. Também tendem a receber salários menores e a controlar uma parcela inferior de recursos econômicos. Ao mesmo tempo, o universo da política é construído socialmente como algo masculino, o que inibe o surgimento, entre elas, da ‘ambição política’, ou seja, da vontade de disputar cargos. Há, aqui, uma excelente ilustração daquilo que Pierre Bourdieu chamava de efeito de doxa, isto é, nossa visão do mundo social constrange nosso comportamento, comprovando (e naturalizando) aquilo que pensamos.” (p. 204)

Aquilo que o mesmo Bourdieu teorizada sob o nome de Dominação Masculina, e que as feministas denunciam como O Patriarcado, até hoje têm uma insidiosa influência até mesmo sobre os estudiosos de política: não faltam tratados sobre política que discutem apenas as teorias e práticas de homens, como se mulher nenhuma já tivesse dito algo que chegasse aos pés das ponderações de um Aristóteles, de um Hobbes, de um Marx. Diante deste preconceito lamentável, nunca é demais afirmar que a nossa capacidade de reflexão e ação políticas ficaria enormemente empobrecidas caso decidíssemos ignorar as inestimáveis contribuições de Hannah Arendt, Rosa Luxemburgo, Emma Goldman, Simone Weil, Angela Davis, Marilena Chauí, Márcia Tiburi, Maria Rita Kehl, Judith Butler, dentre muitas outras. Um dos méritos do livro de Miguel, aliás, está na intensa interlocução que ele estabelece com autoras como Iris Marion Young, Nancy Fraser, Hannah Pitkin, dentre outras.

Uma mais interessantes reflexões de Miguel diz respeito à presença das mulheres na literatura, espaço onde tendemos a pensar que elas possuem uma representação mais forte, dada a grande quantidades de “gênias” das letras que somos capazes de citar (Jane Austen, Virginia Woolf, Clarice Lispector, Katherine Mansfield, Toni Morrisson, Hilda Hilst etc.). Porém, a hegemonia masculina também aí manifesta-se com força, como fica claro pelo fato de nos mais de 115 anos de Prêmio Nobel de Literatura, apenas 14 mulheres venceram-no (8 delas, é bom que se diga, foram laureadas recentemente, a partir dos anos 1990). Comentando a obra de Regina Dalcastagnè (2005, p. 31 e 47), pondera Miguel:

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“Embora em princípio qualquer um possa fazer literatura ou fazer política, o reconhecimento de um discurso como literário ou como político passa pela adequação aos códigos consagrados no campo. (…) Tomando como base os romances publicados pelas editoras de maior prestígio entre 1990 e 2004, verifica-se que 93,9% dos autores são brancos, 78,8% têm diploma universitário, 72,7% são homens. As personagens também são quase todas brancas, heterossexuais e pertencentes às elites econômicas ou às classes médias, com uma significativa maioria do sexo masculino, disparidades acentuadas quando são isolados os protagonistas. Num universo de 258 romances analisados, aparecem apenas 3 mulheres negras como protagonistas e uma única é narradora. Nesse cenário, surgem, vez por outra, vozes diferenciadas. O caso mais emblemático é o de Carolina Maria de Jesus, negra, pobre, favelada, mãe solteira, catadora de papel, descoberta por um jornalista e que publicou seu diário – Quarto de Despejo – em 1960.” (MIGUEL, p. 228-29)

Somente confrontando as assimetrias de gênero e de classe, sedimentadas em privilégios injustos e em representação política desigual, é que uma democracia digna deste nome se instaurará. Miguel aponta que “trabalhadores, mulheres e negros formam grupos que se encontram severamente sub-representados nas esferas de representação política formal, um indício poderoso de sua subalternidade. Como as interdições legais foram revogadas, após décadas de lutas dos integrantes desses grupos, não deixam de surgir exceções, algumas delas relevantes. Mas o fato de que, no Brasil, uma mulher tenha sucedido a um ex-operário na Presidência da República (ou que, nos EUA, o cargo tenha sido ocupado por um negro [Obama]) não cancela o caráter classista, machista e racista do campo político.” (p. 304)

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Um infame exemplo desta predominância classista, machista e racista no campo político é o próprio Ministério instalado no Brasil após o golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016, em que Michel Temer, após a fraudulenta derrubada de Dilma Rousseff no putsch que usou como pretexto as “pedaladas”, nomeou apenas homens, brancos, ricos e cis para os cargos naquilo que mereceria mudar de nome para Esplanada do Machistério Patriarcal dos Plutocratas Golpistas. A mulher foi novamente “posta em seu lugar” através da disseminação midiática do paradigma “bela, recatada e do lar” encarnado pela Marcela Temer, uma espécie de boneca Barbie de carne-e-osso.

Para não deixar dúvidas sobre o seu caráter elitista, o desgoverno Temer logo buscou impor a famigerada PEC 241-55, que pretende precarizar os sistemas públicos de saúde, educação e previdência, num verdadeiro genocídio planificado que incide de modo cruel e desumano sobre a vida e a dignidade dos milhões de brasileiros mais desvalidos e vulneráveis. Após terem estuprado e chutado para escanteio a jovem e frágil democracia brasileira, os usurpadores que assaltaram o poder só fazem a crise de representação se acirrar e atingir níveis cada vez mais críticos, uma vez que eles explicitamente assumem um programa que não representa ninguém além do 1% no tope da pirâmide do dinheiro.

Assim como C. Wright Mills, em A Elite do Poder, “acusa as democracias realmente existentes de não cumprirem sua promessa central: o governo do povo”, um autor como Robert Dahl realizou “a primeira síntese abrangente de uma teoria pluralista da democracia”. “Reservando o termo ‘democracia’ para um ideal que raras vezes é concretizado no mundo real (e nunca em agrupamentos tão numerosos e complexos quanto Estados-nações), Dahl cunha a palavra poliarquia para designar a aproximação possível a esse ideal. O ponto crucial – que transparece já no significado etimológico da palavra – é a presença de uma multiplicidade de polos de poder, sem que nenhum seja capaz de impor sua vontade de dominação a toda a sociedade.” (p. 111)

Avesso e antônimo da oligarquia (o governo dos ricos) e da monarquia (o governo de um só), a poliarquia seria o governo (arche) da multiplicidade (poli). A democrática poliarquia seria uma constelação em micro-poderes em diálogo, em que a sociedade em sua intrínseca pluralidade acolheria uma governança poliárquica e polifônica, onde a ninguém seria negado o direito de ter voz e vez. A democracia, assim concebida, é decerto uma utopia que flamula no horizonte e que, como dirá Eduardo Galeano, pode até afastar-se dez passos a cada passo em sua direção que damos, mas que serve justamente para isso: para que caminhemos.

Eduardo Carli de Moraes – Goiânia, Novembro de 2016

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SOBRE O AUTOR DE “DEMOCRACIA E REPRESENTAÇÃO”:

luis-felipeLuis Felipe Miguel é professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). Trabalha nas áreas de mídia e política, teoria da democracia, representação política e gênero. É doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e publicou, entre outros, os livros Mito e discurso politico (Editora Unicamp, 2000), Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), e O nascimento da política moderna: de Maquiavel a Hobbes (Editora UnB, 2015).

ASSISTA:

ESCOLA DEMOCRÁTICA:

MULHER E MÍDIA:

TRAJETÓRIA DO GOLPE: aspectos políticos e jurídicos de uma ruptura democrática. 11 de agosto de 2016. Debate promovido pela Frente Ampla de Trabalhadoras e Trabalhadores do Serviço Público pela Democracia, com Beatriz Vargas, professora da Faculdade de Direito da UnB, e Luis Felipe Miguel, professor do Instituto de Ciência Política da UnB.

“O golpe não iniciou em 17 de abril ou 12 de maio, ou mesmo no pedido de recontagem de votos após as eleições presidenciais. Que elementos, nas relações sociais e políticas em nosso país, possibilitaram o advento do golpe? Quais falhas da esquerda impulsionaram os movimentos conservadores (e machistas, e racistas, e elitistas) na construção do golpe? De que forma o judiciário vem sendo utilizado como elemento facilitador do golpe? Que interpretações jurídicas podem ajudar a barrar o golpe ou ao menos, denunciá-lo?” Na ocasião, a Frente também lança o documento “90 dias de desgoverno golpista”, que apresenta uma sistematização de diversas análises produzidas com o objetivo de evidenciar os ataques aos direitos sociais e os retrocessos ocorridos nestes 90 dias de governo interino, bem como suas consequências para o desmonte das diversas políticas públicas.

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APROFUNDE-SE NOS AUTORES ESTUDADOS:

HANNAH PITKIN

Hanna Pitkin, Professor Emerita of Political Science at the University of California, Berkeley, talks about her life and career with Nancy Rosenblum, Professor of Ethics and Politics in Government at Harvard University and Co-Editor of the Annual Review of Political Science. Dr. Pitkin discusses her childhood, growing up between two “Jewish intellectual left-wingers” who fled 1930s Germany to Oslo, Prague, and eventually Los Angeles. She describes how her refugee status and acquisition of new languages led her to become a scholar in political science. In 1967, she published “The Concept of Representation,” which won the 2003 Johan Skytte Prize in Political Science “for her groundbreaking theoretical work, predominantly on the problem of representation.” She went on to study other topics such as gender and politics in Machiavelli and Hannah Arendt’s concept of “the Social.”

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ROBERT DAHL

Download dos ebooks Poliarquia – Participacion y Oposicion (em espanhol) Dilemmas of Pluralist Democracy (em inglês)

O CONTRAGOLPE TOMA CONTA DAS RUAS: Movimento “Fora Temer” explode pelo Brasil afora e demanda “Eleições Diretas Já!” (Textos: M. Löwy, Marilena Chauí, Leonardo Sakamoto & Eduardo Alves da Costa)

"As 40 pessoas que quebram carro?", diz Michel Temer sobre atos contra impeachment - Folha de S.Paulo: http://bit.ly/2cnp7LH

“As 40 pessoas que quebram carro?”, diz Michel Temer sobre atos contra impeachment – Folha de S.Paulo: http://bit.ly/2cnp7LH. Foto: Floripa grita #ForaTemer, Setembro de 2016, via Mídia Ninja. Compartilhe no Face.

“FORA TEMER, DIRETAS JÁ!”
por Michael Löwy no Blog da Boitempo Editorial

O dia 31 de agosto de 2016 ficará na história do Brasil como o momento em que a democracia de baixa intensidade foi substituída por “Democracia Zero”. Num total e absoluto desprezo pelo voto democrático da população brasileira, o Senado ratificou o “impedimento” de Dilma Rousseff. Tenho muitas críticas ao governo de Dilma, que tentou desesperadamente “fazer média” com os banqueiros e com os latifundistas. Não deu certo: eles não querem concessões e compromissos, querem governar diretamente. Dilma foi vítima desta intolerância das elites parasitárias que dominam o país há séculos e que desejam, urgentemente, desmantelar as (poucas) conquistas sociais dos últimos anos.

Sem nenhuma base jurídica, o processo contra Dilma foi armado em cima de pretextos ridículos e absurdos. A oligarquia brasileira – financeira, industrial, rural, midiática, jurídica, etc. – pôs em execução um golpe de estado pseudo-legal, através de seu instrumento político, o partido dominante que controla ambas as Câmaras, o PQB (Partido dos Quatro Bs: Bancos, Boi, Bíblia e Bala. Talvez deveria se acrescentar uma letra: C, de “Corrupção”). Tal e qual Paraguai e Honduras, países sofridos que quase nunca conheceram democracia. Para realizar seu objetivo as elites econômicas capitalistas armaram uma aliança de ferro com os setores mais reacionários, obscurantistas e retrógrados da sociedade brasileira: os campeões da misoginia, da homofobia, da intolerância religiosa e da pena de morte. O resultado é este governo Temer, monstrengo ilegal, ilegítimo, impopular e espúrio, cujo primeiro ato será reduzir o orçamento da educação e da saúde…

O momento não é para lamentos, ou resignação, mas para a resistência. Tem agora a palavra um personagem que não foi nem ouvido, nem consultado, durante estes meses de “processo”: a população brasileira. É urgente organizar um amplo movimento, como o de 1985 contra a ditadura militar agonizante, em torno da palavra de ordem “Diretas Já”! Chega de conchavos parlamentares, manobras pseudo-jurídicas, e golpes de estados senatoriais. É o povo brasileiro que deve eleger o Presidente da República e não uma clique de políticos do PQB.

Fora Temer e Diretas Já!

SP 04 09 4
Rio 04 09
48504a91-0982-4f59-901f-dedc53000319São Paulo (fotos 1 e 3) e Rio de Janeiro (foto 2) em 04 de Setembro de 2016

LEIA A REPORTAGEM: EM SÃO PAULO, 100 MIL PEDEM NOVAS ELEIÇÕES E FORA TEMER – CartaCapital

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“NÃO TEM GOLPE? TÁ BRINCANDO COMIGO, COMPANHEIRO?”
– Marilena Chauí
Revista Brasileiros:

A filósofa Marilena Chauí se delegou uma “tarefa inglória”, diz ela: demonstrar com argumentos que o impeachment de Dilma Rousseff é um golpe de Estado. Em evento na Universidade de São Paulo, Chauí começou fazendo uma comparação com o golpe civil-militar de 1964: “O que preparou o golpe na época foram o Ipes e o Ibad, que produziram todo o ideário do anticomunismo e da geopolítica na qual o Brasil se insere na área de influência dos Estados Unidos. A isso se incluem os papéis da Fiesp e da Igreja Católica. Esses elementos estão aqui agora: O Instituto Millenium, que produz a ideologia da direita, a Fiesp que continua hoje, e, no lugar da Igreja Católica, os evangélicos”.

Para contestar aqueles que dizem que um golpe requer o uso da força, Chauí diz que a ruptura democrática pode acontecer por meio de uma conspiração palaciana: “Basta ler Karl Marx, 18 de Brumário”.

Marx 18 Brumário

A filósofa também apontou que não há crime de responsabilidade de Dilma que justifique o impeachment, e que será posto em prática um projeto de governo que foi derrotado em quatro eleições.Para Chauí, os direitos democráticos, liberdade, igualdade e participação, estão sendo “pisoteados” pelo governo Temer. “O coração da democracia é a criação de direitos. Como está a igualdade? Os programas de inclusão e de transferência de renda, com a PEC 241, não receberão recursos acima da inflação por 20 anos. Também não terá ajuste de salário acima da inflação. E a liberdade, como está? A primeira medida do governo Temer foi fechar o Ministério de Direitos Humanos, fechar todas as secretarias de ações afirmativas. E qualquer resistência ao golpe pode ser enquadrada na Lei Antiterrorismo. E a participação? Ela existe na resistência nas ruas mas não tem nenhuma expressão política institucional, ela é barrada pela estrutura políico-partidária e pelo monopólio da informação da mídia”.

Chauí diz também que a República está ameaçada: “A autonomia dos 3 poderes está sendo pisoteada. O Judiciário interfere no Legislativo, o Legislativo no Executivo e o Executivo no Legislativo. Com a perda dos direitos democráticos, a reposição do Brasil à área de influência dos Estados Unidos, que irá nos lançar ao horror do Oriente Médio, não tem golpe? Está brincando comigo, companheiro? Tem golpe, sim!”

Link curto: http://brasileiros.com.br/Hr88R
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LEIA O ARTIGO  DE MARILENA CHAUÍ NO LE MONDE DIPLOMATIQUE:

“SIM, HÁ GOLPE DE ESTADO”
Le Monde Diplomatique Brasilhttp://diplomatique.org.br/acervo.php?id=3253

giphy“Na medida em que não há crime de responsabilidade pública por parte da presidenta Dilma Rousseff, os procedimentos empregados para promover seu impedimento pertencem à definição de golpe como trama, ardil, estratagema, manobra desleal, busca indevida de proveitos próprios e uso de palavras acintosas e injuriosas contra a sua pessoa. Em outros termos, a lei está sendo usada para pisotear o direito. Estamos, pois, perante o núcleo da palavra golpe como violência, desgraça, ferida e crise.

Mais importante: examinemos se, de fato, não há mudança de regime.

Em primeiro lugar, estamos perante a desinstitucionalização da república. Na medida em que o pilar da forma republicana é a autonomia dos três poderes, vemos que esta se encontra rompida, por um lado, pelo que se denomina “judicialização da política” (em que poder judiciário opera para bloquear o trabalho dos conflitos – trabalho que é o núcleo da democracia), além de interferir diretamente de maneira seletiva e pré-determinada nos dois outros poderes. Por outro lado, é notória a interferência do poder executivo interino sobre o poder legislativo para a compra ou barganha de votos do Senado. Podemos não estar perante uma ditadura militar, mas percebemos claramente não que estamos diante de uma verdadeira república.

Em segundo lugar, e muito mais grave, estamos diante da desconstrução da democracia. Esta, como sabemos, não se define apenas pela concepção liberal, que a reduz a um regime político baseado na ideia de direitos civis, organizada em partidos políticos e que se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais. A marca da democracia é a criação de direitos e a garantia de seu exercício.

Neste momento, que se passa com o direito à igualdade? Está destruída, como indicam as medidas já tomadas pelo governo interino e as anunciadas por ele (como a PEC 241) e os 59 projetos de lei trazidos ao Congresso pela bancada do Boi, da Bala e da Bíblia, que selam a recusa da igualdade econômica, social, racial, sexual, religiosa, fundada nos direitos econômicos, sociais e culturais conquistados nos últimos quinze anos graças, de um lado, a políticas de erradicação da miséria e de inclusão por meio de transferência de renda, e, de outro lado, pela criação das secretarias de ações afirmativas.

Sampa, Domingo, 04/09

Sampa, Domingo, 04/09. Leia a reportagem do El Pais.

Que se passa com o direito à liberdade? Está sendo pisoteada, em primeiro lugar, pela supressão da Secretaria de Direitos Humanos e sua substituição pela Secretaria de Segurança Nacional, sob o comando de um general; em segundo lugar, pelo recurso ininterrupto às força policiais para reprimir movimentos populares e sociais de contestação e de reivindicação (fato observado sobretudo nas cidades menores do Sul e Sudeste e nas grandes cidades do Norte e do Nordeste), anunciando o emprego futuro da lei antiterrorismo contra a população.

Que se passa com a participação? Tornou-se impossível porque há o monopólio da informação pelos meios de comunicação, que não apenas desinformam, mas produzem ininterruptamente falsas informações.

Conclusão: podemos ainda não estar num Estado policial, mas certamente já não estamos numa democracia.

Finalmente, a questão da soberania. A política externa do governo interino, abandonando a política ativa e altiva dos governos Lula e Dilma, quebrou o Brics e o Mercosul e outros organismos de unificação continental, restaurou a geopolítica que orientou e comandou o golpe de 1964, isto é, recolocou o país submisso à esfera de poder e influência dos Estados Unidos, do Banco Mundial e do FMI. E, evidentemente, no que diz respeito às fontes de energia, em particular o petróleo, essa decisão geopolítica lançará o Brasil no mundo do confronto sangrento que marca a situação do Oriente Médio.

Nestas circunstâncias, como não falar em golpe de Estado?”

Marilena Chaui – COMPARTILHAR NO FACEBOOK

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Henfil: artista com o dom da sempiterna atualidade nesta republiqueta de bananas, tamanho continental

Henfil: artista com o dom da sempiterna atualidade nesta republiqueta de bananas de tamanho continental

Após a queda de Dilma, só uma coisa é aceitável: Eleições Diretas Já
por Leonardo Sakamoto

Consumada a deposição do governo Dilma Rousseff, resta uma única coisa a ser feita para que nosso sistema político não se torne uma piada completa entre o resto do mundo livre: eleições diretas para a Presidência da República.

Sob qualquer ponto de vista que considere um mínimo de ética no trato com a coisa pública, Michel Temer não tem condições para exercer o mandato.

Sendo ele companheiro de chapa e tendo dado anuência aos mesmos malabarismos fiscais pelos quais Dilma foi condenada, deveria, portanto, ter tido o mesmo destino que a ex-mandatária. Isso sem contar as acusações que pesavam contra ele e seu gabinete na Lava Jato, colocando em suspeita seu real apoio à continuidade da operação e à investigação a integrantes de outros campos políticos. Agora, ele ganha uma certa imunidade, pois só poderá ser investigado por crimes cometidos no exercício das novas funções.

Mas, principalmente, as tungadas propostas pelo governo Michel Temer nos direitos trabalhistas e previdenciários, além da criação de um teto limitando gastos públicos, são alterações tão profundas no Estado brasileiro que deveriam, para serem efetivadas, passarem pelo voto popular.

Se a população brasileira aceitar um programa de governo que transforme a CLT em confete, implante uma idade mínima de 65 a 70 anos para a Previdência Social e bloqueie novos investimentos nas áreas de educação e saúde, amém, que assim, seja.

Mas o que o PMDB, agora mandando formalmente no governo federal, vai começar a fazer é algo muito além dos estelionatos eleitorais praticados por FHC, Lula e Dilma. O que ele propõe é uma mudança profunda na natureza do Estado e o quanto dele será destinado a atender a população que mais dele precisa.

As medidas podem alegrar grupos econômicos, seus representantes, porta-vozes e patos amarelos, mas certamente não o povão – que não foi para a rua nem a favor, nem contra o impeachment, segundo pesquisas realizadas pelo instituto Datafolha, e segue bestializado assistindo a tudo pela TV.

O que o povão sabe é que não está disposto a perder os poucos direitos previstos na Constituição Federal de 1988, que conseguiu efetivar, na base de muito sangue, suor e lágrimas, um mínimo de sombra no deserto.

A verdade é que apenas um governo que não foi escolhido após um debate eleitoral profundo e que não teve coragem de defender esses pontos publicamente seria capaz de produzir o impensável.

Mas não nos esqueçamos que, se houve melhora na maneira como esse país trata os mais humildes, isso se deve à sua resistência, ou seja, sua mobilização, pressão e luta e não a bondades de supostos iluminados ou da esmola das classes mais abastadas.

Como já disse aqui, o Brasil é um rapaz que nasce, negro e pobre, no extremo da periferia e, apesar de todas as probabilidades contrárias, chega à fase adulta. É um vendedor ambulante que sai de casa às 4h30 todos os dias e só volta tarde da noite, mas ainda arranja tempo para ser pai e mãe. É a jovem que, mesmo assediada no supermercado onde trabalha, não tem medo de organizar os colegas por melhores condições. É a travesti que segue de cabeça erguida na rua, sendo alvo do preconceito de “homens e mulheres de bem”, sabendo que não consegue emprego simplesmente por ser quem é.

O Brasil é resistência. Não aquela cantada em prosas e versos, da resistência dos ricos e poderosos, que com seus grandes nomes deixaram grandes feitos que podem ser lidos em grandes livros ou vistos na TV. Mas a resistência solitária e silenciosa de milhões de anônimos que não possuem cidadania plena, mas tocam a vida mesmo assim.

Essa resistência será posta à prova a partir de agora. Resistência à retirada não apenas de direitos políticos, mas civis, sociais, econômicos, culturais e ambientais.

Que tipo de país vocês querem?

E o quanto estão dispostos a lutar por ele?

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SP 04 09
Dilma Defende-se
Brasil Dividido
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EPÍLOGO: NO CAMINHO COM MAIAKÓVSKI,
Poemas de Eduardo Alves Da Costa

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“A ROSA DE ASFALTO”
de Eduardo Alves da Costa (1936 – )

Somos a geração dos jovens iracundos,
a emergir como cactos de fúria
para mudar a face do tempo.

Antes de ferirmos a carne circundante,
comemos o pão amassado pelas botas
de muitos regimentos
e cozido ao fogo dos fornos crematórios.

Foram precisas inúmeras guerras,
para que trouxéssemos nos olhos
este anseio de feras acuadas.
Mordidos de obuses,
rasgados pelas cercas de arame farpado,
já não temos por escudo
a mentira e o medo.
Sem que os senhores do mundo suspeitassem,
cavamos galerias sob os escombros
e nos irmanamos nas catacumbas do ser.
Nossas mãos se uniram como pétalas
ao cerne da mesma angústia
e uma rosa de asfalto se ergueu
por sobre o horizonte.

E porque há entre nós
um mudo entendimento;
e porque nossos corações
transbordam como taças
nos festins da imaginação;
e porque nossa vontade de gritar é tamanha
que se nos amordaçassem a boca
nosso crânio se fenderia,
não nos deterão!
Ainda que nos ameacem com suas armas sutis,
nós os enfrentaremos,
num derradeiro esplendor.

Em breve, a nota mais aguda
quebrará o instante.
Bateremos com violência contra as portas,
até que a cidade desperte;
e com o riso mais puro,
anunciaremos o advento do Homem.
Porque nossas mãos se uniram como pétalas
ao cerne da mesma angústia,
para que uma rosa de asfalto se erguesse
por sobre o horizonte.

* * * * *

“No Caminho Com Maiakóvski”
http://on.fb.me/125qI7A

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas manhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita – MENTIRA!

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POR QUE GRITAMOS GOLPE? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil (Ed. Boitempo)

Por que gritamos Golpe?

Para entender o impeachment e a crise política no Brasil

 Coleção Tinta Vermelha

PREÇO: R$ 15,00
COMPRE:
Livraria Cultura — http://bit.ly/culturagolpe
Livraria da Travessa — http://bit.ly/travessagolpe
Livraria Martins Fontes — http://bit.ly/martinsgolpe
Livraria Saraiva — http://bit.ly/saraivagolpe
Livraria da Folha — http://bit.ly/folhagolpe
Livraria Livros & Livros — http://bit.ly/livrosgolpe
Livraria Cia. dos Livros — http://bit.ly/cialivrosgolpe
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A Boitempo lança no início de julho a coletânea Por que gritamos Golpe? – Para entender o impeachment e a crise política no Brasil, na coleção Tinta Vermelha.

Somando-se ao debate público sobre a crise política no Brasil, a obra proporciona ao leitor diversas análises sobre a dinâmica do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, dentro de uma perspectiva multidisciplinar e de esquerda. Os textos que compõem a coletânea são inéditos e buscam desenhar uma genealogia da crise política, entender as ameaças que se colocam à democracia e aos direitos conquistados pela Constituição de 1988 e apontar caminhos de superação de nossos impasses políticos. São trinta autores (a lista completa segue abaixo), entre pesquisadores, professores, ativistas, representantes de movimentos sociais, jornalistas e figuras políticas.

Por que gritamos Golpe? conta ainda com epígrafe de Paulo Arantes, textos de capa de Boaventura de Sousa Santos e Luiza Erundina e com charges de Laerte Coutinho, que representam nossa realidade pelo viés do humor, escracham valores alegados pelos conspiradores e revelam outra narrativa e outra comunicação. Ao lado das fotos cedidas e selecionadas pelo coletivo Mídia NINJA, que cobre em tempo real as manifestações que pululam em todo o país, colaboram para montar o cenário do golpe ponto a ponto, passo a passo.

Laerte Coutinho_publicado originalmente na Folha de S. Paulo_1

Trate-se do quinto título da coleção Tinta Vermelha, que aborda sob perspectivas variadas temas atuais, dando sequência às coletâneas Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012), Cidades rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (2013), Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas? (2014) e Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (2015).

Os autores:André Singer (cientista político, professor da USP), Armando Boito Jr. (cientista político, professor da Unicamp), Ciro Gomes (ex-ministro da Integração Nacional), Djamila Ribeiro (secretária-adjunta da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo), Eduardo Fagnani (economista e professor da Unicamp), Esther Solano (professora de relações internacionais da Unifesp), Gilberto Maringoni (professor de relações internacionais da UFABC),Graça Costa (CUT), Guilherme Boulos (dirigente do MTST), Jandira Feghali(deputada federal), Juca Ferreira (sociólogo e Ministro da Cultura afastado), Leda Maria Paulani (economista, professora da FEA/USP), Lira Alli (Levante Popular da Juventude), Luis Felipe Miguel (cientista político, professor da UnB), Luiz Bernardo Pericás (historiador, professor da USP), Marcelo Semer (juiz de direito), Márcio Moretto (professor de sistema de informação da EACH/USP), Marilena Chaui (filósofa e professora aposentada da FFLCH/USP), Marina Amaral(jornalista e cofundadora da agência Pública), Mauro Lopes (jornalista, membro do coletivo Jornalistas Livres), Michael Löwy (filósofo e sociólogo, pesquisador noCentre National de la Recherche Scientifique/França), Murilo Cleto (historiador e colunista da Revista Fórum), Pablo Ortellado (professor de gestão de políticas públicas na EACH-USP), Renan Quinalha (advogado, pesquisador e ativista de direitos humanos), Roberto Requião (senador), Ruy Braga (sociólogo, professor da USP), Tamires Gomes Sampaio (vice-presidente da UNE) e Vítor Guimarães (dirigente do MTST).

Por que gritamos golpe_Midia NINJA_3

SUMÁRIO

EpígrafePaulo Arantes
Para o filósofo Paulo Arantes, chamar de “golpe” o atual estado de coisas da crise política brasileira é uma forma otimista de encarar o que se passa. Aquilo que se avizinha parece novo e sombrio.

Prólogo – O desmonte do Estado, Graça Costa
Para a sindicalista Graça Costa, o golpe de 2016 é contra o povo trabalhador e solicita a resistência de todos que sonham em viver num país desenvolvido com justiça social.

Apresentação – O golpe que tem vergonha de ser chamado de golpe, Ivana Jinkings

Parte 1 – Os antecedentes do golpe

A nova classe trabalhadora brasileira e a ascensão do conservadorismo,Marilena Chaui 
A filósofa Marilena Chaui analisa as divisões políticas que atravessam a nova classe trabalhadora e como se revelam nas manifestações de 2016.

Os atores e o enredo da crise política, Armando Boito Jr.
O cientista político Armando Boito radiografa os antecedentes do golpe e a crise da frente neodesenvolvimentista.

A democracia na encruzilhada, Luis Felipe Miguel 
O cientista social Luis Felipe Miguel discorre sobre as diferentes perspectivas na disputa pelo conceito de democracia em meio ao golpe de 2016.

Por que o golpe acontece?, Ciro Gomes 
O ex-governador do Ceará dispara contra os erros do governo Dilma e os três pulsos que levaram ao golpe: a banda podre da política, a rifa dos direitos sociais pelo pagamento da dívida pública e a ameaça da soberania nacional.

O triunfo da antipolítica, Murilo Cleto 
O historiador Murilo Cleto discute o imaginário ocidental sobre o espaço público, a instrumentalização da política pela moral e as práticas discursivas que alimentaram o horror à política no Brasil.

Jabuti não sobe em árvore: como o MBL se tornou líder das manifestações pelo impeachment, Marina Amaral 
A jornalista Marina Amaral segue os passos da nova direita latino-americana.

O fim do lulismo, Ruy Braga 
Para o sociólogo Ruy Braga, a crise política brasileira decorre da radicalização das contradições do modelo político do lulismo, baseado nas tentativas de conciliação entre as classes sociais.

Parte 2 – O golpe ponto a ponto

Da tragédia à farsa: o golpe de 2016 no Brasil, Michael Löwy
Em um retrospecto dos governos de esquerda na América Latina do século XXI, o filósofo e sociólogo Michael Löwy reflete sobre o Estado de exceção como regra e a democracia como exceção.

Ponte para o abismo, Leda Maria Paulani 
A economista Leda Maria Paulani analisa as políticas econômicas brasileiras desde os anos 1990, discutindo os acertos e erros dos governos petistas em meio à perspectiva de um resgate pleno do neoliberalismo no país.

Rumo à direita na política externa, Gilberto Maringoni 
Professor de relações internacionais da UFABC, Gilberto Maringoni discute a agenda regressiva posta em prática pelo governo interino e o mito da neutralidade ideológica de políticas de Estado.

Previdência social: reformar ou destruir?, Eduardo Fagnani 
Para o economista Eduardo Fagnani, por trás das propostas de reforma da previdência se oculta a mais feroz disputa por recursos públicos de nosso país.

Para mudar o Brasil, Roberto Requião
Para o senador Roberto Requião (PMDB-PR), falta – tanto ao governo afastado, quanto ao interino – uma proposta que una o país em torno dos interesses populares e nacionais.

Os semeadores da discórdia: a questão agrária na encruzilhada, Luiz Bernardo Pericás 
O historiador Luiz Bernardo Pericás analisa os retrocessos postos em prática pelo governo interino, alinhados com os ruralistas em torno do documento “Pauta positiva biênio 2016/2017”.

Ruptura institucional e desconstrução do modelo democrático: o papel do Judiciário, Marcelo Semer
O juiz de Direito Marcelo Semer desmascara as perversões que se combinaram nos episódios que fizeram a narrativa jurídica do impedimento.

Cultura e resistência, Juca Ferreira
O Ministro da Cultura afastado Juca Ferreira aponta para a novidade representada pela diversidade dos setores da sociedade que defenderam a manutenção do MinC pelo governo interino, reforçando a indissociável relação entre cultura e democracia.

As quatro famílias que decidiram derrubar um governo democrático,Mauro Lopes
O jornalista livre Mauro Lopes traça paralelos entre 1964 e 2016 e discute a imprensa internacional, as técnicas jornalísticas, as relações entre governo e mídia e a contranarrativa da outra imprensa.

Avalanche de retrocessos: uma perspectiva feminista negra sobre o impeachment, Djamila Ribeiro
Para o além das arbitrariedades do processo, a secretária-adjunta dos Direitos Humanos da cidade de São Paulo escancara o impedimento da presidenta como mais uma ameaça à vida da população já historicamente discriminada.

“Em nome de Deus e da família”: um golpe contra a diversidade, Renan Quinalha 
O advogado e ativista de direitos humanos Renan Quinalha denuncia o retrocesso em direitos civis e políticos para os setores mais vulneráveis da sociedade brasileira representado pelo golpe, com ênfase para as ameaças à comunidade LGBT.

Resistir ao golpe, reinventar os caminhos da esquerda, Guilherme Boulos e Vítor Guimarães
Os militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e da Frente Povo Sem Medo explicam o rompimento do pacto que conciliou interesses e a necessidade de um novo projeto de desenvolvimento.

A luta por uma educação emancipadora e de qualidade, Tamires Gomes Sampaio
A União Nacional dos Estudantes denuncia o golpe como interrupção de um projeto que ampliou o acesso ao ensino e ameaçou a estrutura colonialista do país.

Parte 3 – O futuro do golpe

Por uma frente ampla, democrática e republicana, André Singer
O cientista político André Singer, estudioso do lulismo, busca indicar caminhos para a organização de uma frente única da esquerda, em defesa da democracia, tendo em vista a superação dos impasses atenuados pela crise política brasileira.

A ilegitimidade do governo Temer, Jandira Feghali
Deputada federal pelo PCdoB do Rio de Janeiro, Jandira Feghali fala sobre as imoralidades escancaradas de um golpe que se fez para barrar a Operação Lava-Jato.

Uma sociedade polarizada?, Pablo Ortellado, Esther Solano e Márcio Moretto
Coordenadores das principais pesquisas que perfilaram os manifestantes anti e pró-impeachment, os professores da USP e Unifesp questionam a polarização “coxinhas-petralhas” como divisor social do país.

É golpe e estamos em luta!, Lira Alli 
A mobilização do Levante Popular da Juventude para a destruição de privilégios e a reinvenção do sistema político no Brasil.

Ficha técnica

Título: Por que gritamos Golpe?

Subtítulo: Para entender o impeachment e a crise política no Brasil

Autores: André Singer, Armando Boito Jr., Ciro Gomes, Djamila Ribeiro, Eduardo Fagnani, Esther Solano, Gilberto Maringoni, Graça Costa, Guilherme Boulos, Jandira Feghali, Juca Ferreira, Leda Maria Paulani, Lira Alli, Luis Felipe Miguel, Luiz Bernardo Pericás, Marcelo Semer, Márcio Moretto, Marilena Chaui, Marina Amaral, Mauro Lopes, Michael Löwy, Murilo Cleto, Pablo Ortellado, Renan Quinalha, Roberto Requião, Ruy Braga, Tamires Gomes Sampaio e Vítor Guimarães.

Organizadores: Ivana Jinkings, Kim Doria e Murilo Cleto

Quarta capa: Luiza Erundina e Boaventura de Sousa Santos

Epígrafe: Paulo Arantes

Charges: Laerte Coutinho

Fotografias: Mídia NINJA

Número de páginas: 176

Preço: R$15 | R$7,50 ebook

ISBN: 978-85-7559-500-8

e-ISBN [e-book]: 978-85-7559-501-5

Coleção: Tinta Vermelha

Editora: Boitempo

Leia também: CARTA CAPITAL – A RESISTÊNCIA URGENTE

“Historicamente, a mídia nativa apega-se a eufemismos para classificar as rupturas políticas no Brasil. Em 1964, o termo “revolução” foi adotado pelos principais veículos do País para celebrar o golpe civil-militar que impôs 21 anos de ditadura. Neste ano, a conspiração de Michel Temer para desencadear o impeachment de Dilma Rousseff assumiu a fachada perfumada de um “governo de salvação nacional”. Em meio à narrativa única dos jornais brasileiros, sempre dispostos a rechaçar qualquer ilegalidade no afastamento da presidenta eleita, o contraditório depende da solidariedade militante para se fazer ouvido.

Em abril e maio de 2016, quando o Congresso aprovou o afastamento provisório de Dilma, a editora Boitempo correu para reunir destacados nomes do campo progressista brasileiro para uma reflexão sobre os destinos do País. A obra Por Que Gritamos Golpe?, a ser lançada neste mês de junho, carrega no título não apenas a intenção de propor uma interpretação contracorrente da política nacional, mas a de estreitar os laços entre os adversários do governo interino.”

MESMO QUE O CÉU NÃO EXISTA – Críticas à religião no materialismo filosófico das Luzes ao Marxismo

MESMO QUE O CÉU NÃO EXISTA

Críticas à religião no materialismo filosófico das Luzes ao Marxismo

Eduardo Carli de Moraes

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I. TEMA

TODOROV“Depois da morte de Deus e do desmoronamento das utopias, sobre qual base intelectual e moral queremos construir nossa vida comum?” (TODOROV: 2006, p. 9) Com esta questão, que inaugura sua obra O Espírito das Luzes, Tzvetan Todorov situa alguns dos dilemas e desafios que enfrentamos diante do colapso da credibilidade da metafísica, com a consequência de que a ética e a política vivenciam uma espécie de crise do sagrado e necessidade de reinvenção em outras bases – imanentes e não mais transcendentes; profanas e não mais teológicas.

Estes dilemas são alvo de reflexão de muitos pensadores/cientistas de relevância: da “morte de Deus” diagnosticada por Nietzsche ao “desencantamento do mundo” de que fala Max Weber, da noção de que “a religião é o ópio do povo” de Karl Marx à polêmica que opõe o criacionismo à teoria da evolução de Charles Darwin.

AtheismNa atualidade, uma caudalosa literatura atéia, multidisciplinar e plurinacional, têm sido publicada no âmbito das críticas materialistas à religião, com pelo menos duas vertentes importantes: a anglo-saxã (Richard Dawkins, Daniel Dennett, Christopher Hitchens, Sam Harris etc.) e a francesa (Michel Onfray, André Comte-Sponville, Marcel Conche etc.)1.

Uma coletânea importante de 18 artigos, o Cambridge Companion to Atheism (2006), fornece um bom panorama dos debates e já possui edição em língua portuguesa sob o título Um mundo sem deus: ensaios sobre o ateísmo (tradução de Desidério Murcho, Lisboa: Edições 70, 2010).

 De modo bem sumário, podemos dizer que estes autores formulam argumentos que buscam provar a inexistência de Deus2; defendem a laicidade do Estado e criticam todo tipo de fanatismo, obscurantismo e fundamentalismo; afirmam a possibilidade de uma ética secular, a-religiosa, plenamente terrena, sem recompensas ou punições do além-túmulo; desenvolvem argumentos sobre a sabedoria, as virtudes, o bem-comum, considerados sempre na perspectiva desta vida e deste mundo etc.

Dennett

No âmbito destas discussões, percebemos a recorrência de um problema filosófico muito debatido e que parece ter o dom de jamais receber resposta definitiva: não só a questão da existência de Deus, da alma imortal e do livre arbítrio, mas o debate sobre necessidade (ou não) da como fundamento para a ética e a política. Um dos nossos focos principais de nosso trabalho será a crítica empreendida pelas filosofias materialistas das conexões entre moral e religião, entre teologia e política.

A primeira delimitação de nosso tema consiste na eleição, como objetos de estudo, apenas dos filósofos da tradição materialista, que integram a “linha de Demócrito” de que fala Lenin (1962), que a contrastava com a “linha de Platão”. Estão colocados no ringue de batalha, pois, os dois velhos adversários: o materialismo e o idealismo.

A segunda delimitação temática consiste na primazia que concederemos em nossos estudos aos filósofos do materialismo de duas épocas:

I) na França do séc. XVIII, no período pré-Revolução Francesa, na obra dos radicais das “Luzes” (o Iluminismo ou Esclarecimento), em especial o barão D’Holbach (cuja magnum opus é O Sistema da Natureza), La Mettrie (autor de O Homem Máquina), Helvétius (cujos tratados Do Espírito e Do Homem marcaram época) e Denis Diderot (que além de filósofo foi autor também de obras literárias como A Religiosa, Jacques, o Fatalista e O Sobrinho de Rameau).Vale ressaltar que estes materialistas do séc. XVIII tiveram precursores, no século anterior, em figuras como Pierre Bayle, Jean Méslies e Pierre Gassendi (1592 – 1655), fontes em que também buscaremos pesquisar, dada a relevância deles como prefiguradores tanto do materialismo iluminista quanto do marxisma. Como escreve Onfray:

Onfray Grasset 4De fato, no verso do cartão-postal da historiografia dominante encontram-se felizmente pensadores candidatos à forca que celebram a volúpia desculpabilizada, anunciam a morte de Deus, professam a coletivização das terras, conclamam a estrangular os aristocratas com as tripas dos padres, incitam a filosofar para os pobres e para o povo, creem na possibilidade de mudar o mundo, ensinam uma moral eudemonista, se não hedonista, contam com a justiça dos homens. Chamo-os de ultras das Luzes, pois eles encarnam um pensamento radical. Ora, o que é um pensamento radical? Retomemos simplesmente a definição dada por Marx na sua Crítica da filosofia do direito de Hegel: ser radical é tomar as coisas pela raiz. (ONFRAY: 2012, p. 34)

II) No século XIX, com a emergência do materialismo marxista, doutrina com enraizamento filosófico nas fontes atomistas gregas (Demócrito e Epicuro) e também nos materialistas franceses como Holbach, Helvétius etc. (vide item I). Em sua relação crítica e construtiva com o materialismo iluminista francês, pode-se dizer que Marx aumenta o ímpeto prático e transformador que o anima e que ele ganha “carne” como movimento político, força coletiva organizada, ímpeto revolucionário.

Parece-nos que é bem conhecida e estudada a relação crítica que o marxismo estabeleceu com o idealismo alemão, em especial sua empreitada crítica contra Hegel e os hegelianos de esquerda como Bruno Bauer. Também é notória e bastante pesquisada a influência determinante exercida pelo materialismo ateu de Feuerbach ou pela teoria econômica-política anarquista de Proudhon sobre o pensamento do jovem Marx, que depois desenvolverá também uma crítica destes seus antigos mestres.

Porém, nosso trabalho pretende focar a atenção nas relações, que parecem-nos menos pesquisadas e conhecidas, de Marx com a tradição materialista dos sécs. XVII e XVII no Iluminismo francês (Helvétius, D’Holbach, La Mettrie etc.). Ou seja, desejamos explorar sobretudo de que modo foi importante para a configuração da teoria e da práxis marxistas o influxo do materialismo iluminista francês, dos “ultras das Luzes”, como os chama Michel Onfray nos volumes da Contra-História da Filosofia a eles dedicados3.

II. CARACTERIZAÇÃO DO PROBLEMA

Jaeger

Desde a Antiguidade greco-romana, a crítica da religião estabelecida marcou a obra de muitos filósofos, em especial aqueles que constituiriam a escola atomista-materialista: Demócrito e Epicuro (na Grécia, nos sécs VI a IV a.C.) e Lucrécio (em Roma, no séc. I a.C.).

Desde os pré-socráticos os debates sobre a natureza da realidade (a Phýsis) não raro propendiam a tornar-se querelas religiosas: um exemplo é o de Xenófanes (570 a.C. – 475 a.C.), nascido em Colófon (atual Turquia), que confrontou as crenças de seus contemporâneos com estas palavras célebres: “Se os bois, os cavalos, os leões tivessem mãos para desenhar e criar obras como fazem os homens, os cavalos representariam os deuses à semelhança do cavalo, os bois à semelhança do boi, e eles fabricariam os deuses com um corpo tal qual cada um possui ele mesmo.” (XENÓFANES apud JAEGER: 2001, p. 213-214).

A crítica realizada por Xenófanes prenuncia em mais de 2 milênios a filosofia de Ludwig Feuerbach e Nietzsche (alguns notáveis intérpretes-críticos do fenômeno religioso nos últimos séculos): o pré-socrático já sugeria que os seres humanos fabricam deuses à sua imagem e semelhança e que a proposição “somos todos filhos dos deuses” (ou seja, por eles fomos criados) seria muito mais verdadeira se fosse invertida: “somos os pais de todos os deuses” (ou seja, nós é que criamos os deuses).

Este é apenas um exemplo antiquíssimo da ação questionadora e cáustica de pensadores que, sem temor de soarem ímpios, através de suas argumentações põem em maus lençóis os dogmas consagrados e as autoridades religiosas teocráticas, colocando em questão, por exemplo, a mitologia veiculada por Homero e Hesíodo que

atribuíram aos deuses todas as indignidades, roubos, adultérios e imposturas. [De acordo com Xenófanes] é ilusão dos homens pensar que os deuses nascem e têm forma e roupagens humanas. Os negros da Etiópia acreditavam em deuses negros e de nariz achatado, já os trácios em deuses de olhos azuis e cabeleira ruiva. Na verdade provêm de causas naturais todos os fenômenos do mundo exterior que os humanos atribuem à ação dos deuses que temem. (JAEGER, p. 213)

No nascedouro da filosofia grega, essa aposta no “naturalismo”, na possibilidade de explicar por causas naturais todos os fenômenos, também marca presença em muitos dos filósofos que hoje reconhecemos como inovadores e revolucionários da aurora da ciência, de Tales de Mileto (623 – 546 a.C.) a Demócrito de Abdera (460 a.C. — 370 a.C.), que dedicaram-se a explicar a Phýsis sem recorrer a causa sobrenatural ou explicação mítica.

O materialismo moderno, que nos propomos a estudar em suas mutações das “Luzes” (séc. XVIII) ao marxismo e suas vertentes (sécs. XIX e XX), é uma continuação crítica e criativa de uma ancestral aventura filosófica daqueles amigos-da-sabedoria que dedicaram-se à decifração da Phýsis e que não se deixaram calar por mordaças impostas pelo clero ou pelo temor das fogueiras dos inquisidores.

02 spinoza
Apesar de não ser classificado como materialista, mas sim como panteísta, Spinoza é um caso emblemático, na história da filosofia, de uma crítica radical da religião instituída e inspirará muitos materialistas, muitos deles fiéis à noção de “monismo da matéria”, ou seja, à ideia de que a substância spinozista (Deus sive Natura) podia ser melhor descrita pelo conceito de matéria.

No Tratado Teológico-Político, Spinoza procura convencer o leitor de que qualquer explicação que apele para a noção de “vontade de Deus” não passa de “asilo da ignorância” (para relembrar a Ética, Livro I, apêndice), alertando para as ciladas da credulidade típicas daqueles que “interpretam a natureza da maneira mais extravagante, como se toda ela delirasse ao mesmo tempo que eles.” (SPINOZA: 2003, p. 6).4

O epicentro do problema que nos dedicaremos a pesquisar em nosso Doutorado está aí exposto: a crítica à religião empreendida pelos filósofos materialistas das épocas que delimitamos. Desejamos expor e debater os argumentos que sustentam serem as religiões como invenções humanas (demasiado humanas), ficções supersticiosas, ideologias interesseiras urdidas por classes sociais em antagonismo com outras etc.

No âmbito ético e político, buscaremos esclarecer o teor das críticas materialistas à sistemas de moral baseados em sanções post mortem, que são prometidas ao pecador (como o inferno ou o Hades) e ao santo (o Paraíso ou os Campos Elíseos). Revelaremos em détail as argumentações que criticam as doutrinas éticas ou os sistemas políticos que, por preconceito teológico, culpabilizam a sensualidade, reprimem o corpo e a expressão de suas energias, rebaixando a um status secundário e subalterno tudo o que diz respeito ao organismo em sua carnalidade e aos sentidos em sua organicidade.

O impacto da doutrina atomista de Demócrito na história da filosofia e das ciências não deve ser subestimado, já que inaugura uma concepção de mundo anti-criacionista, onde não existe um deus que age como criador ex nihilo do universo. O materialismo baseia-se na tese de que tudo que existe é composto pelas interações dos átomos (incriados e indestrutíveis), em movimento perpétuo, que estão em constante processo de combinação e re-combinação através da imensidão incomensurável do espaço. Segundo Demócrito, átomos e vazio constituem a totalidade concreta, o todo do Ser.

LangerComo explica Friedrich Albert Lange em sua História do Materialismo, obra em dois volumes que será uma das principais fontes de pesquisa para nosso trabalho, Demócrito afirmava: “Nada vem do nada; nada do que existe pode ser nadificado. Toda mudança não é senão agregação ou desintegração de partes.” (LANGE: 1910, p. 12)

Sabemos que a palavra átomo, em grego, traduz-se por “indivisível”: os átomos são as partículas elementares, que não podem ser nem aniquilados nem reduzidos a partes menores. São tidos, nestes seus primeiros estágios de desenvolvimento, como indestrutíveis e infinitos em diversidade. Chocam-se, combinam-se, produzem turbilhões, separam-se e desintegram conjunções, para na sequência formar novos agrupamentos – e assim “mundos inumeráveis se formam para depois perecer.” (LANGE: op cit, p. 17)

A doutrina de Demócrito será depois adotada e aprimorada por Epicuro (341 a.C. – 270 a.C.), um dos mais importantes filósofos materialistas da História. Nascido na ilha de Samos, foi o fundador da escola de filosofia em Atenas que foi batizada “O Jardim de Epicuro” e que atravessou sete séculos, tendo sido muito difundidas suas noções éticas em que o caminho para a felicidade estava na paz-de-espírito [ataraxia], que necessariamente demandava a cessação do temor aos deuses e à morte.

Estima-se que Epicuro tenha escrito cerca de 300 obras e seu magnum opus, o tratado de física A Natureza Das Coisas, era constituído por 37 livros. Da obra monumental de Epicuro, foram preservadas apenas fragmentos, incluindo três cartas, salvas do naufrágio por Diógenes Laércio em Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. As razões da destruição da obra quase completa de Demócrito e Epicuro explica-se, segundo alguns pesquisadores, pelo afã fanático dos detratores da teoria materialista, aí incluído o próprio Platão e seus sequazes, que tudo fizeram para censurar e destruir estas obras.5

Apesar de não afirmar explicitamente o ateísmo, já que continua leal ao politeísmo do Olimpo, o epicurismo inova e revoluciona em teologia ao sustentar que, além de serem entes totalmente materiais e corporais, os deuses não se importavam com preces, rogos, súplicas, arrependimentos ou o que quer que seja realizado pelos humanos terranos. Os deuses corpóreos existem, mas bem longe desta Terra, onde gozam da perfeita bem-aventurança, nem tomando consciência das necessidades e preces dos humanos (como será depois o Deus-Natureza de Spinoza, os deuses de Epicuro são concebidos como organismos indiferentes aos seres humanos e a quem será sempre inútil rezar).

No caso da obra-prima de Lucrécio, De Rerum Natura, ela só chegou inteira a nossos tempos por tortuosos caminhos históricos que foram tema de um premiado livro da historiografia contemporânea: A Virada – O Nascimento do Mundo Moderno (Cia das Letras), de Stephen Greenblatt. Este livro é essencial aos propósitos de nossa pesquisa pois mostra o renascimento do materialismo na aurora da Modernidade, algo que serve de base para a culminância dos radicais materiais, os “ultras das Luzes” como La Mettrie, Diderot, D’Holbach e Helvétius, e que também repercutirá na emergência do materialismo marxiano (Marx, afinal, torna-se doutor em filosofia com uma análise comparativa entre as filosofias da Natureza de Demócrito e de Epicuro). Greenblatt fornece uma boa síntese da “visão de mundo” materialista que pretendemos explorar em nosso trabalho:

Greenblatt2Quando você olha para o céu noturno e, sentindo-se inexplicavelmente comovido, fica maravilhado com a quantidade de estrelas, não está vendo o trabalho dos deuses ou uma esfera cristalina separada de nosso mundo passageiro. Está vendo o próprio mundo material de que faz parte e de cujos elementos você é feito. Não há um plano superior, não há um arquiteto divino, não há design inteligente. Todas as coisas, inclusive a espécie a que você pertence, evoluíram durante grandes períodos de tempo. (…) Nada — de nossa própria espécie ao planeta em que vivemos e ao Sol que ilumina nossos dias — se manterá para sempre. Somente os átomos são imortais. Num universo constituído dessa maneira, argumentava Lucrécio, não há motivo para pensar que a Terra ou seus habitantes ocupem um lugar central, não há motivo para separar os humanos dos outros animais, não há esperança de subornar ou aquietar os deuses, não há lugar para o fanatismo religioso, não há vocação para uma negação ascética do eu, não há justificativa para sonhos de poder ilimitado ou de segurança total, não há lógica para guerras de conquista ou de engrandecimento, não há possibilidade de triunfar sobre a natureza, não há escapatória para a criação e recriação constante das formas. (GREENBLATT: 2012, cap. 1) 6

Em nossa tese, portanto, pretendemos mapear esta influência, fecunda apesar de longínqua, de Demócrito, Epicuro e Lucrécio sobre as vertentes do materialismo filosófico das Luzes francesas e também no materialismo dialético de Marx e da chamada “filosofia da práxis”. Queremos mostrar que algumas das ideias mais debatidas dos últimos séculos, como a célebre noção propagada por Marx, na Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, de que “a religião é o ópio do povo”, não são anomalias isoladas na história do pensamento, mas integram-se em uma longa tradição de materialismo, que procura abordar o fenômeno religioso com uma atitude crítica ou mesmo revolucionária.

A crítica da concepção de mundo religiosa e a moral a ela conexa, empreendida pelos materialistas, está conectada aos projetos e às utopias de construção de uma concepção de mundo, de uma ética e de uma política alternativas, baseados na imanência radical. Um dos nossos problema essenciais consistirá em expor como os filósofos materialistas abordam as questões da possibilidade do “ateu virtuoso” e da “sociedade atéia” (uma doutrina de Pierre Bayle que D’Holbach subscreve). O próprio Marx escreve, em A Sagrada Família, sobre a importância de Bayle para o desenvolvimento ulterior do materialismo filosófico:

O homem que fez com que a metafísica do século XVII e toda a metafísica perdessem teoricamente seu crédito foi Pierre Bayle. Com a desintegração cética da metafísica, Pierre Bayle não apenas preparou a acolhida do materialismo e da filosofia do juízo humano saudável na França. Ele anunciou a sociedade ateia, que logo começaria a existir, mediante a prova de que podia existir uma sociedade em que todos fossem ateus, de que um ateu podia ser um homem honrado e de que o que desagrada ao homem não é o ateísmo, mas sim a superstição e a idolatria. (MARX: 2003, p. 146)

Também nos interessa o problema da conexão que pode haver entre uma concepção de mundo materialista e uma ética consequencialista de teor hedonista. Além disso, desejamos debater a velha querela entre determinismo vs livre-arbítrio: será mesmo que o materialismo conduz a uma visão-de-mundo onde impera o determinismo estreito, que abole toda liberdade humana, reduzindo tudo a um fatalismo que exige do sujeito apenas resignação? Ou, pelo contrário, o materialismo inclui a possibilidade concreta de emancipação coletiva e transformação concreta do mundo como uma consequência necessária de seu abandono dos mundos imaginários, em prol da profana e terrestre vida dos humanos de carne-e-osso?

Uma vez que o materialismo filosófico será definido por um de seus mais ilustres pensadores contemporâneos, André Comte-Sponville, como “um monismo da matéria”, será necessário também refletirmos sobre o significado filosófico do monismo, concepção que se opõe ao dualismo que cinde o real entre Deus e Natureza, Espírito e Matéria, cindindo também o homem entre um corpo, perecível e pecaminoso, e um espírito, imorredouro e passível de ser “salvo”:

Comte-Sponville

André Comte-Sponville, filósofo materialista francês, autor de “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes” e “Tratado do Desespero e da Beatitude” (Ed. Martins Fontes)

Chama-se materialismo a doutrina que afirma que tudo é matéria ou produto da matéria (salvo o vazio) e que, por conseguinte, os fenômenos intelectuais, morais ou espirituais (ou assim supostos) têm realidade secundária e determinada. O materialismo se caracteriza assim, negativamente, pela rejeição do dualismo e do espiritualismo (não existe nem mundo inteligível nem alma imaterial), do ceticismo e do criticismo (a realidade em si não é inconhecível), enfim e em geral do idealismo. É incompatível com toda crença num Deus imaterial, criador ou legislador. O materialismo é antes de mais nada um pensamento de recusa, de combate. Trata-se (Lucrécio, La Mettrie e Marx não cansaram de lembrar) de vencer a religião, a superstição e, em geral, a ilusão. O materialismo é uma empresa de desmistificação.

Explicar o superior pelo inferior (o espírito pelo corpo, a vida pela matéria inanimada, a ordem pela desordem…) é, de Demócrito a Freud, a conduta constante do materialismo. Em todo o caso o materialismo sempre tem, como teoria, essa tendência a descer, isto é, a buscar a verdade, como dizia Demócrito, no fundo do abismo, quer esse abismo seja o da matéria e do vazio (os atomistas), o do corpo (La Mettrie, Diderot…), o da infra-estrutura econômica (Marx) ou o de nossos desejos inconscientes (Freud). Essa descida, na teoria, tem por contraponto uma subida, no real ou na prática. O pensamento materialista, percorrendo ao revés o aclive do real, tudo o que faz, ao longo da sua descida, é pensar a ascensão que a torna possível. ‘É da terra ao céu que se sobe aqui’, escreviam Marx e Engels em A Ideologia Alemã, e a imagem pode ser generalizada. A história se inventa de baixo para cima. (COMTE-SPONVILLE, 2001, p. 119 a 121)

Dando continuidade ao trabalho realizado em minha dissertação de mestrado, Além da Metafísica e do Niilismo, focada no trabalho de Nietzsche (1844-1900), desejo insistir num método que consiste em somar as forças da crítica e da construção, da teoria e da práxis, da denúncia e do anúncio. Percebo que, longe de terem permanecido presos ao trabalho negativo do aniquilamento e da destruição (que a eles são atribuídos por seus detratores e adversários de modo vastamente imerecido), os materialistas de que trataremos jamais foram niilistas; trabalharam em prol da construção de alternativas, da sugestão de sabedorias e sistemas políticos que pretendiam instaurar o reino da liberdade, da fraternidade e da igualdade sem recurso ao divino. Muitas vezes eram movidos pela vontade de sepultar para sempre sistemas políticos obscurantistas, teocráticos, batalhando contra superstições e sectarismo, ativamente engajados com a construção de um convívio coletivo melhor, mais feliz, mais justo e mais sábio.

Assim, pretendemos delinear as múltiplas possibilidades que existem para a fundamentação de uma ética e de uma política que não terá menos mérito pois aposta que nem Deus, nem a alma imortal, nem o livre-arbítrio, existem de fato. Exporemos e discutiremos a obra dos autores materialistas referidos, explorando seus diagnósticos de uma progressiva erosão da religião como explicação de mundo, fundamentação da moral e força organizadora das sociedades. Desejamos focar nossa atenção naqueles pensadores materialistas que, através da história, ousaram criticar a religião como a conheciam, ao mesmo tempo que apontavam para um outro mundo possível, numa atitude a um só tempo crítica e construtiva que também gostaríamos que animasse nosso trabalho.

III. JUSTIFICATIVA

Contribuir para uma reconsideração do materialismo tem relevância intra e extra-filosófica, dada a carga negativa, o sentido pejorativo que o termo adquiriu no senso-comum:

É sabido que a palavra materialismo é empregada principalmente em dois sentidos, um trivial, outro filosófico. No sentido trivial, designa certo tipo de comportamento ou de estado de espírito, caracterizado por preocupações ‘materiais’, isto é, no caso, sensíveis ou baixas. Querer ganhar muito dinheiro, gostar da boa mesa, preferir o conforto do corpo à elevação do espírito, buscar os prazeres em vez do bem, o agradável em vez do verdadeiro… tudo isso é materialismo, no sentido trivial, e vê-se que essa palavra é usada sobretudo pejorativamente. O materialista é, então, o que não tem ideal, que não se preocupa com a espiritualidade e que, buscando apenas a satisfação dos instintos, sempre se inclina para seu corpo, poderíamos dizer, em vez de para sua alma. Na melhor das hipóteses, um bon vivant; na pior: um aproveitador, egoísta e grosseiro. (COMTE-SPONVILLE: op cit, p. 121)

Desejamos mostrar que o materialismo, para além de seu sentido pejorativo, é uma tradição de pensamento que não é somente crítica das ilusões idealistas, espiritualistas ou religiosas, mas também pode ser um guia ético e político para uma existência emancipada e solidária. A superação do fanatismo e do sectarismo, e também dos fratricídios deles decorrentes, parece-me conectado à nossa capacidade de refletir de modo lúcido e aprofundado sobre a condição humana. Em matéria de ética, o materialista costuma dar a primazia ao corpo (mortal) e não a um espírito (supostamente imortal). Para além de qualquer doutrina da redenção pela via do ascetismo e da auto-mortificação, o materialismo defende a unidade psicossomática entre corpo e alma e reflete sobre as condições para a saúde, a paz-de-espírito, a ataraxia, a beatitude, não em um mítico futuro distante, mas no aqui-e-agora da vida terrestre.

Julgamos relevante confrontar o preconceito que afirma que o materialista seja um crasso perseguidor de volúpias imediatas, um inconsequente libertino que não pensa no amanhã, e reafirmar que a sophia e a philia, na tradição de Demócrito e Epicuro, são valores supremos, donde ser inconcebível falar da utopia materialista sem a presença destas forças constitutivas da filosofia e que marcam-na etimologia de sua própria palavra, onde somam-se amizade e sabedoria.

La MettrieLa Mettrie sugere: “Pensar no corpo antes de pensar na alma é imitar a natureza que fez um antes do outro.” (LA METTRIE: 1987, p. 271) Eis uma tese autenticamente materialista, já que aquilo que chamamos de “alma” é tido pela tradição do materialismo como algo que surge posteriormente, no tempo, à “base” material corporal.

Para muitos materialistas, dá-se o nome de “alma” a algo que está no corpo, que nunca existiu nem pode existir independente do corpo. Daí decorre a revolução materialista empreendida contra o temor da morte que aflige os humanos: não há nada a temer já que nenhuma alma imortal sobreviverá ao corpo abandonado pela vida. Materialismo: doutrina da alma mortal, ou seja, da Psiquê encarnada, da vida individual fugaz, vivida por um organismo que só pode ser compreendido como unidade psicofísica.

Além disso, filosofia do reconhecimento pleno de nossa mortalidade inelutável, o materialismo também se caracteriza, escreve Comte-Sponville, “pela rejeição do espiritualismo, se por esta última palavra entendermos a afirmação de que existe uma substância espiritual (a alma ou o espírito), independente da matéria, que seria, no homem, princípio de vida ou de ação. […] O materialismo também é, contra todas as filosofias da alma, uma filosofia do corpo.” (COMTE-SPONVILLE, op cit, p. 124).

O materialismo pode ser descrito como um monismo físico e defende a tese de que a Matéria, ou seja, os átomos em movimento no espaço, constituem a substância única. Tudo que chamamos de espírito é derivado das “danças” imensas e múltiplas dos átomos. A consequência incontornável, e que também esclareceremos em mais detalhes, é a de que todas as atividades psíquicas ditas superiores (o pensamento, a vontade, o juízo, a criação artística, a pesquisa científica etc.) não podem jamais ser compreendidas como imateriais.

Nenhum filósofo, é evidente, pode negar absolutamente a existência do pensamento: seria negar a si mesmo e pensar que não pensa. O monismo dos materialistas não é portanto a negação da existência do pensamento, mas apenas a negação da sua independência ou, se preferirem, da sua existência autônoma: não se trata de dizer que o pensamento não existe, mas simplesmente (se é que isso pode ser simples!) que ele é tão material quanto o resto. (COMTE-SPONVILLE: 2001, pgs 120-126)

A relevância do estudo histórico, crítico, construtivo, dialético, do materialismo filosófico, está também em sua potência de “iluminar”, através da obras destes amigos da sabedoria, a força prática e concreta da filosofia na História. Buscaremos amplificar as ideias e os exemplos daqueles filósofos que prezavam mais o pensamento autônomo do que a cega obediência à tradição; que não viam diante de si nenhum tabu que proibisse o escrutínio, a pesquisa, a reflexão, a expressão, a discussão. Como escreveu Helvétius, citado por Marx, “as grandes reformas apenas podem ser realizadas com o enfraquecimento da adoração estúpida que os povos sentem pelas velhas leis e costumes.” (MARX: 2003, p. 152)

marx-engelsA tentativa de conexão entre o materialismo das “Luzes” e o Marxismo tem embasamento na própria obra dos fundadores do materialismo histórico-dialético, Marx e Engels: basta exemplificar com A Sagrada Família, obra na qual, no contexto da polêmica contra o hegeliano Bruno Bauer, Marx realiza reflexões essenciais aos nossos propósitos:

O Iluminismo francês do século XVIII e, concretamente, o materialismo francês, não foram apenas uma luta contra as instituições políticas existentes e contra a religião e a teologia imperantes, mas também e na mesma medida uma luta aberta e marcada contra a metafísica do século XVIII e contra toda a metafísica, especialmente contra a de Descartes, Malebranche, Spinoza e Leibniz. (…) A rigor existem duas tendências no materialismo francês, dos quais uma provém de Descartes, ao passo que a outra tem sua origem em Locke. A segunda constitui, preferencialmente, um elemento da cultura francesa e desemboca de forma direta no socialismo. (MARX; ENGELS: 2003, p. 144)

Nestas páginas d’A Sagrada Família, expõe-se a tese de que o materialismo filosófico francês e inglês, nos séculos XVII e XVIII, permaneceu “unido por laços estreitos a Demócrito e Epicuro”, o que não impediu a emergência de diferentes encarnações de um materialismo multiforme, que teve como principais representantes, na Inglaterra, figuras como Bacon, Locke e Hobbes; e na França os supracitados P. Bayle, J. Mèlies, Helvétius, La Méttrie, Condillac, Diderot, D’Holbach.

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Julgamos muito relevante, em nossa futura tese, realizar um estudo comparativo das duas vertentes do materialismo francês das “Luzes” que Marx identifica:

I) aquela que aderiu à física de Descartes e é representada sobretudo por La Mettrie – que “explica a alma como uma modalidade do corpo e as ideias como movimentos mecânicos; (…) seu L’Homme Machine é um desenvolvimento que parte do protótipo cartesiano do animal-máquina” (MARX; op cit, p. 145);

II) aquela outra vertente do materialismo francês, muito inspirada pelo materialismo inglês e sobretudo por Locke, e que representa a convicta antítese à metafísica do século XVII; segundo Marx, é esta linha que “desemboca diretamente no socialismo e no comunismo” (MARX: op cit, p 149). Como ilustração desta segunda vertente, citaremos um trecho d’O Sistema da Natureza, de Holbach, que parece-nos essencial para os propósitos de nossa pesquisa:

Paul Henri Thiry, Baron d'Holbach, an 18th-century advocate of atheism

Paul Henri Thiry, o Baron d’Holbach, filósofo materialista e ateísta do século XVIII

O homem que não espera uma outra vida está mais interessado em prolongar a existência e em se tornar querido pelos seus semelhantes na única vida que conhece. Ele deu um grande passo para a felicidade ao se desvencilhar dos terrores que afligem os outros. Com efeito, a superstição tem prazer em tornar o homem covarde, crédulo, pusilânime. Ela adotou o princípio de afligi-los sem descanso; assumiu o dever de redobrar para ele os horrores da morte. Seus ministros, para disporem dele mais seguramente neste mundo, inventaram as regiões do porvir, reservando-se o direito de lá fazer recompensar os escravos que tiverem sido submissos às suas leis arbitrárias e de fazer serem punidos pela divindade aqueles que tiverem sido rebeldes às suas vontades. Longe de consolar os mortais, a religião em mil regiões esforçou-se para tornar a sua morte mais amarga, para tornar mais pesado o seu jugo, para tornar o seu cortejo acompanhado de uma multidão de fantasmas hediondos.

Ela chegou ao cúmulo de persuadi-los de que a sua vida atual não é mais do que uma passagem para chegar a uma vida mais importante. O dogma insensato de uma vida futura os impede de ocupar-se com a sua verdadeira felicidade, de pensar em aperfeiçoar as suas instituições, suas leis, sua moral e suas ciências. Vãs quimeras absorveram toda a sua atenção. Eles consentem em gemer sob a tirania religiosa e política, em atolar-se no erro, em definhar no infortúnio, na esperança de serem algum dia mais felizes, na firme confiança de que as suas calamidades e a sua estúpida paciência os conduzirão a uma felicidade sem fim. Eles se acreditam submetidos a uma divindade cruel que gostaria de fazer que eles comprassem o bem-estar futuro ao preço de tudo aquilo que eles têm de mais caro aqui embaixo. É assim que o dogma da vida futura foi um dos erros mais fatais pelos quais o gênero humano foi infectado. Esse dogma mergulha as nações no entorpecimento, na apatia, na indiferença sobre o seu bem-estar, ou então as precipita em um entusiasmo furioso, que as leva muitas vezes a dilacerarem a si próprias para merecer o céu. (HOLBACH: 2010, p. 318-19)

De modo algum iniciamos este percurso de pesquisa já com todas as respostas, pelo contrário, é por estarmos repletos perguntas que desejamos ir a fundo nas pesquisas sobre a filosofia materialista. Um dos problemas, a um só tempo ético e político, que buscaremos aclarar está este uma concepção de mundo materialista e dialética, que superou a transcendência em prol do “imanentismo” (GRAMSCI: 1981, p. 57), de que modo fundará a valorização ético-política da igualdade, da liberdade, da fraternidade, dentre outros valores e virtudes, caso se vede o caminho da sacralização?

Há como formular de modo mundano, profano, a-teológico, imanentista, a “unidade do gênero humano” pressuposta pelo materialismo francês das Luzes? A “filosofia da práxis” inclui a possibilidade de uma ética laica, profana, sem sanção nem punição, sem vigilância transcendente? Sem religião, é ainda possível formular uma ética universalista de molde kantiano que afirme a igualdade de todos, que postule normas universalizáveis como o imperativo categórico, para todos os humanos, mas desta vez em outras bases, plenamente enraizadas na “dialética do concreto”? Com o aniquilamento do divino, cai-se necessariamente num pragmatismo ao gosto anglo-saxão (W. James, S. Mill, J. Bentham), ou são pensáveis muitas outras potencialidades (socialistas, comunistas, anarquistas, democráticas)?

IV. HIPÓTESES DE TRABALHO

H1 – o materialismo é um monismo da matéria, que combate o idealismo e o espiritualismo, afirmando que a “alma” ou o “espírito” também são materiais, estando localizados no interior do corpo e sendo inseparáveis dele; em suma: o materialismo compreende o organismo como unidade psico-somática.

H2 – a ética materialista tende a ser muito mais hedonista do que ascética, muito mais consequencialista do que deontológica, voltada para a felicidade terrestre e não para a “redenção” ou salvação religiosa.

H3 – a fé, em geral, é criticada como ficção, ilusão, superstição e/ou “ideologia” por muitos destes filósofos materialistas; eles crêm que a política pode fundar-se em valores como a justiça, a solidariedade, a fraternidade, sem necessidade de valores transcendentes ou autoridades sagradas, como na “sociedade de ateus” de P. Bayle;

H4 – nada condena uma filosofia materialista a um determinismo fatalista; pelo contrário, é no âmbito do materialismo que nasce e se desenvolve uma filosofia da práxis em que os conceitos de ação, transformação, emancipação e revolução ganham um peso, uma centralidade e uma importância como nunca dantes na história da filosofia.

A estas hipóteses, expostas acima e desenvolvidas brevemente no decurso deste projeto, gostaríamos de adicionar algumas outras, desta vez com um desenvolvimento breve das mesmas.

H5 – O materialismo trabalha em prol da extinção concreta do “vale de lágrimas” historicamente constituído.

Uma das lições do materialismo é que a religião pode ser julgada a partir de seus efeitos psíquicos e sociais, numa lógica consequencialista, para além de seus princípios basilares e teorias fundamentantes (privilegiadas pela deontologia). Dentre os filósofos materialistas do Iluminismo francês que mais investiga o tema das relações entre religião e sociedade está Helvétius (1715-1771), tanto que pode-se dizer que Helvétius é um dos inauguradores daquilo que virá a ser a disciplina sociologia da religião.

Escorraçado pela censura e pela violência repressiva ao publicar seu tratado “Do Espírito”, Helvétius têm profunda influência sobre a posteridade por ser o criador do imperativo utilitarista em que se formula que deve-se visar como meta [télos] da ética e da política “a maior vantagem pública, ou seja, o maior prazer e a maior felicidade da maioria dos cidadãos” (apud ONFRAY: 2012, p. 200). Em D’Holbach e Helvétius, mas também em seus predecessores no século anterior (Méslier e Pierre Bayle), exige-se a democratização do gozo, a ampliação concreta das possibilidades de júbilo.

Contra o império tenebroso do ideal ascético, que ordena a mortificação da carne, iguala prazeres e deleites a gangrenas, os ultras das Luzes retomam o epicurismo para a formulação de seus ideais políticos, em que a realidade terrestre importa muito mais do que uma suposta salvação post mortem. Tendo a felicidade comum ou o bem público como paradigmas de excelência, Helvétius julga o real com um ouvido especialmente atento ao “grito da miséria” (ONFRAY, op cit, p. 205).

Uma de nossas hipóteses, portanto, é a de que o materialismo não se resigna nunca a somar lágrimas impotentes aos que choram pelas injustiças, mas que põe-se no campo de jogo em prol da transformação aprimoradora do que há. Ou seja, trata-se de afirmar uma filosofia que não apenas descreva ou interprete o “vale de lágrimas”, mas sim que modifique o mundo, como diz uma célebre tese marxista, para abolir o próprio vale de lágrimas e para instaurar na terra um convívio mais sábio e jubiloso, mais omnilateral e criativo, do que a asfixiante atualidade nos permite.

A partir de suas bíblicas ancestralidades, a imagem da vida como “vale das lágrimas” atravessou a história e está nos mitos fundadores judaico-cristãos, que explicam a infelicidade a partir de um pecado original ocasionador de uma queda ontológica e de uma perda do paraíso. O Paraíso Perdido – título aliás do poema de Milton onde tais mitos proliferam, assim como o fazem na Divina Comédia de Dante – torna-se então o télos transcendente que o desejo busca re-encontrar.

A vontade humana, alucinada pela fé no paraíso perdido e pelo desejo impossível de fusão com um deus que é suposto como alheio e transcendente, fica então siderada por “objetos transcendentais” que, como Marx ironizará na Sagrada Família, não passam de fantasias geradas por cérebros humanos situados em um contexto sócio-econômico, político-histórico:

MarxA angústia religiosa é ao mesmo tempo a expressão de uma angústia real e o protesto contra ela. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, tal como é o espírito de uma situação não espiritual. É o ópio do povo. A abolição da religião como a felicidade ilusória do povo é necessária para sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões sobre sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que necessita de ilusões. A crítica da religião é, portanto, em embrião, a crítica do vale das dores, cuja auréola é a religião. A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva. A crítica da religião desaponta o homem com o fito de fazê-lo pensar, agir, criar sua realidade como um homem desapontado que recobrou a razão, a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol.

A opressão deve ainda tornar-se mais opressiva pelo fato de se despertar a consciência da opressão e a ignomínia tem ainda de tornar-se mais ignominiosa pelo fato de ser trazida à luz pública. (…) É preciso fazer com que dancem as relações sociais petrificadas fazendo-as ouvir sua própria melodia! O povo deve ter horror de si mesmo, a fim de que ganhe coragem. (…) É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que a força material tem de ser derrubada pela força material, mas a teoria converte-se em força material quando penetra nas massas. A prova evidente do radicalismo da teoria alemã, e deste modo a sua energia prática, é o fato de começar pela decisiva superação positiva da religião. A crítica da religião culmina na doutrina de que o homem é o ser supremo para o homem. Culmina, por conseguinte, no imperativo categórico de derrubar todas as condições em que o homem aparece como um ser degradado, escravizado, abandonado, desprezível. (MARX: 2005. Crítica à Filosofia do Direito de Hegel – Introdução.)

Nossa hipótese é de que a abolição da religião não pode ser nunca algo meramente intelectual, uma batalha exclusivamente “cerebral”, uma vitória em uma querela somente teológica, mas que só se dará pela modificação prática e concreta de uma realidade que torna os sujeitos alienados, despossuídos de autonomia, dependentes da fé. É preciso compreender os afetos que estão envolvidos na fé religiosa, os desejos aos quais ela serve de satisfação, as perguntas irrespondíveis que ela busca fornecer solução, e sobretudo o contexto social e intersubjetivo que estabelece a estrutura concreta sobre a qual serão erguidos os degraus da superestrutura (aos quais tanto a filosofia quanto a religião, segundo Marx, pertencem).

A hipótese que tentaremos provar está em sintonia com a afirmação de Marx de que “a supressão [Aufhebung] da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua felicidade real”, o que Daniel Bensäid ilustra no capítulo “De Que Deus Morreu” de seu livro Marx – Manual de Instruções, em que parte da influência de Feuerbach sobre Marx e depois expõe a originalidade do materialismo marxista em relação ao das Luzes:

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Em A Essência do Cristianismo, Feuerbach não só mostrou que o homem não é a criatura de Deus, e sim seu criador. Não só sustentou que ‘o homem faz a religião, a religião não faz o homem’. Ao fazer da relação social do homem com o homem o princípio fundamental da teoria, fundou o verdadeiro materialismo. Uma vez admitido que esse homem real não é a criatura de um Deus todo-poderoso, resta saber de onde vem a necessidade de inventar uma vida após a vida, de imaginar um Céu livre das misérias terretres. Marx escreveu que ‘a religião é o suspiro da criatura oprimida’ e o ‘ópio do povo’. Como o ópio, ela atordoa e ao mesmo tempo acalma. Portanto, a crítica da religião não pode se contentar, como acontece com o anticlericalismo maçonico e o racionalismo das Luzes, em ser hostil com o clero, com o imame ou com o rabino. Engels critica aqueles que querem ‘transformar as pessoas em ateias por ordem do mufti’ e diz que ‘uma coisa é certa: o único serviço que se pode prestar a Deus, hoje, é declarar que o ateísmo é um artigo de fé obrigatório e sobrevalorizar as leis anticlericais, proibindo a religião em geral.’ Já Marx combate as ilusões de um ateísmo que é apenas uma crítica abstrata e ainda religiosa da religião, que permanece no plano não prático das ideias. (…) A crítica do ateísmo contemplativo e abstrato leva Marx a se distanciar de Feuerbach , que ‘não vê que o próprio sentimento religioso é um produto social’ e que ‘a família terrestre é o segredo da Sagrada Família.’ Em suma, enquanto o ateísmo é apenas a negação abstrata de Deus, o comunismo é sua negação concreta. (BENSAÏD: 2013, p. 23-31)

Que esta última frase sirva de síntese, pois, para nossa hipótese de trabalho aqui exposta: o comunismo como negação concreta de Deus e da explicação mítica e fatalista do “vale das lágrimas”. Em conexão a esta hipósese, também avançaremos a hipótese suplementar (H6) de que há, no Brasil, alguns pensadores conectados ao marxismo e de alta relevância na história intelectual brasileira que deram muitas contribuições a este tema: Álvaro Vieira Pinto, Marilena Chauí e Leandro Konder são três daqueles que mais dedicaram-se aos problemas que pretendemos também abordar.

Como breve exemplo da fecundidade de conectar estes pensadores brasileiros à discussão, citarei a contribuição de Vieira Pinto: fiel às suas raízes na filosofia marxista, ele pretende denunciar um embuste e uma “mistificação”, uma alienação religiosa diretamente conexa a um conformismo ou fatalismo sócio-político. rata-se de questionar o quanto a religião presta serviços à conservação material e concreta da dominação opressora, da humilhaçãodesumanizante, dos sistemas econômicos e políticos que são esmagadores da dignidade humana. Explica porquê as “religiões milenares, orientais e ocidentais esforçam-se em retratar o mundo em que a humanidade se tem desenvolvido utilizando a conhecida imagem do vale das lágrimas”:

Se não convencerem os homens de que, por uma tristíssima fatalidade, têm de passar a existência no mais doloroso sofrimento, submetidos a toda espécie de privações, provações e por fim à morte, deixa de ter sentido seu papel com que se justificam, o de ser o único veículo da ‘salvação’ para nós, desgraçados viventes. (…) Daí a arraigada concepção, convertida em imagem de mundo, de que os homens, como consequência de um castigo original, habitam o mais tenebroso e inóspito lugar do universo, de onde lamentavelmente não conseguirão jamais se evadir, um vale de lágrimas, expressão que os pontífices desta mentirosa e infame simploriedade se empenham em deixar bem claro não se tratar de mero traço de retórica evangélica, mas de uma autêntica, embora cruel e lamentabilíssima, realidade. Esta mistificação (…), esta vulgar, interesseira e estúpida noção, é produto de uma exigida falsificação perpetrada pelas potências dominantes sobre a grande multidão da humanidade. “O ‘vale’ das lágrimas foi talhado por um rio formado pela torrente de lágrimas que as massas trabalhadoras, durante incontáveis milênios de sujeição a senhores, déspotas, sacerdotes, empresários e ricos proprietários, em todos os tempos, verteram dos olhos (…) A ironia do conceito reside em não ter sido cunhado pelos sofredores, mas pelos que habitam as alturas. (VIEIRA PINTO: 1975/2008, p. 21-23-24)

Como defenderemos em mais minúcia, a obra de Marilena Chauí7 e Leandro Konder8 também contêm reflexões de muito mérito no âmbito deste problema. Dito disto, finalizamos afirmando nossa convicção de que, contra qualquer tipo de fatalismo, de conformismo, de resignação, o materialismo filosófico possui compromisso prático e emancipatório, perseverança na noção de que mudar o mundo não só é possível como é necessário, criticando a figura humana que cruza os braços, recusa a práxis, limita-se à vida contemplativa, resigna-se ao instituído, limitando-se à paciência absoluta de quem aguarda socorro divino sem nada fazer para melhorar sua situação concreta no âmbito terrestre.

Justifica-se uma pesquisa aprofundada sobre o materialismo filosófico também pelo interesse prático que há em confrontarmos as religiões instituídas e seu poder político, cultural, social, midiático, ainda hoje muito forte. Como filósofos materialistas apontam (D’Holbach antes de Marx, Gramsci e Onfray posteriormente), não existe nenhuma garantia de virtude ética ou excelência política no mero conformismo a uma religião tradicional imposta pelas cúpulas da sociedade. É preciso admitir a possibilidade do ateu virtuoso e do materialismo politicamente libertário como valores que talvez seja recomendável afirmar diante do obscurantismo e do fanatismo, das teocracias e das inquisições.

Com este trabalho, planejamos contribuir com uma re-consideração da história da filosofia, vista também sob uma perspectiva contra-hegemônica, que focará naqueles filósofos que foram considerados dissidentes, heréticos, ímpios, ateus, céticos (ou que foram estigmatizados como tal). Entre as mais importantes obras que estudaremos, destacam-se os 2 volumes de Friedrich Albert Lange (1828-1875), A História do Materialismo e Crítica do seu Valor Para Nossa Época (publicado em 1866 em alemão: Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart); a Enciclopédia dos Iluministas, que teve em Diderot e D’Alembert seus principais artífices (lançada no Brasil, em 5 volumes, pela Editora Unesp), além da obra em 9 volumes de Michel Onfray, Contra-História Da Filosofia (5 deles publicados no Brasil pela Martins Fontes).

Durante os 36 meses do doutorado, nosso plano é publicar uma série de artigos (ao menos 2 por ano) que divulgarão os frutos de nossas pesquisas e de nossa interação com colegas, professores e orientador(a). Além disso, desejamos participar da maior quantidade possível de eventos que possam ter relação com nosso objeto de pesquisa (seminários, colóquios, fóruns, debates etc.), de modo a colocar tais ideias em circulação para serem debatidas e dialogadas, dentro e fora da academia, na perspectiva de que a filosofia pode sim ter função pública determinante para a nossa ventura comum.

Julgamos que tal trabalho possa elucidar sobre outros modos de conceber um ideal ético e político que supere as caducas concepções teológicas e obscurantistas que, ainda em nossos dias, teimam em querer submeter a vida humana a autoridades transcendentes, punições e recompensas post mortem, perpetuando as hegemonias das teocracias, do sectarismos, da fanaticidade violenta. Será uma aventura em que não seremos filósofos que se contentam em interpretar o mundo – pois como lembra Marx numa de suas mais célebres Teses Contra Feuerbach, o que importa agora é transformá-lo. Ao sapere aude deve ser somada a ousadia do fazer: o atrever-se a conhecer é imperfeito e limitado sem a coragem de agir em conjunto para mudar o mundo comum.

Monumento a Denis Diderot

Monumento a Denis Diderot

NOTAS

1 Destacam-se as obras: “Deus: um delírio”, de Richard Dawkins (Cia das Letras, 2007); “Quebrando o encanto – a religião como fenômeno natural”, de Daniel C. Dennett (Globo, 2006); “Deus não é grande”, de C. Hitchens (Ediouro, 2006); “A Morte da Fé”, de Sam Harris (Cia das Letras, 2009); “Tratado de Ateologia”, de M. Onfray (Martins Fontes, 2007); “O Espírito do Ateísmo”, de A. Comte-Sponville (Martins Fontes, 2009); “Orientação Filosófica”, de M. Conche (Martins Fontes, 2000).

2 Um exemplo é o artigo “O Sofrimento Das Crianças Como Mal Absoluto”, publicado por Marcel Conche em 1968, onde se argumenta que “o sofrimento das crianças deveria ser suficiente para confundir os advogados de Deus. É que o sofrimento das crianças é um mal absoluto, mácula indelével na obra de Deus, e seria suficiente para tornar impossível qualquer teodicéia. (…) O fato do sofrimento das crianças – como mal absoluto -, por eliminação da hipótese contrária, funda o ateísmo axiológico.” (CONCHE: 2000, p. 60-77)

3 São 9 volumes já publicados na França, pela Grasset, e os 5 primeiros no Brasil, pela Martins Fontes.

4 Uma análise brilhante do contexto sócio-histórico em que nasce o “tratado escandaloso de Spinoza” (T.T.P), considerado como uma magnum opus essencial para o “nascimento da era secular”, pode ser lida em Um Livro Forjado No Inferno, de Steven Nadler. O livro contêm detalhes de todo o processo sofrido pelo filósofo ao ser estigmatizado como pária pela sinagoga de Amsterdam quando tinha apenas 23 anos, já que foi considerada herética e blasfema sua concepção do “Deus sive Natura” (Deus = Natureza). “ Deus de Spinoza não é um ser transcendente, supranatural. Não é dotado dos aspectos psicológicos ou morais atribuídos a Deus por muitas religiões ocidentais. O Deus de Espinosa não manda, não julga nem faz alianças. Deus não é a providencial e espantosa deidade de Abraão. (…) Segue-se que a concepção antropomórfica de Deus que, como pensa Espinosa, caracteriza as religiões sectárias, e todas as postulações sobre recompensa e castigo divinos que ela implica não passam de ficções supersticiosas.” (NADLER: 2013, p. 32)

5 Na Idade Média, explica André Comte-Sponville, o trabalho de copiar as obras dos autores gregos e latinos da Antiguidade era realizado principalmente por monges, encerrados em conventos, filiados a seitas religiosas, que “preferiam copiar os filósofos e poetas que não estavam muito distantes das crenças deles, que não quebravam suas ilusões ou esperanças, que não eram demasiado incompatíveis com a fé.” (in: ANDRÉ COMTE-SPONVILLE, O Mel e O Absinto, Paris: Hermann, 2008, pg. 20) No que diz respeito às mais de 50 obras de Demócrito, comenta-se que Platão e seus seguidores não pouparam esforços de destruição: “Em um movimento de ardor fanático, Platão quis comprar e queimar todos os escritos de Demócrito.” (LANGE, F. Pg. 11) “Platão pretendeu queimar as obras de Demócrito pela incompatibilidade entre as ideias nelas expendidas e as suas próprias.” (LINS, I. In: O Epicurismo.)

6 Saiba mais sobre a obra no site A Casa De Vidro: http://bit.ly/1qB8m2f.

7 “Todos conhecem a famosa fórmula segundo a qual ‘a religião é o ópio do povo’, isto é, um mecanismo para fazer com que o povo aceite a miséria e o sofrimento sem se revoltar porque acredita que será recompensado na vida futura (cristianismo) ou porque acredita que tais dores são uma punição por erros cometidos numa vida anterior (religiões baseadas na idéia de reencarnação). Aceitando a injustiça social com a esperança da recompensa ou com a resignação do pecador, o homem religioso fica anestesiado como o fumador de ópio, alheio à realidade. No entanto, costuma-se esquecer que, antes de fazer tal afirmação, Marx define a religião como ‘a criação de um espírito num mundo sem espírito’ e ‘consolação num mundo sem consolo’. (…) A religião, como toda ideologia, é uma atividade da consciência social. A religiosidade consiste em substituir o mundo real (o mundo sem espírito) por um mundo imaginário (o mundo com espírito). Essa substituição do real pelo imaginário é a grande tarefa da ideologia e por isso ela anestesia como o ópio”. — MARILENA CHAUÍ, “O Que é Ideologia”, pg. 108, ed Brasiliense.

8 Conferir, por exemplo, os artigos “É possível fazer o socialismo com fé em Deus” e “O Novo Conteúdo Político do Direito ao Prazer.” In: O Marxismo na Batalha das Ideias. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
BENSAÏD, Daniel. Marx – Manual de Instruções. São Paulo: Boitempo, 2013.CHAUÍ, M. O Que É Ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980.
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Eduardo Carli De Moraes
Goiânia – Junho de 2016